Brasil, 2018: após execução de Marielle Franco no Rio por milicianos e o controverso julgamento que prendeu Lula em Curitiba, o Brasil foi palco de longos meses de campanha para o que terminou sendo o pleito eleitoral mais atípico ou implausível da nossa história.
A turma de presidenciáveis de então não é muito distinta da de agora: Lula, Bolsonaro, Ciro, Marina, e tipos como Cabo Daciolo e Levy Fidélix, com os seus disparates, que causaram risos e certa simpatia entre alguns espectadores.
Mas, na era dos mensageiros instantâneos, outro nome imperou nos celulares e redes sociais: fake news.
Um cabo eleitoral intangível, mas constante
Durante a campanha, as fake news infestaram os mensageiros instantâneos dos celulares e redes sociais, acalorando o debate público. Após Lula sair de cena, a transmissão refinou ao definir os alvos principais das mentiras: PT e outras siglas de esquerda, Lula e os presidenciáveis Haddad e Boulos.
Os fatos eram visivelmente distorcidos, e a virulência e a diversificação das mentiras dificultavam as plataformas de checagem, ligadas geralmente à UOL, Globo, Folha de São Paulo, Agência Lupa, Poder360 e outras. Em solidariedade, as mentiras resolvidas eram repassadas por todas as mídias, de direita, esquerda e independentes.
A transmissão intensa e diária que derivou na expressão disparos em massa causou preocupação no PT e outras siglas de esquerda, que acionaram o STF alegando influência negativa na conduta coletiva dos eleitores, evidenciada em denúncias de ataques de bolsonaristas a eleitores de Haddad e Boulos, e até a quem usasse camisa vermelha ao acaso.
Embora cientes do valor dos mensageiros instantâneos como bancas de informações fresquinhas, os presidentes das siglas-alvos relataram desconfiar de financiamento privado nos disparos em massa - o que seria provado depois: pelo menos 12 empresas financiaram a campanha antipetista pelo WhatsApp.
Velha novidade- na prática, notícias falsas não são novidade para a patuleia em assuntos como os fatos de política, desde atos de governo à morte de políticos. Há inúmeros exemplos no conhecimento popular, já banalizados. Portanto, as mentiras de Bolsonaro são apenas exemplos mais recentes.
A novidade, típica da era digital, está em dois pontos: a expressão inglesa que caiu na linguagem popular, e pelo proveito dos mal burocratizados mensageiros instantâneos para realizar esses disparos em massa sem impedimento.
Resultantes da era digital e de fontes de origem diversa, inclusive estrangeiras, as fake news têm apelo sensacionalista em textos curtos, e são rapidamente divulgadas nas redes sociais e nos Zaps e Telegrams. Mas, em essência, são nome e modalidade de uma velha tática, um eficiente cabo eleitoral dos concorrentes.
2022: alterações na lei eleitoral e fake news
Elaborada pela assessoria jurídica do PT e tendo assinatura dos demais partidos alvejados pelas mentiras de campanha de Bolsonaro, a ação judicial serviu de subsídios em julgamento de um dos oito processos de irregularidade de campanha da chapa Bolsonaro-Mourão, pelo TSE.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, sentou sobre os muitos pedidos de impeachment esperançoso da condenação da chapa, e não por apoiar Bolsonaro. Com a absolvição, e o presidente suplicando para não ser impichado, Lira passou a cobrar, desde então, valores recordes para prestar apoio.
Absolvição- os processos contra a chapa Bolsonaro-Mourão foram julgados um a um. Em nítido contraste com o aparente silêncio e falas solenes dos ministros, havia um clima de tensão: era claro que nem todos os seis partícipes do julgamento eram favoráveis à absolvição. Ao ser condenada, a chapa é automaticamente cassada.
No caso da presidência da República, com a cassação da chapa, o sucessor legal é o presidente da Câmara dos Deputados. Por isso mesmo que Arthur Lira tanto torceu pela condenação. Mas, frustrada a sua esperança, voltou-se para o balcão de negócios mais caro da história do Legislativo federal.
