Desde que surgiu, há mais de 100 anos atrás, a corrente cristã do pentecostalismo tem mostrado a que veio. Além dos conhecidos cultos de revelação que caracterizam a corrente, líderes religiosos e fiéis se lançam para fora dos templos, para os mais diversos fins.
Historicamente, as igrejas pentecostais, todas derivadas de ministérios da Assembleia de Deus original, têm se lançado em ações de natureza principalmente caritativa e educativa entre populações periféricas mais pobres, mal assistidas pelos poderes públicos.
Para os desassistidos, tais ações, que incluíam assistência social e médica, alimentação, vestuário e melhora habitacional, eram alternativas à quase ausência do poder público. Para os pentecostais, um ambiente fértil para disseminar sua fé.
Se tais ações caritativas e sociais tão importantes não seriam suficientes para o seu objetivo, as ADs se permitiam participar de festas ocorrentes nos locais visitados, e obtinham espaços para erguer suas sedes, atraindo um número maior de moradores e, assim, converter uma boa parte deles.
Pode parecer estranho, mas os antes tão dogmáticos e rígidos assembleianos sempre apreciaram festividades que agregassem famílias dos meios comunitários, atraindo também não assembleianos. Hoje, além de aniversários, muitos subúrbios viram palcos de quermesses e festas juninas adaptadas à cultura evangélica.
Ainda assim, parecia faltar algo para ir mais adiante, num país ainda dominantemente católico.
Marcha para Jesus, ontem e hoje
São muitas imagens, mostradas pelas mídias de todos os portes no país. A Marcha para Jesus pode ser vista como uma espécie de versão evangélica das antiquíssimas e tradicionais procissões católicas, assim como as quermesses evangélicas são cópias das católicas.
Para o senso comum, a Marcha para Jesus é uma invenção de um grupo de pastores liderados por Silas Malafaia, por sua vez considerado o seu ideólogo. Mas, só que a história real passa muito longe disso.
Segundo a Wikipédia, a Marcha para Jesus é "um evento internacional e interdenominacional1 que ocorre anualmente em milhares de cidades por todo o mundo". Lendo isso, talvez a geral acredite que, tal como Macedo fez com a IURD, Malafaia disseminou a parada pelo mundo afora.
Não, não mesmo. E vale ressaltar mais ainda: apesar de estar em todas as edições desde o início, o pastor Silas Malafaia, dono da megacorporação AD Vitória em Cristo, também não é o criador desse evento. Aliás, mais ainda: a marcha para Jesus nem é brasileira de origem.
Origem inglesa- esse evento que se tornou tão conhecido entre nós nasceu em Londres em 1987, como March for Jesus. A ideia foi concebida pelo pastor Roger Forster, da Ichtus Christian Fellowship, pelo cantor e compositor Graham Kendrick, por Gerald Coates do movimento Pioneer e Lynn Green, do Youth With a Mission.
A julgar pelos nomes dos movimentos respectivos aos religiosos, essa primeira marcha já nasceu com tendência pluralista, agregando outras igrejas no Reino Unido e católicos na Irlanda. Rapidamente a Europa restante e a América do Norte adotariam suas versões do evento cristão.
Embora papeis paralelos fossem envolvidos, como campanhas solidárias, a principal função das paradas para Jesus foi mesmo a de efetuar uma propagação mais massiva da fé protestante em contexto de crescentes crises humanitárias como a migração de massas humanas para refúgio na Europa e nas Américas, por motivos de guerra ou ambientais/climáticos.
Brasil- o sucesso do evento nos países europeus e norte-americanos inspirou Estevam Hernandez, dono da Renascer em Cristo, a criar a nossa versão, com a primeira ocorrência em 1993, em mais de 100 cidades pelo país. E, tal como ocorreu no exterior, a nossa versão já nasceu com caráter plural.
