domingo, 19 de fevereiro de 2023

Análise: E as Forças Armadas, heim?

 

           Assim que teve conhecimento da dimensão da tragédia do poro Yanomami, Lula foi acompanhado de alguns ministros a Roraima para ver as coisas de perto e conversar diretamente com as lideranças locais. Com estas soube detalhes desta dimensão e de imediato um plano audacioso de emergência veio à mente.
                O Ibama retorna com mais agentes armados e munidos de explosivos para incendiar equipamentos e aeronaves clandestinos. Mesmo assim, o órgão não resolve o problema todo. Aí entra a PF em ações de polícia (prisão de criminosos, apreensão de materiais), assistência por equipe médica, e logística das Forças Armadas.
                Houve boa cobertura midiática sobre a emergência decretada pelo governo federal na atuação somada do Ibama, SUS e Forças Armadas, no transporte de indígenas doentes à unidade de Surucucu, e fornecimento de alimentos. Mas houve lacuna sobre a participação logística primordial dos militares.
                Essa atribuição normalmente garante sobrevida dos povos indígenas que, por força de eventos sazonais e climáticos tenham dificuldade de obter caça, pesca e colheita em suas terras e precisam de assistência externa, inclusive na saúde. Mas, após 2 pedidos formais da Funai, não houve a efetividade logística esperada.
                Reportagem exclusiva da BdF teve acesso aos dois pedidos da presidenta substituta da Funai, Janete Carvalho, remetidos ao chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), Renato Rodrigues de Aguiar Freire, almirante de esquadra.
                O primeiro pedido de entrega de quase 5 mil cestas básicas foi assinado em 31/1, e o segundo em 10/2. Ambos tinham cronograma detalhado de transporte e entrega, “com devido número de cestas e periodicidade de entrega a cada comunidade Yanomami”. A matéria ainda cita que as cestas já estavam em Boa Vista.

Insuficiência/demanda
                Em visita à terra indígena Yanomami em janeiro, a DPU¹ denunciou a “absoluta insuficiência do número de aeronaves disponíveis para distribuição de alimentos e medicamentos” e solicitou mais aeronaves, justificando que “caso não ocorra, estaremos diante de uma tragédia sem proporções”.
                A situação é dramática. Já à frente da Funai, Joênia Wapichana endossou a DPU, ao salientar que as 105 toneladas de alimentos nas últimas 3 semanas aumentarão para 280 toneladas mensais, em decorrência da dimensão da demanda das comunidades – a crise humanitária pode não ter sido totalmente mensurada.
                Além da demanda, a Funai justificou o aumento do número de aeronaves visando a integridade dos agentes públicos envolvidos, dada a grande chance de retaliação por grupos criminosos armados camuflados pela floresta mais densa, após iniciado o desmonte dos materiais clandestinos pelo Ibama e pela PF.
 
Recursos
                As denúncias da DPU e da Funai sobre insuficiência de aeronaves das Forças Armadas se reforçam em compreensão pública, bastando rememorar o desfile de tanques flatulentos em 7/9/2021, alvo de memes que repercutiram até lá fora e denunciaram a carência severa de recursos nas Forças militares.
                Não que o setor não tenha recebido recursos financeiros. A era Bolsonaro o proveu bem, mas o quase total do montante se direcionou aos salários e benefícios das altas patentes, em detrimento das necessidades das casernas, nas quais a galera das baixas patentes era liberada na hora do almoço por falta de comida.

O livro
                Mas o mau direcionamento da grana parece não incomodar os militares, cuja frieza em relação à tragédia indígena foi percebida, e tem outra influência: o livro A farsa Ianomâmi, de Carlos Alberto Lima Menna Barreto, falecido coronel gaúcho, paraquedista da Arma de Infantaria do Exército.
                Publicado pelo Exército em 1995, o livro reflete a visão ideológica e de mundo dos militares: a floresta é um inferno verde a ser explorado, e os indígenas, integrados ao universo branco. Justificando o título, o autor diz que o povo Yanomami “não existe”, é “uma farsa” dos estrangeiros para “se apossarem da nossa Amazônia”.
                Em referência a essa suposta farsa creditada a Menna e repassada à cultura das Forças Armadas, a capa do livro tem uma gravura bem sugestiva, em que um homem branco, louro e de olhos claros sugerindo ser do Norte da Europa, segura uma máscara supostamente representativa de um indígena Yanomami.
                A tiragem de 3000 exemplares teve como principais consumidores os próprios militares e familiares, mas foi suficiente para causar estrago ideológico em civis próximos dos militares e suas famílias. Por outro lado, há outra publicação reveladora da indiferença dos militares em relação aos indígenas.

