domingo, 11 de junho de 2023

ANÁLISE: as marcas corporativas da ditadura

 
                Que em 1964 houve um golpe que pegou a geral de surpresa e alegrou a elite, matou milhares e não apenas centenas, e que a censura serviu para distração da patuleia sobre os "desaparecimentos" de opositores políticos foi a tônica por 21 anos, disso todo mundo sabe. Nem todos admitem, mas todos que viveram sabem.
                O que talvez não saibam é que os militares protagonistas de todo o sombrio conjunto de fatos não atuaram sozinhos, apesar da natureza autocrática dos governos. Além do ensino de tortura por samangos dos EUA e Israel, nossos milicos tiveram um cúmplice poderoso: o mundo corporativo.
                Sem dúvida, para garantir o capital pleno e livre no país, as grandes multinacionais colaboraram com a ditadura militar por meio de rígidos esquemas de monitoramento de seus trabalhadores. de carona entra aí o setor público representado pela Administração Pública direta e indireta e autarquias estatais.

Corporações multinacionais

                No Brasil, a indústria cresceu no pós-guerra e no início dos anos 1960 experimentou o seu boom. Em 1964, diferente da classe trabalhadora, as direções corporativas comemoraram o golpe como "barreira necessária contra o comunismo". Há no Youtube numerosos vídeos com vários relatos de trabalhadores da época.
                Volkswagen - a matriz da montadora alemã fabricou veículos de guerra para suprir as forças de Hitler. No Brasil do golpe, as subsidiárias monitoraram seus trabalhadores com rigor. Os "suspeitos" eram entregues a militares em salas improvisadas no subsolo, onde eram interrogados e torturados. No pátio havia revista prévia ao expediente.
                Bayer - a farmacêutica química alemã fabricou cianeto de potássio que asfixiou milhares em câmaras de gás durante a II guerra. No Brasil do golpe, fabricou o gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral para os militares reprimirem funcionários. Os gases são ainda usados pelas PMs para reprimir manifestos populares.
                Fiat - a montadora italiana usou o mesmo modus operandi da Volks. Protagonizou a vigilância e perseguição a seus funcionários nas fábricas em Duque de Caxias (RJ), Salvador e Betim. Assim como em outras multinacionais, vários trabalhadores foram levados para os DOI-CODIs e alguns nunca mais retornaram.
                Para que tudo isso ocorresse, a empresa construiu em suas sedes uma sala exclusiva para pregar interrogatórios de horas em seus funcionários, a partir de um esquema de espionagem. Foi na proximidade com os milicos que ela montou sua sede em Betim, na zona metropolitana de BH.
                Coca-Cola - por ter fábricas espalhadas pelo país, a gigante estadunidense de refrigerantes tenha sido a corporação com o monitoramento mais extenso de seus funcionários. De praxe, as reuniões sindicais eram proibidas. Ainda não foi levantado o número de ex-trabalhadores denunciados, mas há relatos de casos de tortura sistemática.
                Estes são apenas quatro entre tantos exemplos de grandes corporações que contribuíram para a perseguição política dos trabalhadores. Há relatos denunciadores contra corporações brasileiras, como empreiteiras partícipes das obras de engenharia, bancos, ramos industriais e mesmo os entes públicos.