Apesar de ser oficialmente um Estado laico, o Brasil tem a Marcha em seu calendário, conforme a lei 12.025, sancionada pelo então presidente Lula em 2009. Se bem que, a julgar pelos artigos, a lei não viola a laicidade, apenas reconhece o evento tal como o são os feriados e eventos católicos.
Embora as denominações das megacorporações agreguem mais de 70% do povo evangélico no Brasil, a versão brazuca atrai fiéis de aproximadamente 200 denominações (sério, algumas com nomes inimagináveis), algumas delas episcopais históricas.
A cidade que mais agrega pessoas nas marchas para Jesus é São Paulo, que em alguns anos atingiu marcas de até 3 milhões de pessoas, segundo dados da PM, que costuma escoltar a festividade.
No Oriente Médio- a princípio pode parecer estranho, mas marcha para Jesus também ocorre no Oriente Médio. Há uma importante parcela cristã, principalmente católica (romana em Israel, maronita no Líbano, Jordânia, Síria e Iraque, ortodoxa grega na Turquia e copta no Egito), mas há uma minoria protestante.
Como as populações são reduzidas nessas áreas, e há ameaças de grupos pró-islâmicos financiados por governos de alguns dos países, as paradas para Jesus são muito mais discretas do que no Ocidente e, daí não serem noticiadas, caindo no desconhecimento do senso comum ocidental.
Ironicamente, o cristianismo foi germinado não exatamente em Israel, mas na atual e muçulmana Palestina.
O bom e o ruim
Desde a primeira vez em 1993, as marchas para Jesus têm importante papel na atração de novos coletivos de evangélicos no Brasil, com um nível de pluralidade não visto antes, e na conversão mais ampla: hoje, acredita-se haver 60 milhões de brasileiros autodeclarados evangélicos.
Acredita-se, também, que a conversão de muitos ao protestantismo pentecostal tenha contribuído para o abandono de certos hábitos e vícios, como o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas, portas abertas para muitos casos de violência doméstica e outros delitos e descontroles.
Nesse olhar sobre vícios e delitos (inclusive violência doméstica), a evangelização pode ser vista como bastante salutar para os envolvidos, e relatos de esposas de automodificados pela nova fé são até comuns. Talvez isso fundamente a alimentação dos internatos de dependentes químicos como Manassés e correlatos.
Entre os jovens, a maior motivação para os que se decidem por frequentar as igrejas evangélicas e participar das marchas para Jesus pode ser a filosofia libertária de cristianismo, segundo a qual amor, boa vontade, justiça, solidariedade, verdade e visão equitativa das diferenças - que é ostensivamente pregada nas redes sociais.
Quanto aos costumes, a visão das denominações evangélicas atuais é bem mais liberal do que a da AD histórica e a dos Últimos Dias2. Pioneiras da corrente neopentecostal no Brasil, a IURD de Macedo e a Mundial do pastor Waldomiro têm moral flexível, tanto no plano individual quanto no social.
Tais denominações permitem uso de roupas mais sumárias como saia e bermuda acima do joelho, calças segunda pele, blusas e camisas sem mangas ou mangas curtas. Sexo antes do casamento já está normalizado entre os fiéis, pois não existe mais a antiga imposição da castidade pré-matrimonial.
Para os incautos, essa liberalidade aparenta uma atraente maravilha. Mas, será mesmo que é essa maravilha toda? E aquele suposto milagre do fim da violência doméstica, é algo real?
Não é 100% garantido
As tais revelações espirituais constituem a parte mais atrativa dos cultos pregados pelas igrejas das correntes pentecostal e neopentecostal. Essas pregações relevantes se reproduzem em espaços públicos, através, também, das marchas para Jesus.
Como citado acima, a referida filosofia libertária, que ao menos parcialmente explicaria a visão liberal de algumas denominações sobre os costumes e também é propalada nas marchas para Jesus, tem servido de isca eficiente para atrair os jovens no evento gospel público.
