Tupã
venceu. No tapetão
Após a famigerada vitória
imposta pelas bancadas ruralista, bíblica e bolsonarista na Câmara federal, e
em meio ao fim de duas comissões parlamentares de inquérito e tendo-se
interrupção momentânea do julgamento de terroristas do 8/1, o Marco Temporal
foi declarado inconstitucional pelo STF.
Histórica – foi uma votação inegavelmente histórica e precedida
por discursos técnicos, mas acessíveis ao grande público, que configuraram uma
verdadeira batalha dialógica de 9 ministros com outros 2, mas também com alguns
pontos para serem julgados a posteriori.
O placar de plenário foi de
9 a 2. André Mendonça e Nunes Marques foram favoráveis ao marco no inteiro teor
essencial.
Significados positivos – o significado mais positivo dessa decisão é o
reconhecimento de que a CF-1988 não delimita tempo de permissão para demarcação
de terras indígenas. Ou seja, ela não só permite como prevê as novas terras a
serem demarcadas pelo governo.
Outra vitória dos povos
originários foi a derrota jurídica dos fazendeiros ou posseiros em
questionamentos sobre terras demarcadas. Qualquer reivindicação do tipo
implicará em derrota judicial. Mas, ainda há dois pepinos a serem
resolvidos.
Brechas – a derrubada do marco temporal ainda deixou brechas
a serem resolvidas pelo STF. Esse foi o motivo da “guerra dialógica” dos
ministros antes de seus votos. São dois pontos polêmicos: a mineração em terras
indígenas e a indenização de fazendeiros que porventura tenham sobreposto suas
terras em áreas indígenas.
A indenização aos
fazendeiros é uma proposta surgida há pelo menos 15 anos atrás. Segundo alguns noticiosos,
Alexandre de Moraes já teria conversado com a hoje ministra Simone Tebet,
conhecido nome ruralista de Mato Grosso do Sul, em 2017 sobre essa proposta. Mas
nesse tempo todo, ela ficou esquecida nas gavetas do poder.
A mineração em terra
indígena tem sido mote dos bolsonaristas que justificam a possibilidade de
interesse dos originários pela atividade como meio de vida. Mas, além do alto
impacto ambiental, a atividade não é tradicional a eles e pode abrir caminho
para ação intensiva e extensa pelos não-indígenas em suas terras.
A indenização por
sobreposição de terras de fazendas em áreas indígenas é, de fato, um problema. Neste caso, a propositura defendida tanto por bolsonaristas quanto pelos ruralistas fala dos chamados casos de boa-fé.
O problema, porém, é que não há como saber se este ou aquele caso individual derivou de desconhecimento
da existência de uma terra previamente demarcada (boa-fé), uma vez que a grilagem de terras é
prática corriqueira no Norte e no centro-oeste do país.
Se aprovada, a indenização
de fazendeiros de suposta “boa-fé” na sobreposição de terras em área indígena pode
custar à União em até R$ 1 bilhão. Além
do absurdo em si, este valor escancara a gravidade da prática, cuja boa-fé é no
mínimo duvidosa, se de fato existiu. Afinal, alegar desconhecimento de sobreposição
é fácil.
Além do tapetão – a vitória indígena no STF marca o fim de um dos
capítulos mais importantes do tema indígena. Juristas indígenas e não
indígenas, ativistas da causa e analistas sociopolíticos condenavam a tese que,
se aprovada, poderia inviabilizar as demarcações após a CF-1988 e
vulnerabilizar a maioria dos povos indígenas do Brasil.
Essa vitória dos cocares não ocorre somente sobre os tratores agrícolas, ela se estende às retroescavadeiras e os explosivos utilizados pelas mineradoras, que tradicionalmente não economizam nas área de terra a ser minerada e atingem áreas de preservação permanente. Isso significa que elas também que se cuidar.
Porém, se Tupã levou os
ministros a bater o martelo pela inconstitucionalidade do marco temporal, em
campo se revela um desafio radicalmente penoso que acomete vários povos
indígenas.