Empresas brasileiras privadas e entes públicos

                Companhia Docas - a Docas monitorava seus trabalhadores junto a militares da Marinha, que deixaram embarcações especialmente para prender e torturar trabalhadores "subversivos". A Cia. proibiu seus funcionários de fazer doações para os colegas demitidos e presos, que passavam por vezes fome, sede e frio.
                Relatos de ex-funcionários da Companhia Docas de Santos (CDS) apontam que faziam suas necessidades fisiológicas com vigias armados ao lado, tendo que limpar as latrinas após o uso. Presos no navio da Marinha eram interrogados por mais de 12 horas ininterruptas e não podiam dormir. A CDS também colaborava com o DOPS para captura de "subversivos".
                Cobrasma - Fundada pela família Vidal antes dos anos 1950, a Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários atuou como uma fornecedora de ferragens para a extensão de ferrovias da Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA). Documentos da época revelam participação dos Vidal pelo golpe de 1964.
                Conta-se também que seus conselheiros faziam "caixinha" para financiar a Oban (Operação Bandeirantes), que capturava os opositores político, desarticulava movimentos e dizimou manifestos de guerrilha. Violações de direitos trabalhistas e repressão da liberdade de diálogo entre trabalhadores foram táticas de caráter rotineiro.
                Docs revelam a Cobrasma partícipe da perseguição a grevistas de Osasco (1968), apontando o manifesto como “subversivo”. A igreja Matriz foi invadida por milicos. O padre e metalúrgico francês Pierre Joseph Waultier foi expulso do país. O líder do Sind. Metalúrgicos de Osasco José Ibrahim¹ foi demitido e, na luta armada, foi preso e torturado.
                Petrobras – fundada em 1953 na era Vargas para explorar petróleo, já considerado bem público por lei, a petrolífera logo mostraria seu pioneirismo tecnológico na exploração em águas profundas e ultraprofundas.  Mas, também, primou pela desqualificação em prol de um capital político ao contribuir com a ditadura.
                Segundo documentos, o modus operandi da petrolífera foi parecido com o da Cobrasma na violação dos direitos trabalhistas. E foi além na participação ativa também junto ao sanguinário ditador Pinochet na operação Condor, que reunia os ditadores sul-americanos na “caça às bruxas”, ou seja, aos seus inimigos políticos.
                Consta-se que o monitoramento de funcionários na BR se iniciava ainda no sistema de recrutamento. Os requisitos básicos eram acompanhados de traduções subjetivas de idoneidade de caráter (apolitismo) e moral (heterossexualidade). Nesse último, um candidato chileno muito bem qualificado foi barrado por ser considerado “anormal” (homossexual).
                Aos militares infiltrados na estatal cabiam as missões de monitoramento. Suspeitos de subversão eram colocados em celas de embarcações militares e ali torturados. Um dos funcionários foi tão torturado que o trauma atingiu sua capacidade de comunicar. Teve as unhas arrancadas e devolvidas pelos samangos.
                Companhia Siderúrgica Nacional – Em Volta Redonda, a outrora estatal CSN empregou milhares de pessoas, sobretudo de MG e Nordeste, desde a sua criação pela era JK. Maior produtora de aço do Brasil, ela foi outra estatal com forte infiltração de samangos visando monitoramento dos trabalhadores durante a ditadura.
                Consta-se em documentos que, antes do expediente produtivo, os funcionários da CSN eram revistados pelos samangos, e ainda ouviam ameaças, que se tornaram rotineiras depois que alguns funcionários críticos ao totalitarismo foram encaminhados ao DOI-CODI nas unidades militares da região.
                Entre os trabalhadores mais visados pelos samangos estavam os negros, que se tornaram vítimas de intensos manifestos racistas, e entravam como alvos preferenciais de tortura e prisão, se não assassinatos. Há documentos relatando desaparecimentos e assassinatos de líderes sindicais e de críticos do governo.
                Bancos estatais – No Brasil da ditadura houve vários bancos estatais, além da Caixa e do Banco do Brasil, que em sua quase totalidade foram privatizados durante os 8 anos da era FHC. No status de outrora, eles também se destacariam entre instituições públicas que monitoraram os seus trabalhadores com rigor, sob os auspícios de militares neles infiltrados.
                Embora não haja dados documentais explícitos sobre os métodos persecutórios, acredita-se que o modus operandi tenha sido basicamente idêntico, ou quase idêntico, ao utilizado nos casos supracitados.
                Itaipu - Na construção daquela que por anos foi a maior hidrelétrica do mundo, as mortes por acidente de trabalho foram muitas, pois na época não havia o devido cuidado com a proteção dos operários. Essa era uma rotina comum entre operários de diversos ramos produtivos no Brasil.
                Mas como durante a ditadura houve forte investimento público na construção de Itaipu, a cúpula das empresas envolvidas e os gestores públicos eram obviamente próximos dos governos. O que contribuiu na implantação de uma política persecutória contra os funcionários.
                Como uma central de espionagem com militares infiltrados, e a partir daí, os interrogatórios, entregas de alguns dos "suspeitos" ao DOPS e DOI-CODI para tortura e prisão e assassinatos. Mais de cem funcionários foram mortos, e os restos mortais de alguns deles até hoje não fora, achados.
                Outras instituições públicas – Por muito tempo perdurou no imaginário coletivo a ideia de que o serviço público é ruim de trabalhar porque “há muito assédio”. De fato, servidores públicos sofrem assédios variados. Mas o setor privado não é nada diferente. Que o digam os casos acima, ontem e hoje.
                Mas, o que pode explicar a verdade por trás da lenda é que, por trabalharem nos poderes públicos, os servidores foram especialmente visados pelos samangos infiltrados nas instituições. Como eram celetistas na época, demissões sumárias de simples críticos eram operadas como justa causa, e mesmo a ampla defesa era extremamente difícil ou mesmo coibida ilegalmente.
                Mas as demissões sumárias não significavam necessariamente que ex-servidores ficassem livres: as persecuções continuavam de modo a impedir novos alistamentos nos movimentos de guerrilha e outras formas de enfrentamento ao stablishment, como manifestos sindicais e outros meios.
                Alguns desses relatos aparecem na Comissão Nacional da Verdade (CNV), o que favorece o pleno reconhecimento de sua importância para a verdade e a justiça. Mas ainda é preciso mais, pois ainda vemos reflexos.