Para os incautos, essa liberalidade, que gera uma aparente maravilha atrativa, parece um milagre, uma poderosa isca, que reverte problemas antes tidos como insolúveis. Mas, será isso tudo mesmo? É algo a ser posto na mesa.
Vícios e violência- a predominância masculina entre os consumidores de álcool, tabaco e/ou mais drogas é um reflexo do patriarcalismo cultural, que faz entender nesse consumo a prova de virilidade e de "pulso firme" para provento e liderança familiar. Mas, este consumo pode ser problemático.
Deste consumo pode advir a dependência química, e/ou violência. Manifestada em vários delitos, a violência (como a dependência) é considerada pelo Ministério da Saúde um problema grave de saúde pública, vitimando membros mais frágeis das famílias e nas ruas, precisando ser reprimida por meios enérgicos.
Junto aos meios oficiais de coibição, a fé religiosa aparece como um complemento, a ser decisivo, entre muitos, para a resolução definitiva do problema. Muitos relatos de famílias aliviadas apontam paz doméstica após a conversão dos entes problemáticos à fé pentecostal.
Elas atribuem tal mudança atitudinal tão significativa à suposta interferência divina na vida desses entes - daí o relato ser para os fiéis um testemunho. Mesmo que saibamos do real mecanismo, devemos felicitá-las pela conquista: a intenção é que vale.
Todavia, a velha filosofia da atração dos opostos vale também na fé. Pois os relatos de fracassos são quase ou tão comuns quanto os de sucesso, interpretados pelos mais fervorosos como "a ação do inimigo". São aqueles casos graves, que precisam de outra interferência: a da ciência.
Estudo publicado na Hypeness (2018), voltada às minorias marginalizadas, revela uma realidade infeliz: cerca de 40% das mulheres vítimas de violência doméstica se declaram evangélicas. A autora do levantamento é a doutora em Teologia Valéria Vilhena, da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP).
Publicação feita no site do Senado em 2019 revela um aumento súbito da violência de gênero, em mais de 280% no período de 1 ano, entre dez/2018 e nov/2019. Outra publicação da instituição revela a continuidade do aumento, de 86% entre dez/2020 e nov/2021.
Uma observação importante, e que não costuma ser abordada pelas mídias, é que com um Brasil hoje cristianismo de 50% católicos e 50% evangélicos, a violência cotidiana aumentou, com destaque para os crimes de ódio, que vitimizam principalmente fiéis de matriz africana, LGBTQIA+ e os povos originários.
Politização- uma das liberdades da fé evangélica é a entrada na carreira política. Como já referido neste blog, não é nada amoral ou ilegal uma chefia religiosa investir na carreira política, e sua entrada é um reflexo natural presente no nosso contexto democrático, reforçado pela laicidade republicana.
A compreensão correta e imparcial de laicidade seria suficiente para impor os adequados limites, e os próprios políticos bíblicos no Congresso e Brasil afora sabem disso. Mas eles os ultrapassam, sem se importarem com as prioridades concretas, e desrespeitando descaradamente a Carta Magna.
Apesar da conivência de governos passados, as instituições funcionaram o suficiente para ignorar as muitas tentativas de interferências dos bíblicos nas decisões de Estado. A coisa passaria a mudar com a ascensão de um deputado que seria então alçado à presidência da República: Jair Bolsonaro.
Jair- embora a proximidade entre governantes e líderes bíblicos fosse anterior à era Lula, foi com Jair Bolsonaro que as marchas para Jesus se politizaram. Ainda deputado, Bolsonaro já atuava nelas, rezado por Malafaia e outros e discursando nos trios elétricos e palcos para a patuleia fiel.
Além dos eventos gospel, ele visitou as igrejas evangélicas, onde foi ostensivamente rezado pelos pastores e fiéis, e teve seus momentos de discurso. Foi através dessa estratégia que, com ajuda do curral eleitoral religioso, ele foi eleito presidente por uma parcela bem significativa da patuleia fiel.
