quarta-feira, 8 de março de 2023

CURTAS 23 - feminismo e mulheres

 

A eterna luta do feminismo

                Por milênios, as sociedades humanas vieram, floresceram, sucederam e desapareceram. E as culturas atuais um dia terão um fim – não sabemos quando nem como – e deixarão para o futuro distante as TICs como marca tão indelével quanto o são a arte, os utensílios e a arquitetura das civilizações que se foram.
                Registros de muitas culturas pretéritas nos revelam já haver divisões nas relações e papeis sociais dos gêneros, com a suposta superioridade masculina entre assírios, hebreus, gregos e romanos, equilíbrio entre os egípcios, celtas e germânicos, e até a raríssima sobrevalência feminina na civilização minoica.
                Se verificaram aí diferentes posições femininas, mesmo tendo o matrimônio uma afinidade importante em comum. Exceto, talvez, por pontos fora da curva como a matemática Hipátia de Alexandria, executada por seu saber, não há registro de luta feminista de fato.
                Visando a igualdade social e relacional de gêneros, o feminismo tem origem incerta: pode ter nascido de um insight em alguma mulher durante a Revolução Francesa, ou inspirado em vento marxista no sujo chão de fábrica londrina do séc XIX que explorava mulheres e crianças.
                Atribui-se à francesa Olympe de Gouges, autora de Declaração dos direitos da mulher cidadã (1791), e à inglesa Mary Wollstonecraft, (Reinvindicação dos direitos das mulheres, 1792) contestando os pensadores iluministas que subestimavam as mulheres, os primeiros ecos. Mas o movimento sufragista (1897) foi mais longe, quando a Emily Davydson se jogou debaixo do cavalo do rei da Inglaterra em 1913.
                Em 8/3/1914 nos EUA, um incêndio proposital numa fábrica matou várias operárias que lutavam por paridade aos homens nas condições salariais e de trabalho. Elas não sabiam que seriam homenageadas pela ONU pelo Dia Internacional da Mulher em 8/3, e que abriram portas para o feminismo moderno.
                As transformações na 2ª metade do século XX favoreceram a 2ª onda feminista (antipatriarcal) e a 3ª (inclusiva de classes populares, não-brancas e lésbicas), e no século atual, a 4ª onda, que se relaciona às TICs.
                Liberal- busca igualdade plena, reconhecida na legislação; inspirado em Mary Wollstonecraft.
                Marxista ou socialista- sem pensar em feminismo, Marx e Engels viam mulheres e homens em pé de igualdade nas lutas de classe, mas sem adentrarem em termos de direitos sexuais.
                Interseccional- se baseia nas lutas particulares de cada grupo feminino singular: mulheres lésbicas, originárias na luta pela terra, transmulheres¹, são exemplos interseccionais segundo Kimberlé W. Crenshaw, socióloga estadunidense, criadora da teoria que estuda esse movimento.
                Negro- reúne as mulheres pretas, que lutam por igualdade de visibilidade, de salário, de carga horária, no atendimento dos serviços públicos, de acessibilidade nas universidades, etc.
                Ecofeminismo- luta pela igualdade de mulheres e homens nas relações com o meio ambiente, já que elas também atuam diretamente para a subsistência.
                Radical- vê o gênero como criação da cultura patriarcal e acredita que somente com a eliminação da dominação masculina se conseguirá igualdade. Para tanto, portanto, é preciso abolir o gênero para o objetivo.
                Feministas e aborto- os nazifascistas sempre dizem que as feministas “são abortistas”, como se elas o praticassem como entretenimento. Pessoas de sã consciência sabem que é uma mentira criminosa. Noutro lado é certo que elas defendem ser o aborto um problema de saúde, ou uma decisão exclusiva da mulher.
                O aborto (ver adiante) é o ponto quente, o hot spot no qual o feminismo encontra reprovação entre as mulheres pró-vida, e não a luta feminista propriamente dita. Por outro lado, pode haver incompreensão no fato de que o que o feminismo quer é a democratização dos direitos sexuais e reprodutivos, e é aí que entra o racha.
                Enfim, o feminismo é uma luta constante e árdua. O dia #8M não dá espaço para comemorações.