Reflexos atuais

                Para quem acredita que com o fim da ditadura militar os trabalhadores passaram a respirar com alívio, há aí uma verdade e uma não-verdade, que não é exatamente mentirosa, mas reveladora de uma nota de ingenuidade de muitos. O que realmente findou foi a metodologia persecutória usada naquele tempo de chumbo.
                Mas ela ainda se refletiu em dor e saudade entre as famílias dos perseguidos que nunca mais voltaram, e as sequelas físicas, psicológicas e mentais dos muitos que sobreviveram e tiveram que se aposentar por invalidez pela incapacitação imposta pelo estresse pós-traumático.
                Apesar da importância refletida nos relatos denunciadores existentes no documento da CNV, ainda é preciso seguir a exigência dos sobreviventes e suas famílias, das famílias dos mortos e dos representantes sociais e jurídicos: as corporações e entidades públicas envolvidas, e os militares, devem todos ser responsabilizados.
                Pois ainda vemos reflexos no assédio moral circunstancial, rotineiro ou ocasional, sobre os críticos de alguns políticos. De 2019 a 22, servidores federais antibolsonaristas e estaduais críticos ao governo Zema entraram nas respectivas listas de detratores do Min da Justiça e Secretaria estadual, felizmente inativadas pelo STF.
                Pois as persecuções políticas de Zema e Bolsonaro na quadra 2019-22 induziu remoções a outras entidades públicas, realocações setoriais e até mesmo exonerações ocorridas para facilitar o aparelhamento institucional: em MG, a chefia da Secretaria de Meio Ambiente foi trocada 11 vezes.
                No sistema bancário há denúncias de empregados que sofrem assédio moral por aparência "insatisfatória" (traje, penteado e/ou maquiagem), ao racismo estrutural ou institucional, e outros motivos. Todos os assédios denunciados são verticais, hierarquicamente de cima para baixo.
                Os muitos casos de assédio eleitoral com falsas promessas ou ameaças em 2022 se revelam reflexos de uma era pretérita que pretendia se repetir, até que foi tentado o golpe em 8/1/23. E, no caso mineiro em especial, a reeleição de Zema pode dar continuidade à persecução política.
                E mais: Zema propôs retirar da Constituição estadual a participação pública para políticas públicas que requeiram participação popular. A visão de Zema é essencialmente privatista, mas visa refletir o comportamento patronal de uma época cujas marcas tantos lutaram com sangue e lágrimas para combater.
                Pela memória, a verdade e a justiça!

Nota da autoria
¹ Fundou o PT (Osasco), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT). Faleceu em 2013.

Para saber mais
- https://apublica.org/2023/06/fiat-tinha-sistema-de-espionagem-e-sala-exclusiva-para-interrogar-funcionarios-na-ditadura/
- https://apublica.org/2023/06/itaipu-na-ditadura-mais-de-100-operarios-mortos-e-43-mil-acidentes-na-construcao/
- https://apublica.org/2023/06/cobrasma-lucrou-milhoes-ao-apoiar-ditadura-e-reprimir-movimentos-sociais/
https://apublica.org/2023/05/companhia-de-docas-se-aliou-a-ditadura-para-monitorar-funcionarios-no-porto-de-santos/
https://apublica.org/2023/05/petrobras-participou-de-torturas-e-monitorou-ate-orientacao-sexual-de-funcionarios/
https://apublica.org/2023/05/empresas-cumplices-da-ditadura-e-preciso-fazer-das-informacoes-um-ato-de-justica/
https://apublica.org/especial/as-empresas-cumplices-da-ditadura-militar/
https://apublica.org/2023/03/familiares-de-mortos-e-desaparecidos-na-ditadura-pedem-a-retomada-de-comissao/
https://apublica.org/2022/08/projeto-quer-escavar-e-esquadrinhar-em-sp-um-dos-piores-centros-de-tortura-da-ditadura/
https://apublica.org/2023/03/visao-da-ditadura-sobre-amazonia-operou-totalmente-na-gestao-bolsonaro-diz-pesquisadora/
https://apublica.org/2022/09/a-falsificacao-da-historia-do-golpe-de-1964-forjada-pela-comunicacao-do-governo-bolsonaro/
https://apublica.org/2022/07/novo-estudo-expoe-contradicoes-do-pensamento-militar-sobre-a-defesa-da-amazonia/
https://apublica.org/2022/07/e-a-volta-dos-que-nunca-foram-diz-pesquisador-sobre-militares-no-governo-bolsonaro/
https://apublica.org/2023/06/racismo-perseguicao-e-assassinatos-nas-instalacoes-da-csn-nos-anos-da-ditadura/
https://www.brasildefato.com.br/2023/05/09/servidores-de-minas-gerais-denunciam-governo-zema-por-perseguicao-e-assedio-moral
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