É
válido Lula manter Aras?
Sal Ross
No
clima do pós-Bolsonaro, uma movimentação interessante se observa nos bastidores
da Justiça. No STF Zanin já ocupa a cadeira que foi de Lewandowski. E, com
aposentadoria anunciada de Rosa Weber neste ano e de Luiz Roberto Barroso em
2025, Lula poderá lançar mais dois nomes.
No
TSE, Alexandre de Moraes não demorará muito a sair da presidência, a qual
ocupou com benemérita galhardia, e Lula também já tem carta na manga com
aposentadoria de alguns magistrados. Mas há movimentação também na Procuradoria
Geral da República.
Aras – com o cargo de procurador geral da República já na
reta final de seu segundo mandato, Augusto Aras se ofereceu a Lula 3 para nova
recondução à chefia da PGR. Afinal, ele já percebeu elogios estranhos de alguns
governistas, entre eles o veterano petista Jaques Wagner. Mas Lula não se manifestou
ainda.
O silêncio
de Lula faz sentido. Na real ele não vê Aras com bons olhos. Aras teve conduta lotada
de descarada suspeição que abriu portas para o seu ex-chefe acumular mais de
600 crimes apenas em 4 anos. E é possível que a maioria dos servidores do MPF queira
vê-lo saindo pela porta dos fundos.
Outros
nomes na mira – mas
outro fator motiva o silêncio de Lula: ter alguns nomes na ideia e na manga. Desse
panteão há pelo menos duas mulheres. O problema maior é aonde pôr. No STF deseja
pôr uma delas, para quebrar a excessiva carga masculina sem deixar de lado a
garantia legalista.
Quanto
ao outro nome feminino, Lula não se decidiu sobre o destino: se no STJ, se no
TSE ou mesmo na PGR – dúvida que permeia outros nomes na manga. Para Lula, o
que interessa é o magistrado agir como Xandão, com postura fortemente ativa e
legalista. E, por que não, confiável como Zanin.
Silêncio
incômodo – o silêncio de Lula
quanto à escolha do magistrado para a Procuradoria e os tribunais superiores supracitados
causa muita expectativa nos bastidores da política e do Judiciário, dado o
término de mandatos de alguns e a aposentadoria próxima de outros. Mas o
presidente está atento.
Mas
também causa certo incômodo, principalmente na PGR: é possível que Lula repense
não só o que já sabe sobre Aras nos fatos consumados no passado, como também na
questão do chamado vício prorrogativo, que é a recondução muitas vezes repetida
de mesma pessoa para atender a certos interesses.
Enquanto
isso, Augusto Aras aguarda a decisão do presidente. O máximo que podemos saber é
de uma chance remota, ainda que não impossível, de recondução. Ele pode ter
notório saber jurídico, mas violou a legalidade e manchou a sua própria reputação
e sua credencial com o Estado democrático.
Rechaçar
Augusto Aras não é apenas fortalecer o Estado democrático de direito. É reparar
pelas 700 mil vidas hoje enterradas só pela C19 sem direito à digna despedida de
suas famílias, e outras tantas vidas ceifadas por outros descasos que não deveriam
existir ou poderiam ser mitigados ou evitados.
Chega, já deu!
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O outro golpe do PIX
Invenção chinesa importada
na era Temer, o PIX logo virou uma febre no Brasil, pela rapidez nas transações
financeiras, em especial transferências eletrônicas (TEDs) e “não ser taxado”, segundo
se acredita.
Mas, por ser mecanismo eletrônico
e desburocratizado, o PIX virou alvo dos trapaceiros de plantão. Não por acaso,
muitos já foram vítimas de golpes com links falsos criados para roubar dados
bancários.
O golpe tático pegou os
bastidores da política. Com a cassação de um, inelegibilidade de outro e muitos
processos judiciais de outros, surgiu o golpe da “chuva de PIX”, expressão tornada viral na internet. Vamos a alguns exemplos.
Dallagnol – se fracassou ao estrear na carreira política,
Dallagnol deu sucesso ao golpe do PIX, graças à sucessão de vídeos lamuriosos
que revelaram um talento para o drama canastrão.
Após desabafo público e flopada
passeata em Curitiba, Dallagnol dramatizou em vídeo pedindo doações em PIX “para
pagar custas processuais”. Dias depois, estava feliz: “muito obrigado, foi
uma chuva de PIX de agentes de Deus”. Detalhe: o vídeo do criador da chuva
de PIX foi gravado em Nova Iorque.
Durante uma entrevista, o
ministro do STF Gilmar Mendes disse que Dallagnol “pode fundar uma igreja
com chuva de PIX”. Em reação, o ex-jurista, nos EUA, prometeu em vídeo processar
o magistrado por intolerância religiosa. É possível que ainda peça chuva de PIX,
na secura do verão tórrido estadunidense.
Carla Zambelli – a deputada federal está cassável por ter perseguido
um cidadão portando uma arma em São Paulo na véspera em 29/10, e por suspeita
de fomentar a barbárie de 8/1. Sua cassação ainda está sendo julgada, mas já saíram
custas de processos judiciais.
Bolsonarista crônica –
ainda apoia aquele que a abandonou –, Carla foi cliente de Karina Kufa,
advogada de Bolsonaro. Karina saiu fora “devido aos problemas financeiros da
cliente”. Não sabemos quem a defende agora, mas vale lembrar de um detalhe.
Antes de Kufa sair, Zambelli havia feito vídeo
pedindo vaquinha PIX de seus apoiadores para “pagar custas processuais
e honorários”. Ela torrou os mais de R$ 100 mil ganhos em viagem à Coreia
do Sul. Virou piada.
