Por trás da bobagem, o
problema
Brasília, 8/3/2023. Homenagens de praxe de Lula, do
Legislativo e do Judiciário se seguiram. Na tribuna da Câmara federal, Nikolas
Ferreira (PL-MG) solta um discurso inesperado (resumido):
“Já que não estou no meu lugar de fala, então tenho
uma solução” – veste a peruca e continua. – “as mulheres estão perdendo
o seu espaço para homens que dizem ser mulheres, pois eles querem impor o que
não é realidade”, em clara apologia à transfobia e ofensa às colegas de casa Erika Hilton (PSOL) e Duda Salabert (PDT).
Mas o discurso foi também machista: “mulheres,
tenham filhos, amem a maternidade, pois assim vocês porão nova luz no mundo e
se tornarão mais valorosas”. Como se a maternidade – para sobrecarregar
mais ainda a Terra – fosse a solução obrigatória para o que ele enxerga como
problema.
O furor seguinte foi tão forte que Maria do Rosário
(PT-RS) mal conseguiu acalmar os ânimos. Tábata Amaral pediu questão de ordem
para retirar a fala, e uma notícia-crime foi assinada e remetida ao STF para
julgamento. Após a análise da notícia crime, sortearam o relator: André Mendonça, o “terrivelmente
evangélico”.
A reação não reside só na intolerância de gênero.
Também foi por não ter sido homenagem, mas uma ordem dirigida às mulheres, que
revela a vivacidade da extrema-direita e os problemas advindos.
Redes sociais- são hoje o termômetro
popular sobre fatos e pessoas, para governos de ocasião e atuação das
instituições públicas. Parte dos internautas crê que a fala foi apenas “bobagem
para causar”, alguns deputados a mesma coisa, e também uma chuva de
críticas.
Parlamentares bolsonaristas defenderam Nikolas: “liberdade
de expressão”, “ele falou o que tá na bíblia”. O presidente nacional
do PL, Valdemar da Costa Neto, soltou nota de apoio no Twitter. Enquanto isso,
Nikolas sorri: ganhou mais de 46 mil novos seguidores nas suas redes sociais. Conseguiu "causar" como quis.
A alta de novos seguidores pode ser enganosa: podem não ser humanos. Nas redes bolsonaristas, os robôs proliferaram para invocar recordes de curtidas ou supostos seguidores de suas páginas, para angariar humanos novos na fileira. É aí que reside a preocupação maior das esquerdas.
Perigo subjacente- Nikolas ficou famoso após
filmar aluna trans em banheiro feminino de uma escola, e como deputado recebeu
mais curtidas e elogios em redes sociais.
Grande parte dos internautas acredita que a fala do
deputado é só a nova geração de balelas típicas do bolsonarismo. Muitos colegas
de tribuna pensam o mesmo, enquanto os governistas rejeitam o rótulo elogioso.
O que pode ser uma temeridade. Tomemos o exemplo de Jair Bolsonaro.
O perfil ideológico de Bolsonaro nasceu no início da
vida política em 1990. Desde então ele ganhou um público fiel que alavancou a
sua carreira até chegar à presidência e pôr parte do projeto nazifascista em
prática. Para isso, ele teve um fator favorável: ser invisibilizado pelos
demais graças às suas falas.
Ser subestimado tornou tranquilo para Bolsonaro construir o seu ideal
e angariar mais e mais fãs através do ciberespaço, enfim presidente, legitimar o preconceito. Hoje ele está
fora, mas deixou o ovo da nova geração nazifascista que, nas redes e no
congresso, acaba de eclodir.
Ainda há como “matar” os filhotes, e tem que ser
agora, antes que o Brasil afunde de novo.
Sal Ross (reflexão)
----
Nikolas e a luz inédita da transexualidade
O discurso de Nikolas Ferreira (PL-MG) de "homenagem" ao Da da Mulher foi medonho,
dada a injeção para mais violência contra a galera trans e as mulheres. Mas o
furor desencadeado entre o plenário – com exceção dos bolsonaristas – colabora,
junto à exposição do próprio discurso, o fomento da reflexão sobre a transexualidade.