Nota da autoria
¹ pessoas do sexo biológico masculino, mas que se consideram mulheres, se travestem e vivem como elas e adotam nome social feminino.

Para saber mais
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Reflexão
Aborto: contradições e políticas 

                Se existe um tema que levanta muita polêmica no Brasil, este é a interrupção da gravidez ou aborto. Essa polêmica não é exclusivamente masculina, nem heterossexual. Ela atinge todos os gêneros e a orientação homossexual. E também abrange todos os países, mesmo onde há censura férrea.
                No Ocidente é ainda comum o homem se dizer contrário ao aborto, mas não reconhecer a paternidade do futuro bebê que a namorada, ficante ou amante espera e dá dinheiro para ela abortar, em geral numa clínica de saúde privada ou clandestina, com risco sobre a fertilidade ou a vida da gestante.
                Autoridades e líderes religiosos sabem do problema, mas em geral o acobertam, caso o homem ou casal seja abastado, e por desigualdade de gênero (é fácil culpar a mulher, mais ainda se for pobre e não-branca). E, paradoxalmente, muitas mulheres internalizaram essa cultura, acusando as gestantes que porventura abortem sob essa pressão.
                Para muitas pessoas, a controvérsia no tema é tão forte que torna difícil argumentar a favor ou contra. E quem argumenta encontra alguma discordância em entidades sociais e institucionais. E até no meio jurídico. Não importa se é a favor ou contra: tal dificuldade alimenta a controvérsia, pois se limita o debate ao conceito de prática voluntária.
                A limitação acima é usada para facilitar propósitos legais e políticos. Se de um lado delimita melhor as restrições e permissões legais em interromper a gestação, por outro se torna um mote fácil para justificar atos de extremismos ideológicos, bastando ocultar o aborto como fenômeno – aproveitando-se o desconhecimento.
                Como fenômeno, a literatura científica o define como aborto espontâneo¹, e entidades médicas ainda alertam ser um importante problema de saúde pública, devido à sua natureza inesperada e traumatizante sobre a gestante ou o casal em expectativa, e, principalmente, por ser mais comum do que se imagina.
                Já visto em outras espécies animais, o aborto espontâneo tem várias causas, como alguma condição uterina, forte e repentino estresse da gestante, e anomalias genéticas ou congênitas incompatíveis com a vida e/ou que arriscam a vida da gestante. Destas últimas, a sua raridade na população geral é estimada em pessoas vivas.
                O organismo da mulher é inteligente em detectar anormalidade embrionária incompatível com a vida do ser em formação, e o aborto acaba se tornando um fenômeno naturalmente eugênico e terapêutico mesmo que a gestante queira levar a gravidez a termo. E isso pode ser mais comum do que se imagina.
                Legislação brasileira- polêmica à parte, a nossa legislação prevê condições legais para aborto desde o código penal de 1940. Este previa interrupções por estupro e risco de vida da gestante. Décadas depois, o STF incluiu permissão também para a anencefalia, grave condição congênita/genética geralmente incompatível com a vida.
                Feita após debates com médicos, a decisão foi um avanço: a anencefalia pode gerar risco à gestação ou à vida da mulher. Mas ficou apenas nessa anomalia, havendo necesidade de mais debates médicos na jurisdição para outros casos clínicos similares, uma vez que o aborto espontâneo é mais comum do que o voluntário.
                Tomemos dois exemplos de anomalias conhecidas dos geneticistas clínicos: a síndrome de Patau ou trissomia do cromossomo 13, e a de Edwards ou trissomia do 18, de respectivas gravidades tão bizarras que o índice de abortos espontâneos pode ser altíssimo: Os raros bebês ou são natimortos ou morrem ao nascer.
                Ainda não há dados estatísticos confiáveis sobre a relação entre o número de nascimentos de anômalos e fatores de abortos espontâneos excluindo-se fatores físicos e químicos. É crível que a ocorrência de embriões geneticamente anômalos seja mais comum do que imaginamos, mas a subnotificação dos casos espontâneos é muito grande.
                Em face dos seus riscos, considerar aborto um grave problema de saúde pública é mais importante do que as subjetividades morais. É necessário desmistificar e democratizar a informação  no âmbito científico para expor os abortos espontâneos e eliminar ideologias extremistas.
                Isso facilita reconhecer que, em sã consciência, ninguém é afeito ao aborto como se diversão fosse. Não existe essa baboseira moralista. O que existe é um problema de saúde que merece mais atenção e estudo, e que temos que entender que cada mulher é dona de seu próprio corpo.