Jair Bolsonaro – o inelegível é a bola da vez. Na esteira de
Dallagnol e Zambelli, ele pediu PIX aos apoiadores, com ajuda vultuosa de
parlamentares e alguns empresários, para “pagar multas acumuladas” em SP
por não usar máscaras em vários eventos públicos, no auge da C19. Ganhou R$ 17
milhões, um recorde.
O recorde teve ajuda de parlamentares,
empresários e um jurista do TSE, com altos valores. A conta CDB de Bolsonaro nos
EUA inflou em R$ 17 milhões. O BB fechou a conta por dívida de quase R$ 1
milhão só de impostos devidos, segundo o Conselho de Aplicações Financeiras
(Coaf).
A ex-primeira-dama Michele
também pediu PIX em evento do PL Mulher, no qual o seu marido entrou para “agradecer”
pelos R$ 17 milhões, antes da notícia do fechamento da conta do BB.
Os próximos – no parlamento há uma lista de cassáveis devido ao
incentivo à barbárie de 8/1. Se ocorrer ainda que seja uma ou outra, a patuleia
que leve os guarda-chuvas, pois nova chuva de PIX está prevista. É o outro
golpe do PIX, no qual só se molha quem não quiser levar o guarda-chuva.
Para saber mais
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Política antielite num país
elitista
Até ser assassinada por
milicianos em março de 2018, a vereadora do PSOL Marielle Franco tinha de seu
colega diametralmente oposto Carlos Bolsonaro uma visível relação de inimizade
implantada por ele. Para evitar problemas, ela não usava o elevador dos
políticos, e sim o de serviço.
O costume de Marielle
impressionava colegas de vereança e trabalhadores humildes da Câmara. Ela não
se importava, afinal era não-branca e criada em favela, como tantos ali. Após a
sua morte, não há notícia de outro vereador copiar seu exemplo, mas a distinção
nos elevadores permanece firme em prédios corporativos e residenciais.
Debate e estudo – brasileiros que viajam na Europa descobrem que nos
prédios não há essa distinção “elevador social” ou “de serviço”, e que todos usam o mesmo
espaço. É interessante, pois o nosso elitismo é herança colonial. E há algum
tempo, essa cultura tem caído como tema de debate e estudo.
Em sua dissertação de
mestrado, o psicólogo Fernando Braga da Costa se passou por gari do prédio do departamento de
estudo. Com os garis de verdade viveu seu cotidiano, e observou e descreveu
comportamentos e conversas de seus colegas de estudo, funcionários de estratos
medianos e professores.
O experimento teve um resultado interessante sobre a cultura elitista brasileira e a dissertação
chegou a ser publicada e comentada na internet há alguns anos atrás. E agora
tem interessante reforço.
Esfarrapados – o jornalista Cesar Calejon saiu das sombras da
Jovem Pan para assumir carreira online entre canais independentes do Youtube. Também
escritor, é autor do livro Esfarrapados: como o elitismo histórico-social
moldou as desigualdades no Brasil.
Publicado no presente ano,
o livro aprofunda estudos sobre a historicidade e a fisiologia da cultura
elitista que invisibiliza as classes trabalhadoras periféricas e os mais
vulneráveis, e determina as relações desiguais na atuação dos poderes público e
privado por segmento social.
Política inovadora – eleito em 2020 e seguindo diretrizes inéditas do
governo federal que apoiou, o prefeito carioca Eduardo Paes meteu em 7/2023
decreto proibindo as distinções “social” e “de serviço” em elevadores e acessos
setoriais. Por enquanto vale para instituições públicas, mas pode ir além.
Baseando-se em pressupostos
da lei do racismo e da criminalização da homotransfobia, a medida de Paes
instaura uma política anticlassista que, pelo menos basicamente, pauta pela
equidade de trânsito ou ocupação do mesmo espaço coletivo por pessoas de
diferentes segmentos socioeconômicos.
Como disse o prefeito, “a
medida estabelece princípios constitucionais de equidade”, pois “não há
lei que estabeleça uma divisão espacial por classe social”. Mas, se a
medida e o propósito são inovadores para atacar o preconceito que mais molda as
desigualdades práticas, as pessoas ainda não o são.
Problema – se a medida do prefeito carioca é muito inovadora e
de propósito bem-intencionado, o mesmo não podemos dizer das pessoas. E não
podemos julgar que seja maldade, e sim uma adaptação construída em processo
histórico-cultural que naturaliza a invisibilidade dos mais pobres.
Segundo o psicólogo social Fernando Braga da Costa, o elitismo (classismo) é mais do que o preconceito mais sólido e que construiu os demais já alvejados em medidas legais. É também um grave problema educacional, que precisa mais do que de leis para ser enfrentado. Ele precisa ser erradicado a partir da educação.
Portanto, para o psicólogo, a lei antielite de Paes se torna uma medida inócua na prática, ante uma visão já solidificada, fluidificável apenas a partir de medida educativa. Mas ele elogiaria a inciativa do prefeito, mesmo vindo tão tardiamente na nossa história. Afinal, para combater o pior dos males, antes tarde do que nunca.
Para saber mais
- https://www.ip.usp.br/site/noticia/o-homem-torna-se-tudo-ou-nada-conforme-a-educacao-que-recebe-orquidario-cuiaba/ (Diário de São Paulo, 2008: entrevista com o
psicólogo Fernando Braga da Costa sobre elitismo na dissertação Garis: um
estudo de psicologia sobre invisibilidade pública).
- https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-09012009-154159/publico/costafernando_do.pdf (tese de doutorado de Fernando Braga da Costa, 2008).
- COSTA, Fernando Braga da. Garis:
um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública. 2002. Dissertação
(Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
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