A eterna luta
do feminismo
Por milênios, as sociedades humanas
vieram, floresceram, sucederam e desapareceram. E as culturas atuais um dia terão um fim –
não sabemos quando nem como – e deixarão para o futuro distante as TICs como
marca tão indelével quanto o são a arte, os utensílios e a arquitetura das
civilizações que se foram.
Registros de muitas culturas
pretéritas nos revelam já haver divisões nas relações e papeis sociais dos
gêneros, com a suposta superioridade masculina entre assírios, hebreus, gregos
e romanos, equilíbrio entre os egípcios, celtas e germânicos, e até a raríssima
sobrevalência feminina na civilização minoica.
Se verificaram aí diferentes posições
femininas, mesmo tendo o matrimônio uma afinidade importante em comum. Exceto,
talvez, por pontos fora da curva como a matemática Hipátia de Alexandria,
executada por seu saber, não há registro de luta feminista de fato.
Visando a igualdade social e
relacional de gêneros, o feminismo tem origem incerta: pode ter nascido de um insight
em alguma mulher durante a Revolução Francesa, ou inspirado em vento marxista no
sujo chão de fábrica londrina do séc XIX que explorava mulheres e crianças.
Atribui-se à francesa Olympe de
Gouges, autora de Declaração dos direitos da mulher cidadã (1791), e à
inglesa Mary Wollstonecraft, (Reinvindicação dos direitos das mulheres,
1792) contestando os pensadores iluministas que subestimavam as mulheres, os primeiros
ecos. Mas o movimento sufragista (1897) foi mais longe, quando a Emily
Davydson se jogou debaixo do cavalo do rei da Inglaterra em 1913.
Em 8/3/1914 nos EUA, um incêndio proposital
numa fábrica matou várias operárias que lutavam por paridade aos homens nas
condições salariais e de trabalho. Elas não sabiam que seriam homenageadas pela
ONU pelo Dia Internacional da Mulher em 8/3, e que abriram portas para o
feminismo moderno.
As transformações na 2ª metade do
século XX favoreceram a 2ª onda feminista (antipatriarcal) e a 3ª (inclusiva de
classes populares, não-brancas e lésbicas), e no século atual, a 4ª onda, que
se relaciona às TICs.
Liberal- busca
igualdade plena, reconhecida na legislação; inspirado em Mary Wollstonecraft.
Marxista ou socialista- sem pensar
em feminismo, Marx e Engels viam mulheres e homens em pé de igualdade nas lutas
de classe, mas sem adentrarem em termos de direitos sexuais.
Interseccional- se
baseia nas lutas particulares de cada grupo feminino singular: mulheres lésbicas,
originárias na luta pela terra, transmulheres¹, são exemplos interseccionais
segundo Kimberlé W. Crenshaw, socióloga estadunidense, criadora da teoria que estuda
esse movimento.
Negro- reúne
as mulheres pretas, que lutam por igualdade de visibilidade, de salário, de
carga horária, no atendimento dos serviços públicos, de acessibilidade nas
universidades, etc.
Ecofeminismo- luta
pela igualdade de mulheres e homens nas relações com o meio ambiente, já que
elas também atuam diretamente para a subsistência.
Radical- vê o gênero
como criação da cultura patriarcal e acredita que somente com a eliminação da
dominação masculina se conseguirá igualdade. Para tanto, portanto, é preciso abolir
o gênero para o objetivo.
Feministas e aborto- os
nazifascistas sempre dizem que as feministas “são abortistas”, como se elas o
praticassem como entretenimento. Pessoas de sã consciência sabem que é uma
mentira criminosa. Noutro lado é certo que elas defendem ser o aborto um problema
de saúde, ou uma decisão exclusiva da mulher.
O aborto (ver adiante) é o ponto
quente, o hot spot no qual o feminismo encontra reprovação entre as
mulheres pró-vida, e não a luta feminista propriamente dita. Por outro lado,
pode haver incompreensão no fato de que o que o feminismo quer é a democratização
dos direitos sexuais e reprodutivos, e é aí que entra o racha.
Enfim, o feminismo é uma luta
constante e árdua. O dia #8M não dá espaço para comemorações.