Em meio às longas digressões juridiquesas dos ministros durante o julgamento da ação das fake news, que foi o mais conhecido popularmente, houve momentos de sobressaltos acalorados, partidos principalmente de ministros mais jovens, como Alexandre de Moraes.
Moraes se mostrou diversas vezes favorável à condenação da chapa por acreditar serem os prints de mensagens com notícias falsas obtidos pelo PT evidências suficientes como provas para condenação da chapa. Mas ele encontrou forte discordância de todos os cinco colegas da turma do TSE, presidido pelo ministro Luís Roberto Barroso.
Foi um momento de pressão tremenda sobre Moraes, que ao final pareceu ceder, mas ressalvando que, "nesse julgamento a chapa escapou, mas no próximo quem fizer campanha com notícias falsas vai ser cassado, vai ser preso". Uma pressão de Moraes em resposta à impossibilidade de virar o jogo.
Foi nesse clima e nesse peso que a chapa foi absolvida. Após os sorrisos comemorativos com o resultado, Bolsonaro lançou mão de conversar com Lira sobre como impedir o seu impeachment. Após o julgamento, os ministros do TSE se voltaram para a lei eleitoral.
Alterações na lei eleitoral- em dezembro de 2021, o TSE reeditou a lei eleitoral colocando novas alterações. Esta reedição contém destaques que, por enquanto, estarão válidas até 2030, mas algumas novas alterações podem ser tornadas definitivas ou não, dependendo das circunstâncias futuras.
Entre estas, se destaca a relativa a disparos em massa, responsabilização de provedores e a Lei Geral de Processamento de Dados (LGPD), federações partidárias, fundo eleitoral (e federações, origem e votos em dobro), expedientes eleitorais, showmícios e PIX para doações.
Como as fake news viraram questão central na eleição de Bolsonaro e entraram nos julgamentos e numa CPI no momento interrompida por conta de recesso e proximidade das eleições, a pertinente aos disparos em massa, responsabilidade dos provedores e LGPD é o destaque aqui.
A alteração não prevê punição da transmissão de mensagens das campanhas legais, permitindo ao eleitor conhecer as propostas e pensar sobre sua escolha. Mas prevê punição a disparos massivos das falácias e distorções que porventura incitem o eleitor ao ódio político, como as fake news de 2018.
Prevê punição a provedores de internet que não se responsabilizarem pelos envios de propaganda político-partidária, mediante informe ao usuário, e a identificação de mensagens desse teor. Informes exigíveis de CPF/CNPJ dos provedores devem ser atribuídos aos candidatos, partidos e coligações.
Vale também punição prevista aos provedores de internet que não se responsabilizem por falácias ou fake news contra candidatos ou seus partidos, como o acontecido em 2018.
Por fim, também prevê punição aos que porventura transmitirem propaganda político-partidária em telemarketing em qualquer horário, bem como disparos massivos sem anuência do destinatário.
Tais novidades serviram também como adendos ou alterações necessárias na LGPD, auferindo em nova atribuição dos profissionais que lidam com processamento de dados dos provedores de internet e de avaliadores de algoritmos nas redes sociais. Resta saber se isso será suficiente...
Mas, segue o desafio... e reflexões finais
São conhecidas de todos a organização e a eficiência do TSE na votação eletrônica (com sucesso globalmente reconhecido), na fiscalização a impedir transtornos durante expediente e, também, quanto às contagens auditadas dos votos, consolidando a vontade dos eleitores mesmo sem a vitória de seus escolhidos.
Apesar do vacilo de ouvirem às Forças Armadas, os ministros momentaneamente à frente do TSE até que têm se esforçado no sentido de poderem, na medida do possível, acalmar o ânimo gritante dos militares alinhados a Bolsonaro. Eles sabem que nem todas as azeitonas estão com o presidente.
