Que em 1964 houve um golpe
que pegou a geral de surpresa e alegrou a elite, matou milhares e não apenas
centenas, e que a censura serviu para distração da patuleia sobre os
"desaparecimentos" de opositores políticos foi a tônica por 21 anos,
disso todo mundo sabe. Nem todos admitem, mas todos que viveram sabem.
O que talvez não saibam é
que os militares protagonistas de todo o sombrio conjunto de fatos não atuaram
sozinhos, apesar da natureza autocrática dos governos. Além do ensino de
tortura por samangos dos EUA e Israel, nossos milicos tiveram um cúmplice
poderoso: o mundo corporativo.
Sem dúvida, para garantir o
capital pleno e livre no país, as grandes multinacionais colaboraram com a
ditadura militar por meio de rígidos esquemas de monitoramento de seus
trabalhadores. de carona entra aí o setor público representado pela
Administração Pública direta e indireta e autarquias estatais.
Corporações multinacionais
No Brasil, a indústria
cresceu no pós-guerra e no início dos anos 1960 experimentou o seu boom. Em
1964, diferente da classe trabalhadora, as direções corporativas comemoraram o
golpe como "barreira necessária contra o comunismo". Há no Youtube
numerosos vídeos com vários relatos de trabalhadores da época.
Volkswagen -
a matriz da montadora alemã fabricou veículos de guerra para suprir as forças
de Hitler. No Brasil do golpe, as subsidiárias monitoraram seus trabalhadores
com rigor. Os "suspeitos" eram entregues a militares em salas
improvisadas no subsolo, onde eram interrogados e torturados. No pátio havia
revista prévia ao expediente.
Bayer -
a farmacêutica química alemã fabricou cianeto de potássio que asfixiou milhares
em câmaras de gás durante a II guerra. No Brasil do golpe, fabricou o gás
lacrimogêneo e bombas de efeito moral para os militares reprimirem
funcionários. Os gases são ainda usados pelas PMs para reprimir manifestos
populares.
Fiat -
a montadora italiana usou o mesmo modus operandi da Volks. Protagonizou a
vigilância e perseguição a seus funcionários nas fábricas em Duque de Caxias
(RJ), Salvador e Betim. Assim como em outras multinacionais, vários
trabalhadores foram levados para os DOI-CODIs e alguns nunca mais retornaram.
Para que tudo isso ocorresse, a empresa construiu em suas sedes uma sala exclusiva para pregar interrogatórios de horas em seus funcionários, a partir de um esquema de espionagem. Foi na proximidade com os milicos que ela montou sua sede em Betim, na zona metropolitana de BH.
Coca-Cola -
por ter fábricas espalhadas pelo país, a gigante estadunidense de refrigerantes
tenha sido a corporação com o monitoramento mais extenso de seus funcionários.
De praxe, as reuniões sindicais eram proibidas. Ainda não foi levantado o
número de ex-trabalhadores denunciados, mas há relatos de casos de tortura
sistemática.
Estes são apenas quatro
entre tantos exemplos de grandes corporações que contribuíram para a
perseguição política dos trabalhadores. Há relatos denunciadores contra
corporações brasileiras, como empreiteiras partícipes das obras de engenharia,
bancos, ramos industriais e mesmo os entes públicos.
Empresas brasileiras
privadas e entes públicos
Companhia Docas -
a Docas monitorava seus trabalhadores junto a militares da Marinha, que
deixaram embarcações especialmente para prender e torturar trabalhadores
"subversivos". A Cia. proibiu seus funcionários de fazer doações para
os colegas demitidos e presos, que passavam por vezes fome, sede e frio.
Relatos de ex-funcionários
da Companhia Docas de Santos (CDS) apontam que faziam suas necessidades
fisiológicas com vigias armados ao lado, tendo que limpar as latrinas após o
uso. Presos no navio da Marinha eram interrogados por mais de 12 horas
ininterruptas e não podiam dormir. A CDS também colaborava com o DOPS para
captura de "subversivos".
Cobrasma -
Fundada pela família Vidal antes dos anos 1950, a Companhia Brasileira de
Materiais Ferroviários atuou como uma fornecedora de ferragens para a extensão
de ferrovias da Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA). Documentos da época
revelam participação dos Vidal pelo golpe de 1964.
Conta-se também que seus
conselheiros faziam "caixinha" para financiar a Oban (Operação
Bandeirantes), que capturava os opositores político, desarticulava movimentos e
dizimou manifestos de guerrilha. Violações de direitos trabalhistas e repressão
da liberdade de diálogo entre trabalhadores foram táticas de caráter rotineiro.
Docs revelam a Cobrasma
partícipe da perseguição a grevistas de Osasco (1968), apontando o manifesto
como “subversivo”. A igreja Matriz foi invadida por milicos. O padre e
metalúrgico francês Pierre Joseph Waultier foi expulso do país. O líder do
Sind. Metalúrgicos de Osasco José Ibrahim¹ foi demitido e, na luta
armada, foi preso e torturado.