Mas foi principalmente nas marchas para Jesus que Jair teve destaque político maior, tendo mais liberdade e tempo de se expressar, para uma plateia ainda mais numerosa. Desde 2018, as marchas têm sido palcos para os discursos pró-armamentistas e cristofascistas.
Reflexões finais
Vale refletir como, assim como o próprio mosaico religioso ao longo dos últimos 30 anos, marchas para Jesus também se modificaram em suas linhas gerais, tanto nos objetivos quanto nas intenções. Por falta de fontes sobre os discursos nas marchas estrangeiras, não foi possível compilar comparações com a versão brazuca.
É indiscutível o papel desempenhado pelas marchas para muitas famílias antes mergulhadas em angústia e trauma pela violência doméstica, induzida ou não pelos vícios, ainda que a violência contra a mulher seja ainda alta entre as fiéis evangélicas, conforme dados publicados pela Hypeness de 2018.
Ainda no plano social, o papel dessas instituições é igualmente incontestável no sentido de algumas pessoas terem conseguido ajuda de custo ou emprego via solidariedade coletiva, mesmo em si constrita à população protestante ou simpática ao protestantismo. Mesmo não sendo 100% garantido a todos.
É esse comportamento solidário dentro do círculo que se constitui como impulsionador do querer dos problemáticos cientes do inferno causado às suas famílias e desejam eliminá-lo, e daí a fé se segue em consequência direta. Essa ação social é incontestavelmente benéfica aos envolvidos.
Mas, principalmente no final da era petista, fatos políticos revelaram a face mal intencionada de muitos líderes e fiéis influentes, que Bolsonaro percebeu e disso se aproveita, transformando igrejas e eventos gospels em locais públicos em terrenos férteis para montar armadilhas contra fiéis mais pobres, que sustentam o erário público com impostos e as igrejas com seus dízimos.
Um dos sintomas tem sido o discurso pró-armamentista e cristofascista cheio de mentiras batidas, base da campanha de reeleição de Bolsonaro, como "salvação da pátria", nas marchas para Jesus e nos cultos, onde pastores caça-níqueis disseminam bravatas de ele ser "escolhido de Deus para consertar o país".
A reiterada má intenção compartilhada entre o presidente e os pastores caça-níqueis instituiuiu o clima cristofascista, que oportunizou uma geração materialista, arrogante e agressiva, protagonista de crimes potencialmente fatais de intolerância política. Essa geração se formou nas marchas para Jesus cristofascistizadas.
Como já escrito antes, o cristofascismo não foi só defendido pelo finado Olavo de Carvalho para ser propagado pelos Bolsonaro. Ele se tornou ingrediente ativo do bolo da teocracia de Malafaia, que tornou as marchas para Jesus nos centros de formação de novos cristofascistas.
Um dia Bolsonaro, Malafaia e sua caterva irão, como foi Olavo de Carvalho. As marchas de Jesus serão lideradas por outros pastores para a sua continuidade. Mas, elas podem carregar para a frente essa marca teocrática legada por aqueles, não sendo nunca mais as mesmas de antigamente.
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Imagens: Google (montagem: autoria deste artigo)
Notas da autoria
1. A marcha contempla diferentes denominações evangélicas, pentecostais e episcopais históricas, não havendo, portanto, segregação de denominação específica. No Brasil, as marchas atraem seguidores de denominações pentecostais.
2. A Assembleia de Deus dos Últimos Dias foi fundada pelo pastor Marcos Pereira, que ganhou fama por pregar em presídios, e anos depois foi preso por estupro de algumas fiéis.
Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcha_para_Jesus
- https://www.hypeness.com.br/2018/03/40-das-mulheres-vitimas-de-agressoes-fisicas-e-verbais-sao-evangelicas/
- https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/comum/violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher-2019
- https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/12/09/violencia-contra-a-mulher-aumentou-no-ultimo-ano-revela-pesquisa-do-datasenado
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2022/04/analise-teocracia-de-malafaia-e-seus.html
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