Vale também reconhecermos o esforço deles, em especial de Alexandre de Moraes, que duramente reage à insistente estridência bolsonarista. E, mesmo cedendo na descrita absolvição da chapa, deixou claro seu desfavor ao veredicto e defendeu dureza contra os disparos de mentiras em massa.
Ah, e também valeu o esforço do PT e de outros partidos no que se refere à ação impetrada contra as milícias digitais e sua saraivada de fake news. Ela entrou como um dos elementos no julgamento da chapa Bolsonaro-Mourão e na CPMI das fake news.
Foi desse cadinho que resultaram as recentes alterações na legislação eleitoral, em especial a que se refere aos provedores de internet pelos quais as mentiras (e fatos) são disseminados. Todavia, o desafio continuará sobre os tribunais superiores. Por haver não um, mas milhares de disseminadores.
Como mostra a importante reportagem do The Intercept Brasil, os disseminadores de notícias (falsas ou não) em massa, conhecidos por robôs (bots, na linguagem das TICs), são cidadãos comuns. Assim como um assassino de aluguel mata a pedido de alguém, os robôs disparam mentiras de fontes criadas por provedor comum.
São cidadãos bolsominions fanáticos, conhecidos como "tiozões do zap" disparadores de notícias falsas. Eles querem convencer seus contrários de todas as formas possíveis: se fracassam no diálogo, vão para os disparos em massa. Alguns partem para a violência física, conforme fatos recentes.
Muitos atribuem serem eles pagos para disparar, mas não há provas materiais disso, exceto, quiçá, pelos grupos em assíduos contatos com políticos regionais sempre muito próximos de Bolsonaro. Mas ainda assim, faltam provas materiais desse financiamento.
Como mostra a matéria, eles constituem um grupo heterogêneo, com importante fatia evangélica, o que, nesta, se aponta a indiscutível influência de seus líderes pastorais para sua crença na presumida quase santidade do presidente da República, de forma que, talvez, nem lulista crê que Lula seja.
O que muitos disparadores populares de fake news talvez não saibam, ou se acreditem que tenham imunidade divina, que a transmissão de mentiras pode até incorrer em prisão por crime cibernético, conforme o Código Penal e reconhecido na LGPD. Na nova lei eleitoral, se relaciona às campanhas e incitação ao ódio político.
Disseminar links estranhos sem consentimento do destinatário não é novidade. Há 20 anos atrás já recebíamos nos e-mails e, depois, nos primeiros mensageiros instantâneos1 nos PCs. Foi uma vacina a nos prevenir de novos vírus cibernéticos. Todavia, a novidade é a "notícia" de virulência psicossocial.
Para a virulência dar certo, o conteúdo deve conter linguagem sensacionalista, preferencialmente com cores chamativas para aumentar o apelo convincente ao leitor. E nisso os criadores esperam um item essencial: a ignorância.
Em um vídeo, o finado Olavo de Carvalho disse que o melhor público para persuadir é o imaturo intelectualmente, receptivo, crente e ignorante, por ser mais influenciável e fácil de convencer. E, para repassar as ideias adiante, esse público deve recair sobre seus iguais. Daí o Brasil Paralelo ir cooptar os jovens nas favelas.
Assim como a finada política nazista deixou seu legado no neonazismo, o bolsonarismo vai se manter, com o beneplácito das TICs e de seus robôs. Daí, a mentira eletrônica e instantânea perdurará por muito tempo, com uma enxaqueca jurídica terrível. Só restará saber no futuro quem serão os alvos no pós-Lula.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1. Exemplos foram o ICQ (1998) e o MSN Messenger (anos 2000).
Para saber mais
- https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios-bancam-campanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml
- https://www.jota.info/eleicoes/eleicoes-2022-entenda-alteracoes-17012022
- https://theintercept.com/2022/07/27/bolsonaro-cidadaos-comuns-robos-whatsapp/
- https://www.youtube.com/watch?v=w8pm1ITix6o (O Historiador, "Brasil Paralelo quer entrar em favelas", de 21-/2021).
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