Petrobras –
fundada em 1953 na era Vargas para explorar petróleo, já considerado bem
público por lei, a petrolífera logo mostraria seu pioneirismo tecnológico na
exploração em águas profundas e ultraprofundas.
Mas, também, primou pela desqualificação em prol de um capital político
ao contribuir com a ditadura.
Segundo documentos, o modus
operandi da petrolífera foi parecido com o da Cobrasma na violação dos direitos
trabalhistas. E foi além na participação ativa também junto ao sanguinário ditador
Pinochet na operação Condor, que reunia os ditadores sul-americanos na “caça às
bruxas”, ou seja, aos seus inimigos políticos.
Consta-se que o
monitoramento de funcionários na BR se iniciava ainda no sistema de recrutamento. Os requisitos básicos eram acompanhados de traduções subjetivas de idoneidade de caráter
(apolitismo) e moral (heterossexualidade). Nesse último, um candidato chileno
muito bem qualificado foi barrado por ser considerado “anormal” (homossexual).
Aos militares infiltrados
na estatal cabiam as missões de monitoramento. Suspeitos de subversão eram
colocados em celas de embarcações militares e ali torturados. Um dos
funcionários foi tão torturado que o trauma atingiu sua capacidade de
comunicar. Teve as unhas arrancadas e devolvidas pelos samangos.
Companhia Siderúrgica
Nacional – Em Volta Redonda, a
outrora estatal CSN empregou milhares de pessoas, sobretudo de MG e Nordeste,
desde a sua criação pela era JK. Maior produtora de aço do Brasil, ela foi
outra estatal com forte infiltração de samangos visando monitoramento dos
trabalhadores durante a ditadura.
Consta-se em documentos
que, antes do expediente produtivo, os funcionários da CSN eram revistados
pelos samangos, e ainda ouviam ameaças, que se tornaram rotineiras depois que
alguns funcionários críticos ao totalitarismo foram encaminhados ao DOI-CODI
nas unidades militares da região.
Entre os trabalhadores mais
visados pelos samangos estavam os negros, que se tornaram vítimas de intensos
manifestos racistas, e entravam como alvos preferenciais de tortura e prisão,
se não assassinatos. Há documentos relatando desaparecimentos e assassinatos de
líderes sindicais e de críticos do governo.
Bancos estatais –
No Brasil da ditadura houve vários bancos estatais, além da Caixa e do Banco do
Brasil, que em sua quase totalidade foram privatizados durante os 8 anos da era
FHC. No status de outrora, eles também se destacariam entre instituições
públicas que monitoraram os seus trabalhadores com rigor, sob os auspícios de
militares neles infiltrados.
Embora não haja dados
documentais explícitos sobre os métodos persecutórios, acredita-se que o modus
operandi tenha sido basicamente idêntico, ou quase idêntico, ao utilizado nos casos supracitados.
Itaipu - Na construção daquela que por anos foi a maior hidrelétrica do mundo, as mortes por acidente de trabalho foram muitas, pois na época não havia o devido cuidado com a proteção dos operários. Essa era uma rotina comum entre operários de diversos ramos produtivos no Brasil.
Mas como durante a ditadura houve forte investimento público na construção de Itaipu, a cúpula das empresas envolvidas e os gestores públicos eram obviamente próximos dos governos. O que contribuiu na implantação de uma política persecutória contra os funcionários.
Como uma central de espionagem com militares infiltrados, e a partir daí, os interrogatórios, entregas de alguns dos "suspeitos" ao DOPS e DOI-CODI para tortura e prisão e assassinatos. Mais de cem funcionários foram mortos, e os restos mortais de alguns deles até hoje não fora, achados.
Outras instituições públicas – Por
muito tempo perdurou no imaginário coletivo a ideia de que o serviço público é
ruim de trabalhar porque “há muito assédio”. De fato, servidores públicos
sofrem assédios variados. Mas o setor privado não é nada diferente. Que o digam
os casos acima, ontem e hoje.
Mas, o que pode explicar a
verdade por trás da lenda é que, por trabalharem nos poderes públicos, os
servidores foram especialmente visados pelos samangos infiltrados nas
instituições. Como eram celetistas na época, demissões sumárias de simples críticos eram
operadas como justa causa, e mesmo a ampla defesa era extremamente difícil ou mesmo coibida ilegalmente.
Mas as demissões sumárias
não significavam necessariamente que ex-servidores ficassem livres: as
persecuções continuavam de modo a impedir novos alistamentos nos movimentos de
guerrilha e outras formas de enfrentamento ao stablishment, como
manifestos sindicais e outros meios.
Alguns desses relatos aparecem na Comissão Nacional da Verdade (CNV), o que favorece o pleno reconhecimento de sua importância para a verdade e a justiça. Mas ainda é preciso mais, pois ainda vemos reflexos.