Nota da autoria
¹ pessoas do sexo biológico masculino,
mas que se consideram mulheres, se travestem e vivem como elas e adotam nome social feminino.
Para saber mais
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Reflexão
Aborto: contradições
e políticas
Se existe um tema
que levanta muita polêmica no Brasil, este é a interrupção da gravidez ou
aborto. Essa polêmica não é exclusivamente masculina, nem heterossexual. Ela
atinge todos os gêneros e a orientação homossexual. E também abrange todos os
países, mesmo onde há censura férrea.
No Ocidente é ainda
comum o homem se dizer contrário ao aborto, mas não reconhecer a paternidade do
futuro bebê que a namorada, ficante ou amante espera e dá dinheiro para ela
abortar, em geral numa clínica de saúde privada ou clandestina, com risco sobre
a fertilidade ou a vida da gestante.
Autoridades e
líderes religiosos sabem do problema, mas em geral o acobertam, caso o homem ou
casal seja abastado, e por desigualdade de gênero (é fácil culpar a mulher,
mais ainda se for pobre e não-branca). E, paradoxalmente, muitas mulheres
internalizaram essa cultura, acusando as gestantes que porventura abortem sob
essa pressão.
Para muitas pessoas,
a controvérsia no tema é tão forte que torna difícil argumentar a favor ou
contra. E quem argumenta encontra alguma discordância em entidades sociais e
institucionais. E até no meio jurídico. Não importa se é a favor ou contra: tal
dificuldade alimenta a controvérsia, pois se limita o debate ao conceito de prática
voluntária.
A limitação acima é
usada para facilitar propósitos legais e políticos. Se de um lado delimita
melhor as restrições e permissões legais em interromper a gestação, por outro
se torna um mote fácil para justificar atos de extremismos ideológicos,
bastando ocultar o aborto como fenômeno – aproveitando-se o desconhecimento.
Como fenômeno, a
literatura científica o define como aborto espontâneo¹, e entidades
médicas ainda alertam ser um importante problema de saúde pública, devido à sua
natureza inesperada e traumatizante sobre a gestante ou o casal em expectativa,
e, principalmente, por ser mais comum do que se imagina.
Já visto em outras
espécies animais, o aborto espontâneo tem várias causas, como alguma condição
uterina, forte e repentino estresse da gestante, e anomalias genéticas ou
congênitas incompatíveis com a vida e/ou que arriscam a vida da gestante.
Destas últimas, a sua raridade na população geral é estimada em pessoas vivas.
O organismo da mulher
é inteligente em detectar anormalidade embrionária incompatível com a vida do
ser em formação, e o aborto acaba se tornando um fenômeno naturalmente eugênico
e terapêutico mesmo que a gestante queira levar a gravidez a termo. E isso pode
ser mais comum do que se imagina.
Legislação
brasileira- polêmica à parte,
a nossa legislação prevê condições legais para aborto desde o código penal de
1940. Este previa interrupções por estupro e risco de vida da gestante. Décadas
depois, o STF incluiu permissão também para a anencefalia, grave condição
congênita/genética geralmente incompatível com a vida.
Feita após debates
com médicos, a decisão foi um avanço: a anencefalia pode gerar risco à gestação
ou à vida da mulher. Mas ficou apenas nessa anomalia, havendo necesidade de
mais debates médicos na jurisdição para outros casos clínicos similares, uma
vez que o aborto espontâneo é mais comum do que o voluntário.
Tomemos dois
exemplos de anomalias conhecidas dos geneticistas clínicos: a síndrome de Patau
ou trissomia do cromossomo 13, e a de Edwards ou trissomia do 18, de
respectivas gravidades tão bizarras que o índice de abortos espontâneos pode
ser altíssimo: Os raros bebês ou são natimortos ou morrem ao nascer.
Ainda não há dados
estatísticos confiáveis sobre a relação entre o número de nascimentos de
anômalos e fatores de abortos espontâneos excluindo-se fatores físicos e
químicos. É crível que a ocorrência de embriões geneticamente anômalos seja
mais comum do que imaginamos, mas a subnotificação dos casos espontâneos é
muito grande.