Massacres pela ditadura
                Em 2012, o governo Dilma criou a Comissão Nacional da Verdade, com a intenção de levantar e punir militares que torturaram e assassinaram as vítimas da ditadura. Mas só o falecido coronel Brilhante Ustra foi confirmado torturador; o restante continua impune, mesmo pós-mortem.
                A grande mídia apontou as centenas de vítimas da ditadura como opositores políticos confirmados ou suspeitos – todos não indígenas. Enquanto isso, revistas romantizavam o “desbravamento no inferno verde” em nome “da civilização e do progresso”, segredando os fatos surreais manchados de sangue.
                Segundo a ótica dos militares, para “civilizar o inferno verde” era necessário “fazer ajustes”, para rasgar a floresta pela (até hoje) barrenta Transamazônica e garimpar preciosidades nos rios e matas. Entre os “ajustes” houve, entre outras atividades, “integrar os índios na civilização” ou – se for o caso –, mata-los.
                Com 26 volumes e 5.492 páginas, o relatório paralelo da Comissão da Verdade aponta 8350 vidas indígenas ceifadas pelo Estado militar em nome do capital (inclui o emergente agro), além de supostas participações com militantes de esquerda em guerrilhas na floresta, como a do Araguaia, que também envolveu camponeses.
                Os métodos foram diversos: chacinas por tiroteios e facadas, esbulhos de terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos. A remoção forçada era por dinamite e venenos atirados dos aviões diretamente sobre as aldeias.
                Os números de mortos entre os povos foram os seguintes: Cintas-largas (MT, 3500); Waimiri-Atroari (AM, 2.650); Tapayuna (MT, 1.180); Yanomami (AM/RR, 354); Xetá (PR, 192); Panará (MT, 176); Parakanã (PA, 118); Xavante Marãiwatsédé (MT, 85); Araweté (PA, 72) - 72 e Arara (PA, 14).
                No relatório, chefiado por Jader de Figueiredo, consta-se que 132 militares foram denunciados pelas graves violações a direitos humanos, mas nunca foram punidos de fato. Já os servidores do antigo SPI² foram exonerados por crimes administrativos e contribuição indireta para os massacres.

Resistência ideológica
                Mesmo com tanta exposição documentada, os militares ainda aparentam dificuldade em reconhecer a legitimidade dos povos originários. Mesmo não sendo genérica entre os militares, a ideologia anti-indigenista é resistente em uma parcela do alto oficialato remanescente dos anos de chumbo.
                Um reflexo dessa resistência ideológica na cultura militar se revelou através de Jair Bolsonaro ainda na época de deputado federal, quando discursou, na tribuna da Câmara, que "a cavalaria brasileira foi incompetente por não ter conseguido acabar com esse problema (os indígenas)", em 1998.
                Se os princípios constitucionais tivessem sido levados à risca pelos congressistas, Bolsonaro já teria sido alvo de cassação e até de inelegibilidade. Mas foi ignorado, subestimado como uma piada de mau gosto, até ser eleito à presidência, exercendo um governo de molde nazifascista e de deterioração institucional, social e econômica.
                Talvez isso explique porque cerca de 85% das cestas básicas da política emergencial do governo ainda estão no galpão militar em Boa Vista: segundo matéria do The Intercept Brasil de 16/2, apenas 761 das 4.904 cestas básicas foram entregues, deixando 243 comunidades indígenas no território em contínua aflição.
                Embora tenha gerado impacto positivo entre a maior parte da população por suas ações enfáticas em início de governo, Lula segue sendo cobrado de perto e constantemente por diversos segmentos da população. Mas não se vê o mesmo com os militares. O governo está fazendo a sua parte. E as forças armadas, heim?

Notas da autoria
¹ Defensoria Pública da União
² Serviço de Proteção ao Índio, fundado em 1910 em inspiração do marechal Rondon.

Para saber mais
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgxn8l41x24o (livro A farsa Ianomâmi, de Mena Barreto)
- REINA, E. O relatório que apontava há 56 anos maus-tratos a indígenas e descaso de militares. BBC News Brasil, 24 de janeiro de 2023. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64384247
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