Nota da autoria
¹ essa definição torna o aborto objeto de vários estudos na genética e na elucidação de fatores e consequências.
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Lula III e os limites femininos

                O governo Lula começa com um recorde de mulheres na sua equipe, com três delas protagonizando no ineditismo: Sônia Guajajara no novo Ministério dos Povos Indígenas; Joênia Nísia Trindade na Saúde, Simone Tebet no Planejamento e Joênia Wapichana à frente da Funai. Fora o próprio Lula em seu 3º governo por voto popular.
                Pode ser que, com essas e outras representantes femininas na sua equipe (só de ministras são 11, além da forte figura da primeira-dama), o presidente reforce a sua mensagem pró-feminina projetada em campanha. Ou seja, ele parece sinalizar para políticas públicas direcionadas ao público feminino, como o combate à violência de gênero.
                De fato, Lula reconhece que o eleitorado feminino – incluindo uma significativa parcela evangélica – foi em parte responsável pela sua vitória eleitoral, apertada por todas as tentativas de fraude pelo adversário, cujo governo atacou os direitos femininos ampliando a normalização da violência de gênero no país.
                Por essas motivações, Lula quer responder através da restauração das políticas públicas perdidas e a implantação de outras, mais novas que aumentem a emancipação das mulheres e das demais identidades de gênero que também o elegeram. Um dos projetos é a paridade salarial homem-mulher, defendida por Simone Tebet, do Planejamento.
                Mas há um problema. Segundo a coordenadora da Marcha Mundial de Mulheres no Brasil (MMM) Nalu Faria, o governo tem contradições exteriorizadas pela composição de sua equipe e que se direcionam em todos os campos, inclusive nas políticas de emancipação da população feminina, minorizada pela violência.
                Se de um lado o governo traz “a esperança e que resgata a possibilidade de mudança, de participação popular e de diálogo com os movimentos”, tem contradições devidas “à correlação de forças na sociedade, à própria composição do governo e ao que significa hoje um governo com visão de transformação nos marcos do capitalismo”, diz Farias.
                A fala de Faria é um recado direto do quão inserido no stablishment conservador o governo está, e as dificuldades que essa inserção pode representar, por estarmos num ambiente político contrário às políticas de emancipação feminina, recrudescido pelo bolsonarismo que desmontou e zerou as políticas antes existentes.
                Na esfera social o governo anterior institucionalizou valores do Brasil profundo, que pregam a violência como rédea nos costumes cotidianos, com a infeliz contribuição das corporações pentecostais – o que reflete a declaração da presidente nacional do PT Gleisi Hoffman sobre o período 2019-2022 ter quebrado os direiitos femininos.
                Por isso vale outra mensagem de Faria: “a gente precisa dar segmento às lutas contra a violência (de gênero), pela descriminalização e legalização do aborto, por um atendimento à saúde da mulher que olha o conjunto das necessidades das mulheres, etc.” (com adaptações na citação).
                Se quiser mesmo restaurar as políticas públicas femininas extintas na era anterior ou implantar novas, o governo Lula precisará da ajuda substancial dos movimentos feministas. Seja nas ruas, seja na mesa de debate com a participação de representantes de conselhos populares para a mulher.
                E, diante do Congresso mais reacionário desde o início da Nova República, vai ser osso duro de roer.

Para saber mais
https://www.brasildefato.com.br/2023/02/26/governo-lula-trara-avancos-para-mulheres-mas-existem-limites-diz-nalu-faria-da-mmm
https://www.brasildefato.com.br/2022/03/02/atacadas-por-bolsonaro-mulheres-conquistaram-direitos-com-lula-e-dilma-afirma-gleisi-hoffmann
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