Em face dos seus
riscos, considerar aborto um grave problema de saúde pública é mais importante
do que as subjetividades morais. É necessário desmistificar e democratizar a
informação no âmbito científico para
expor os abortos espontâneos e eliminar ideologias extremistas.
Isso facilita
reconhecer que, em sã consciência, ninguém é afeito ao aborto como se diversão
fosse. Não existe essa baboseira moralista. O que existe é um problema de saúde
que merece mais atenção e estudo, e que temos que entender que cada mulher é
dona de seu próprio corpo.
Nota da autoria
¹ essa definição torna
o aborto objeto de vários estudos na genética e na elucidação de fatores e
consequências.
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Lula III e os limites femininos
O governo Lula começa com um recorde
de mulheres na sua equipe, com três delas protagonizando no ineditismo: Sônia
Guajajara no novo Ministério dos Povos Indígenas; Joênia Nísia Trindade na
Saúde, Simone Tebet no Planejamento e Joênia Wapichana à frente da Funai. Fora
o próprio Lula em seu 3º governo por voto popular.
Pode ser que, com
essas e outras representantes femininas na sua equipe (só de ministras são 11,
além da forte figura da primeira-dama), o presidente reforce a sua mensagem
pró-feminina projetada em campanha. Ou seja, ele parece sinalizar para
políticas públicas direcionadas ao público feminino, como o combate à violência de gênero.
De fato, Lula
reconhece que o eleitorado feminino – incluindo uma significativa parcela
evangélica – foi em parte responsável pela sua vitória eleitoral, apertada por
todas as tentativas de fraude pelo adversário, cujo governo atacou os direitos
femininos ampliando a normalização da violência de gênero no país.
Por essas
motivações, Lula quer responder através da restauração das políticas públicas
perdidas e a implantação de outras, mais novas que aumentem a emancipação das
mulheres e das demais identidades de gênero que também o elegeram. Um dos projetos é a paridade salarial homem-mulher, defendida por Simone Tebet, do Planejamento.
Mas há um problema.
Segundo a coordenadora da Marcha Mundial de Mulheres no Brasil (MMM) Nalu
Faria, o governo tem contradições exteriorizadas pela composição de sua equipe
e que se direcionam em todos os campos, inclusive nas políticas de emancipação
da população feminina, minorizada pela violência.
Se de um lado o
governo traz “a esperança e que resgata a possibilidade de mudança, de
participação popular e de diálogo com os movimentos”, tem contradições
devidas “à correlação de forças na sociedade, à própria composição do
governo e ao que significa hoje um governo com visão de transformação nos
marcos do capitalismo”, diz Farias.
A fala de Faria é um
recado direto do quão inserido no stablishment conservador o governo
está, e as dificuldades que essa inserção pode representar, por estarmos num
ambiente político contrário às políticas de emancipação feminina, recrudescido
pelo bolsonarismo que desmontou e zerou as políticas antes existentes.
Na esfera social o
governo anterior institucionalizou valores do Brasil profundo, que pregam a
violência como rédea nos costumes cotidianos, com a infeliz contribuição das
corporações pentecostais – o que reflete a declaração da presidente nacional do
PT Gleisi Hoffman sobre o período 2019-2022 ter quebrado os direiitos
femininos.
Por isso vale outra
mensagem de Faria: “a gente precisa dar segmento às lutas contra a violência
(de gênero), pela descriminalização e legalização do aborto, por um
atendimento à saúde da mulher que olha o conjunto das necessidades das
mulheres, etc.” (com adaptações na citação).
Se quiser mesmo
restaurar as políticas públicas femininas extintas na era anterior ou implantar
novas, o governo Lula precisará da ajuda substancial dos movimentos feministas.
Seja nas ruas, seja na mesa de debate com a participação de representantes de
conselhos populares para a mulher.
E, diante do Congresso mais reacionário desde o início da Nova República, vai ser osso duro de roer.
Para saber mais
- https://www.brasildefato.com.br/2023/02/26/governo-lula-trara-avancos-para-mulheres-mas-existem-limites-diz-nalu-faria-da-mmm
- https://www.brasildefato.com.br/2022/03/02/atacadas-por-bolsonaro-mulheres-conquistaram-direitos-com-lula-e-dilma-afirma-gleisi-hoffmann
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