domingo, 18 de dezembro de 2022

Análise: em tudo Lula herda o nada

 

        Desde a derrota, Jair Bolsonaro calou os impropérios escatológicos contra os seus “inimigos”. Segundo aliados, a tristeza o domina. Tristeza sem espaço para o emotivo Lula, que trabalha puxado com o Gabinete de Transição (GT) a poucos dias do fim do ano.
    Com nomes da Frente Ampla e de vários ramos intelectuais e da arte-cultura, o GT observou dados que apontam um país arrasado nas áreas mais essenciais. Parlamentares da direita sugerem tempo de 1 ano para a PEC da transição devido ao teto dos gastos.
    A PEC do estouro (alcunha midiática) está acima do teto dos gastos de 2016, criada para manter mimos bilionários ao mercado financeiro em sacrifício das áreas essenciais e do congelamento salarial dos servidores que nelas atuam.
    O teto de gastos irrita Lula, mais por saber que o Brasil é o único país a ter um teto congelando o social em nome do sistema financeiro. Ambiciona findá-lo, mesmo sabendo que encontrará forte barreira no novo Congresso. Mas sua irritação faz sentido.
    Foi tantas vezes em nome do dispositivo que o ministro Paulo Guedes decretou um recorde de cortes de verbas em áreas essenciais, deixando o país de joelhos em grave crise interna, conforme dados fornecidos por DIEESE¹, TCU e outras entidades.

Min Saúde
    Muitos cortes e desvios de recursos ameaçaram a continuidade das unidades de saúde das três esferas e níveis de atenção. Referências em qualidade, hospitais federais passam estado de penúria, com emergências fechadas e sem manutenção estrutural.
    Após o 1º corte orçamentário na área, o decreto 10.185/2019 aprofundou o feito de Temer ao completar a extinção de cargos e proibir concursos públicos que preencheriam vacâncias que cresceram com as mais de 4000 mortes diretas pela C19 entre 2020-22.
    Tudo porque, além da extinção de cargos, o decreto acima mencionado proíbe a realização de concursos públicos para alcançar o suposto objetivo de redução de custo público "de acordo com o teto de gastos", o que sabemos não ser verdade.
    Por causa disso, o decreto piorou a defasagem de pessoal. Hospitais federais hoje passam por penúria e já faltam insumos básicos devido ao recorde de verbas para o setor. Gestores desqualificados de indicação duvidosa e corrupção pioraram a situação.
    Os cortes foram tantos que Farmácia Popular, oferta de fármacos para soropositivos HIV, transplantados e doentes crônicos pobres têm dificuldade de atender. O sigilo sobre vencimentos de vacinas põe em risco a validade dos poucos programas de vacinação ocorridos.
    Não bastando tantos desvios de verbas, a retirada de mais de R$ 1,6 bilhão em última hora ameaça os salários dos servidores: só restam alguns milhões, muito longe da realidade necessária de cobertura a todos. Ainda assim, a equipe de transição já estuda soluções.

MEC, Ciência & tecnologia
    A educação foi outro setor que trabalhou muito precariamente. Não só pelos cortes orçamentários recordes e a corrupção dos pastores com barras de ouro, nem só pela suposta plantação de maconha nas universidades públicas e polêmicas do ENEM. É tudo junto.
    Tanto as polêmicas do ENEM quanto a tal plantação que Weintraub não conseguiu provar serviram para distrair a patuleia sobre os desvios de grana pública que corroeram o setor e sucatearam as universidades públicas, maiores fontes de pesquisa no país.
    Escolas e universidades estão quase escombros enquanto a grana do MEC, em ato submarino, era dividida em compras de barras de ouro para pastores que infestaram a pasta e para o orçamento secreto que criou escolas sem alunos no sertão brasileiro.
    Assim como a prisão de Milton Ribeiro, o lance das barras de ouro foi posto em sigilo secular. E justamente por isso, tudo isso merece ser investigado, inclusive a procedência dessas barras. Afinal, tudo ocorreu "como o presidente quer", segundo áudio vazado do ex-ministro, um pastor presbiteriano.
    A defasagem de pessoal pelo citado decreto foi ferrada por muitas aposentadorias. Para piorar, os cortes foram tantos que reduziram a merenda escolar a biscoitos e suco em pó - que pode ser a única refeição diária para muitas crianças pobres.
    Último ato: durante um jogo do Brasil na Copa e após reitores das universidades ameaçarem paralisar atividades letivas e de pesquisa, foram raspados mais R$ 1,7 bilhão do cofre já praticamente vazio do setor. Isso até onde sabemos, certo?
    No campo da C&T foi até estranho. Não surpreende que um governo anticiência tenha dado desprezo ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) o tempo todo, e que o seu ministro esteve o tempo todo no mundo da Lua – afinal, ele foi astronauta.
    Pouquíssimos se deram conta do tamanho do rombo na ciência brasileira ocasionado pelos cortes sistemáticos dos recursos do MCTI. Instituições ligadas a esta pasta foram atingidas, com importantes pesquisas quase paralisadas. Institutos hospitalares também sofrem carências antes impensadas.
    Os cortes atingiram profundidade inaudita na C&T, ocasionando a fuga de muitos cérebros para o exterior, principalmente para a Europa e até para a China, que vive um boom em C&T. Institutos hospitalares ligados ao MCTI já sofrem com o último corte, que chegou a 97%.