Entre os flagelos, figuram três
menores yanomamis amarrados em árvores e ameaçados por garimpeiros que os acusam
de roubo de celular e de uma arma (o crime já foi levado ao MPF), o assassinato
de Guajajara no Maranhão por grileiros, a violência policial contra
Guaranis-Kaiowá no MS e contra os Xavante no MT, entre outros casos no país.
Notícia da Agência Pública
reporta a utilização de drones por homens armados por empresas do agro que fazem papel de polícia com
ameaça sobre até sem-terra e indígenas com roças de subsistência na Amazônia. Este, os demais casos citados – e tantos outros – têm ciência
dos ministérios relacionados, da Funai, da PF e do MPF.
A vitória dá certa esperança
aos povos originários sobre seus territórios, enquanto Tupã, vitorioso no
tapetão, não tem previsão de descanso. O grande deus indígena novamente se
volta aos campos e florestas para vencer, mesmo tão aos poucos e com ajuda
judicial, uma guerra iniciada há 500 anos e sem previsão para acabar.
Para saber mais
- https://www.brasildefato.com.br/2023/09/21/com-voto-de-fux-stf-forma-maioria-contra-o-marco-temporal-das-terras-indigenas
- https://www.brasildefato.com.br/2023/09/21/indigenas-ameacados-pelo-marco-temporal-comemoram-vitoria-no-stf-agora-da-para-respirar
- https://www.brasildefato.com.br/2023/09/20/entenda-a-indenizacao-a-fazendeiros-em-discussao-no-julgamento-do-marco-temporal
- https://www.brasildefato.com.br/2023/09/20/validacao-do-marco-temporal-pode-agravar-violencia-contra-os-guarani-kaiowa-temem-indigenas-stf-retoma-julgamento-nesta-quarta
- https://www.brasildefato.com.br/2023/09/21/criancas-indigenas-sao-amarradas-e-sofrem-ameacas-de-garimpeiros-na-terra-indigena-yanomami
- https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/09/21/associacao-cobra-investigacao-sobre-criancas-amarradas-por-garimpeiros-na-terra-yanomami.ghtml
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-09/entidades-denunciam-garimpeiros-que-teriam-amarrado-criancas-yanomami
- https://apublica.org/2023/09/marco-temporal-indenizar-fazendas-em-terras-indigenas-pode-custar-pelo-menos-r-1-bilhao/
- https://apublica.org/2023/09/segurancas-armados-usam-drones-para-vigiar-e-denunciar-sem-terra-em-belo-sun-e-belo-monte/
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Correndo para salvar as
mulheres
Em meio à luta livre sobre
a união homoafetiva na Câmara, que rendeu discurso chulo do deputado pastor
sargento Isidório¹, o STF se volta – de novo – para julgar um tema que nunca
morre: os limites legais da interrupção da gravidez, por cruzamento de dados de
duas ações, uma de 2016 e outra do PSOL de 2017.
Os atuais limites legais
brasileiros para aborto voluntário são estupro, risco à vida materna e
anencefalia fetal, condição incompatível com a vida acrescentada pelo STF junto
a especialistas em saúde, biologia, social e direito.
Arguição PSOL – foi escrita pelo grupo feminista do PSOL e propõe
descriminalização do aborto voluntário em até 12 semanas (estágio
pré-fetal). Baseia-se em estudos
publicados em revistas científicas de renome e acrescenta fundamentos
sociodemográficos e de saúde que enfatizam sobre ocorrências espontâneas.
Objetiva combater
desigualdades de atendimento médico, a denúncia médica ilegal e a
invisibilidade do aborto espontâneo. Seu julgamento pelo STF foi interrompido
por vários fatos sociopolíticos relevantes nos últimos anos. Mas a arguição tem um caminho favorável no STF, a começar pelo atual presidente, Luís Roberto Barroso.
Segundo Barroso, “a criminalização do aborto no 1º trimestre [...] viola
vários direitos fundamentais das mulheres” como autonomia, integridade
biopsíquica, direitos sexuais e reprodutivos e igualdade de gênero. “Se
fosse com os homens, o assunto já estaria resolvido há muito tempo”,
finalizou.
Outros ministros também se
mostram favoráveis, diferindo da maioria conservadora do Parlamento. Entre a esquerda
progressista se destaca o pastor Henrique Vieira (PSOL), por ser contrário às bancadas da bíblia e dos bolsonaristas ao desenhar um Deus bondoso, plural e
inclusivo e defender o acolhimento à mulher que aborta.