Embora muito falada, a transexualidade ainda desperta
dúvidas: é um fenômeno psíquico íntimo ou uma orientação sexual nova? Travesti
e trans são a mesma coisa?
A princípio, transexualidade se relaciona à transexualização,
que é o uso permanente de fármacos hormonais com ou sem cirurgia genital,
decorrente da autoidentidade como sendo do sexo oposto. Antes eram os travestis
a vestirem e viverem como do sexo oposto, mas o termo já foi jocosamente usado.
O direito ao atendimento pelo SUS fez com que pessoas
trans pudessem realizar sua mudança. Mas o ataque ideológico da era Bolsonaro
influenciou na consciência de médicos e de juristas sobre esse direito, e ainda
incitou a violência urbana contra a vida dessas pessoas.
E ainda permitiu que a indústria farmacêutica fosse à Justiça para que houvesse permissão de aumentar os preços dos fármacos hormonais - e conseguiu o "direito" a acréscimo hiperinflacionário de mais de 300%.
Negativismos à parte, o bolsonarismo ironicamente fez
a galera trans mais visível. Após a estreia do homem trans Tammy Miranda na
vereança paulistana, duas mulheres trans foram eleitas deputadas federais – o
que pode facilitar alguma coisa para a população trans.
A maioria das pessoas trans é vulnerável: sem
qualificação profissional nem trabalho regular, a prostituição é um ganha-pão
comum. Muitas delas moram nas ruas. Retornando pela diversidade, Lula pode dar
novas chances para esse e outros segmentos da comunidade LGBTQIA+.
Diante disso, é ironicamente possível agradecer a
Bolsonaro e à sua caterva da extrema-direita, pela grande oportunidade política
para a população trans. Mas ainda há um desafio muito difícil à frente, que é vencer
a tenaz barreira do moralismo recrudescido pelo bolsonarismo, e a consequente
violência.
Sal Ross (reflexão)
----
O debate político de
Duda Salabert
Ainda são sentidos os ecos da repercussão do discurso
de Nikolas Ferreira (PL-MG) no Dia da Mulher. A cacofonia ficou amplamente
consolidada graças à defesa de alguns colegas bolsonaristas, como Zé Trovão e Maurício
do Vôlei, e réplicas de governistas na Câmara e no Senado.
As réplicas dos governistas – em especial mulheres –
por sua vez encontraram eco fora da Casa, inclusive das deputadas trans Erika
Hilton (PSOL) e Duda Salabert (PDT-MG), que foram alvos da ofensa do jovem
bolsonarista e não o replicaram diretamente.
Em entrevista recente à BdF (link abaixo), Duda Salabert
apontou que a transexualidade é apenas um dos indicadores do preocupante decrepitude
do nível do debate entre aqueles que que foram eleitos para criarem as leis que
podem ou não decidir pelos rumos da nação.
Ela aponta como fator determinante dessa queda de nível
o caráter escancaradamente ideológico dos discursos e até mesmo nas apreciações
de textos de propostas pelas comissões – o que decide muitas vezes por decisões
temerárias para o futuro.
E tem ciência de sua missão: “Eu tenho uma
responsabilidade muito grande e isso tem que se traduzir em política pública de
qualidade. Um processo legislativo maiúsculo é o que a gente vai fazer”.
Por “política com P maiúsculo” ela traduz em fomento
por um debate eminentemente político, no qual ser politicamente conservador –
uma tradição histórica no Congresso – não precisa ser um problema ao ponto de travar
decisões para mudanças necessárias.
Ou seja, tomando-se o exemplo da transexualidade, da
fala da deputada se depreende que a turma conservadora pode por direito expor sua
contrariedade desde que argumente com inteligência e possa dar uma luz
contributiva para construir soluções para problemas cotidianos enfrentados pela
galera trans.
A fala dela é lógica e revela que o debate político é saudável
para a democracia. O problema é que, para que o nível desse debate suba para
político com P maiúsculo, muitos nomes eleitos nessa legislatura atual não possuem
a mínima credencial para alcançar esse nível. E geralmente são conservadores nos
costumes e bem neoliberais.
Para saber mais
----
Nenhum comentário:
Postar um comentário