Previdência
    A previdência não trata exclusivamente de aposentadorias. O INSS atende também na linha de benefícios de prestação continuada (BPC) a portadores de deficiência fora do mercado e idosos pobres, além do LOAS.
    Desde que passou a vigorar, em novembro de 2019, os dados orçamentários à previdência social passaram a ser menores, pois a reforma dificulta a aposentadoria. Segurados enfrentam desafios maiores para serem atendidos no INSS, com filas quilométricas antes impensáveis nas maiores capitais. 
    Os fatores principais são alta defasagem de pessoal (sem concursos) e cortes de verba. O corte foi tão profundo que os servidores restantes estão ameaçados de não receber salários e muitos atendentes terceirizados foram demitidos após finalização ou ruptura contratual da empresa contratada com o órgão contratante.
    Isso sem falar na grande patuleia de aposentados e pensionistas do INSS, também ameaçados de não terem seus benefícios por falta de verba. Em último ato, o governo liberou alguns pingados para atenuar, mas a ameaça persiste.
    Em tempo: a reforma da previdência de Guedes é um dos alvos da ambição de revogaço de Lula.

Infraestrutura
    Também teve recorde com Bolsonaro. Responsável por liberar recursos para serviços estruturais de toda obra pública, a pasta não ofertou reparos em hospitais, escolas, vias de transportes e outros. E cortes não bastaram aqui também.
    O Tribunal de Contas da União descobriu uma fraude de mais de R$ 1 bilhão em contratos de pavimentação ocorrida durante a gestão do ministro Tarcísio de Freitas, agora eleito governador de SP. A fraude recebeu a alcunha de Cartel do Asfalto.
    O cartel do asfalto se baseou em propostas de fachada e um rodízio combinado de empresas em pseudolicitação da Codevasf³. Sozinha, a construtora Engelfort ganhou mais de R$ 890 milhões. O The Intercept noticiou amplamente o esquema, que também foi “sigilado”.
    Esse esquema fraudulento bastante caro gerou uma sombra no próprio Tarcísio, que contou com a rápida degradação da memória dos paulistas quanto ao tema para se eleger. Afinal, ele era gentilmente chamado por aliados de “Tarcisão do Asfalto”.
    A supracitada fraude é apenas um grão na turbulenta areia. Com ou sem Tarcísio, em toda a era Bolsonaro não houve uma obra de reparo ou pavimentação sequer, e por conta disso o estado delas piorou nesses quatro anos, com ajudinha das chuvas.
    Ah, sim. Muitas obras que teriam se iniciado no governo, maquiadas por fake news com fotos de obras prontas da era petista, mal deram pro começo e muitos não sabem do que elas tratam.

Ministério do Meio Ambiente (MMA)
    Erroneamente considerado não essencial, o meio ambiente é grande preocupação do novo governo, que herda um MMA desfalcado de pessoal, sem recursos financeiros e uma coleção de muitas ilicitudes. Recorde, o corte orçamentário para 2023 é de 60%.
    Multas suspensas somando R$ centenas de milhões; extração descontrolada/ ilegal de recursos florestais; licenças ilegais para mineração; invasão e grilagem de terras proibidas por lei; tráfico de recursos florestais e minerais, tudo incentivado de Brasília.
    Um dos fatos marcantes foi a operação do Ibama que descobriu a "sociedade" de nomes como o ex-MMA Ricardo Salles e deputados bolsonaristas no tráfico de madeira amazônica, que custou a saída do delegado da PF Alexandre Saraiva, responsável pela operação, para Volta Redonda por ordem do governo.
    Com incentivos governamentais, milícias regionais proliferaram para a prática dos crimes citados e, quando necessário, homicídios de lideranças tradicionais, indígenas e indigenistas tendo-se, entre muitos casos, os de Bruno Pereira e Dom Philips.
    Desde 2019, só a Amazônia foi tão devastada que hoje alcançou nível limítrofe. Durante a corrida eleitoral, analistas estimaram que, se reeleito, esse governo colocaria o bioma irrecuperável em menos de 1 ano, considerando-se o ritmo atual da agressão.
    E última notícia: o governo liberou as terras indígenas para a mineração e extração de recursos biológicos. A vingança final de Bolsonaro contra a multa a ele aplicada por pescar em área proibida anos atrás. E mais um trabalho para Lula revogar – se o STF não o fizer antes.