Lacunas – apesar dos avanços, a arguição do PSOL objetiva
resolver lacunas, como a desimportância dada aos perigos do aborto espontâneo e
a criminalização da mulher durante e pós-aborto – um problema que condena a
mulher como ser pensante, de desejos e de ações e conquistas.
A criminalização por
profissionais de saúde pode estar por trás de decisões perigosas ainda comuns,
como a prática em clínicas clandestinas ou por conta própria, com uso de certos
fármacos alopáticos e chás abortivos.
Jurisprudência – é aplicada em casos mais incomuns ou excepcionais. Em meninas grávidas por estupro, a causa é geralmente favorável a elas. Mas há de se considerar também a jurisprudência a
cobrir casos excepcionais, como interrupção no 2º trimestre gravídico devido a
condições maternas (p.e., dilatação do colo uterino).
Apesar de já ser um período fetal, o 2º semestre de gravidez também é tão ruim para a gestante quanto para o nascituro, em ocorrência adversa que obriga ao aborto. O feto geralmente morre, e a gestante sofre considerável trauma emocional de perda diante da inevitabilidade do evento, necessitando de assistência psicológica.
Dados díspares – 1 em cada 7 brancas, e 1 em 5 negras tem aborto
(média 6), até os 40 anos. 1 gestante morre a cada 28 abortos fracassados. A cada aborto legal, SUS socorre 100
malsucedidos. 8 em 10 interrupções são espontâneas. Em 100 gestações, 20 serão abortos
espontâneos. O problema é a 5ª maior causa de morte materna.
Vale acrescentar que, a cada 10 interrupções gravídicas, 8 são casos espontâneos. Daí o maior risco de morte e, por isso, a urgente necessidade de as autoridades considerarem esse fato com atenção e consciência ética.
Gestantes menores de 14
anos: os dados são incertos por fatores diversos¹, mas é
certo que 62% delas são pobres e 52% não-brancas, segundo o Sistema Nacional de
Agravos de Notificação (SINAN/Min Saúde, 2019).
Fatores dos abortos – estupro, risco à vida materna¹ (citados no CP de
1940), terapêutico (prova legal de anencefalia fetal, há países que permitem em
outros casos), desejo imperioso de interromper gravidez indesejada, e mais
raramente, surto psiquiátrico como os de depressão grave não tratada levam a abortos voluntários.
Síndromes fetais
incompatíveis com a vida, ou as da gestante², um mau desenvolvimento genital
interno, violência física e forte impacto emocional estão entre os vários fatores de aborto espontâneo. A ideologização que o invisibiliza aumenta a incriminação sobre a mulher e aumenta o risco de letalidade materna: é um feminicídio.
Reflexões – em parte, a ação do PSOL se debruça na política de combate a elementos como os já citados. Mas vale salientar que isso não basta: deve-se haver uma política pragmática de educação básica que fomente a discussão de gênero nas escolas, atinja as famílias e intimide os preconceitos
machistas que alimentam o fascismo.
A criminalização da mulher
é histórica, cultural, religiosa e política. E transcende a questão do aborto.
Daí a aliança de megaigrejas com os parlamentares extremistas em pautas moralistas que sustentam o machismo
patriarcal. Mas, ao contrário do que diz a lenda, não existe a tal “abortista”.
Não há quem goste de
abortar. Essa prática é difícil, dolorosa e arriscada. Mas em muitos casos, é
um mal necessário à vida e ao bem-estar da menina ou mulher que, quiçá possa
ter um futuro melhor, inclusive, se quiser, conquistar o desejo de uma
maternidade saudável e feliz.
Mas, para tanto, a educação para a cidadania é a
melhor arma. Enquanto ela não se concretiza, corramos para salvar as mulheres com as armas progressistas disponíveis.
Notas da autoria
¹ abuso ignorado ou não
confirmado por silêncio forçado da vítima, isolamento, cultura familiar, etc.
² p. ex., a temida eclâmpsia,
a síndrome da cardiolipina e outras; gravidez anômala de alto risco, morte fetal.
Para saber mais
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