Reflexos atuais
Para quem acredita que com
o fim da ditadura militar os trabalhadores passaram a respirar com alívio, há
aí uma verdade e uma não-verdade, que não é exatamente mentirosa, mas reveladora
de uma nota de ingenuidade de muitos. O que realmente findou foi a metodologia persecutória usada naquele tempo de chumbo.
Mas ela ainda se refletiu em dor e saudade entre as famílias dos perseguidos que nunca mais voltaram, e as sequelas físicas, psicológicas e mentais dos muitos que sobreviveram e tiveram que se aposentar por invalidez pela incapacitação imposta pelo estresse pós-traumático.
Apesar da importância refletida nos relatos denunciadores existentes no documento da CNV, ainda é preciso seguir a exigência dos sobreviventes e suas famílias, das famílias dos mortos e dos representantes sociais e jurídicos: as corporações e entidades públicas envolvidas, e os militares, devem todos ser responsabilizados.
Pois ainda vemos reflexos no assédio moral circunstancial, rotineiro ou ocasional, sobre os críticos de alguns políticos. De 2019 a 22, servidores federais antibolsonaristas e estaduais críticos ao governo Zema entraram nas respectivas listas de detratores do Min da Justiça e Secretaria estadual, felizmente inativadas pelo STF.
Pois as persecuções políticas de Zema e Bolsonaro na quadra 2019-22 induziu remoções a outras entidades públicas, realocações setoriais e até mesmo exonerações ocorridas para facilitar o aparelhamento institucional: em MG, a chefia da Secretaria de Meio Ambiente foi trocada 11 vezes.
No sistema bancário há denúncias de empregados que sofrem assédio moral por aparência "insatisfatória" (traje, penteado e/ou maquiagem), ao racismo estrutural ou institucional, e outros motivos. Todos os assédios denunciados são verticais, hierarquicamente de cima para baixo.
Os muitos casos de assédio eleitoral com falsas promessas ou ameaças em 2022 se revelam reflexos de uma era pretérita que pretendia se repetir, até que foi tentado o golpe em 8/1/23. E, no caso mineiro em especial, a reeleição de Zema pode dar continuidade à persecução política.
E mais: Zema propôs retirar da Constituição estadual a participação pública para políticas públicas que requeiram participação popular. A visão de Zema é essencialmente privatista, mas visa refletir o comportamento patronal de uma época cujas marcas tantos lutaram com sangue e lágrimas para combater.
Pela memória, a verdade e a justiça!
Nota da autoria
¹ Fundou o PT (Osasco), a
Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT).
Faleceu em 2013.
Para saber mais
- https://apublica.org/2023/06/fiat-tinha-sistema-de-espionagem-e-sala-exclusiva-para-interrogar-funcionarios-na-ditadura/
- https://apublica.org/2023/06/itaipu-na-ditadura-mais-de-100-operarios-mortos-e-43-mil-acidentes-na-construcao/
- https://apublica.org/2023/06/cobrasma-lucrou-milhoes-ao-apoiar-ditadura-e-reprimir-movimentos-sociais/
- https://apublica.org/2023/05/companhia-de-docas-se-aliou-a-ditadura-para-monitorar-funcionarios-no-porto-de-santos/
- https://apublica.org/2023/05/petrobras-participou-de-torturas-e-monitorou-ate-orientacao-sexual-de-funcionarios/
- https://apublica.org/2023/05/empresas-cumplices-da-ditadura-e-preciso-fazer-das-informacoes-um-ato-de-justica/
- https://apublica.org/especial/as-empresas-cumplices-da-ditadura-militar/
- https://apublica.org/2023/03/familiares-de-mortos-e-desaparecidos-na-ditadura-pedem-a-retomada-de-comissao/
- https://apublica.org/2022/08/projeto-quer-escavar-e-esquadrinhar-em-sp-um-dos-piores-centros-de-tortura-da-ditadura/
- https://apublica.org/2023/03/visao-da-ditadura-sobre-amazonia-operou-totalmente-na-gestao-bolsonaro-diz-pesquisadora/
- https://apublica.org/2022/09/a-falsificacao-da-historia-do-golpe-de-1964-forjada-pela-comunicacao-do-governo-bolsonaro/
- https://apublica.org/2022/07/novo-estudo-expoe-contradicoes-do-pensamento-militar-sobre-a-defesa-da-amazonia/
- https://apublica.org/2022/07/e-a-volta-dos-que-nunca-foram-diz-pesquisador-sobre-militares-no-governo-bolsonaro/
- https://apublica.org/2023/06/racismo-perseguicao-e-assassinatos-nas-instalacoes-da-csn-nos-anos-da-ditadura/
- https://www.brasildefato.com.br/2023/05/09/servidores-de-minas-gerais-denunciam-governo-zema-por-perseguicao-e-assedio-moral
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