O CAMINHO A SEGUIR (reflexões finais)
    O GT foi criado por Lula para atividades de nível voluntário e temporário, e tais atividades visam o levantamento de dados fechados nos últimos quatro anos e perspectivas para o próximo governo.
    Em indicações basicamente qualitativas, os fatos acima mencionados estão referenciados em fontes e tratam de apenas alguns exemplos entre muito mais coisa que o GT levantou em suas percepções. 
    Na saúde, a reunião do GT da Saúde com Queiroga foi estranha. As fontes noticiosas se limitaram a mostrar o contraste entre os disciplinados lulistas de máscara e o ministro e colegas de caras limpas. O diálogo parece ter sido pouco ou infrutífero, pois o GT descobriu um verdadeiro apagão de dados.
    Sim, apagão. Como disse o então coordenador Aloísio Mercadante numa coletiva, não havia política de imunização, ou de saúde educativa na atenção primária, atenção a endemias negligenciadas, nem dados orçamentários. Isso prova que a reunião com Queiroga foi mais protocolar do que útil.
    Sobre o apagão de dados disse o vice eleito Geraldo Alckmin: "não foi encontrado um programa de vacinação, previsões orçamentárias, nada. Teremos que recomeçar do zero". A afirmação é clara: outros setores também tiveram apagões. 
    A concentração de políticas públicas no "superministério" da Economia já demonstrava o objetivo de desmonte do serviço público a partir do engessamento de políticas socialmente nevrálgicas e dos salários dos servidores públicos, para dar caminho à sonhada reforma administrativa (PEC 32).
    Guedes fez isso calculadamente: ele já sabia que o congresso resistiria contra a PEC devido à pressão dos servidores públicos, que já ameaçavam se unir em uma greve geral, anterior à sangria do caráter do governo pela CPI da C19 e outros muitos escândalos revelados pelas mídias.
    Aliás, até nisso a CPI da C19 teve uma vitória particular, apesar da omissão investigativa de Augusto Aras: ela ajudou a pavimentar o caminho eleitoral que viria. Foi nela que o monólito bolsonarista deu início de fragilidade para ruir o Brasil bolsonarista no fim de 2022.
    Por isso digo que a missão do GT de Lula foi pesquisar para comprar materiais "0 km" para que um novo Brasil possa ser construído. Com tantos estragos encontrados, Lula não vai reconstruir, como diz, mas sim construir um novo Brasil para resgatar o Brasil pré-Bolsonaro. 
    Vai nessa, Lula. O caminho a seguir é muito longo, mas não desista. Afinal, o senhor deu sinais de ser brasileiro que não desiste nunca. Vai que é tua!

Imagem: Google

Notas da autoria
¹ Departamento intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, com dados mais realistas na área.
² CTU = contratos temporários da União, dispositivo criado na era FHC para cobrir situações de calamidade pública em saúde.
³ Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, no Nordeste.

Para saber mais
- https://epocanegocios.globo.com/brasil/noticia/2022/12/apagao-de-dados-no-governo-bolsonaro-ameaca-sus-e-vira-entrave-para-lula.ghtml
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/12/14/brasil-tem-261-mortes-por-covid-em-24-horas-media-movel-vai-a-114.ghtml
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/01/4899063-planalto-impoe-sigilo-de-ate-100-anos-a-cartao-de-vacinacao-de-bolsonaro.html
- https://revistaforum.com.br/meio-ambiente/2022/12/12/bolsonaro-libera-pratica-de-extrativismo-nociva-ao-meio-ambiente-no-apagar-das-luzes-128540.html
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10185.htm (extingue cargos)
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/10/10/interna_politica,1405118/cartel-do-asfalto-fraudou-licitacoes-de-r-1-bilhao-no-governo-bolsonaro-a.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário

CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

  A GUERRA POVO X CONGRESSO                     A derrota inicial do decreto do IOF do governo federal pelo STF foi silenciosamente comemo...