Um padre incomoda a elite
Desde a colonização até a República, a História
do Brasil era muito romantizada pela ditadura militar. Até eventos sangrentos tinham
tons heroicos. Entre tantos personagens, uma instituição se destacou em papel sociopolítico
indelével.
ICAR – a Igreja
Católica Apostólica Romana (ICAR) teve papel imprescindível em nossa formação
sócio-histórica. Inclusive, claro, nos defeitos culturais como o patriarcalismo,
o machismo e o elitismo.
Em mais de 300 anos, as igrejas mais portentosas
e adornadas com ouro eram destinadas a senhores e membros da Coroa (era
colonial). Escravos, mestiços livres e pobres iam em templos simplórios, mas de
singela e sublime beleza.
Na República, a separação de classe se tornou
local dentro da mesma igreja. Nos anos 1960 surgiram movimentos progressistas católicos
como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais¹, baseadas
na Teologia da Libertação de Leonardo Boff.
Além de Boff, outros nomes se destacaram, como
os freis Tito e Beto; Dom Evaristo e Zilda Arns (líderes das Pastorais), o saudoso Dom
Hélder Câmara contra a ditadura; e os padres Dom Pedro Casaldáliga e o italiano
Lino Allegri. Nos anos 1980 surge nessa linha um novo nome.
Júlio Lancelotti – já
era auxiliar de enfermagem e pedagogo quando se tornou padre há 40 anos. É vigário
episcopal da Pastoral do povo de Rua e pároco da Paróquia de São Miguel Arcanjo,
no bairro da Mooca, pela Diocese de São Paulo.
Fundou a Casa Vida para acolher crianças
com HIV e trabalhou na antiga FEBEM. Chegou a ser “flagrado” pela mídia em
abrigo improvisado atendendo a drogaditos, profissionais do sexo e travestis,
crianças abandonadas e famílias despejadas e com fome. Na época, o HIV era uma sentença de morte.
Foi premiado por várias instituições, como a
OAB-SP, Organização Pan-Americana de Saúde, Prêmios Nacionais de Direitos Humanos
(vários), Prêmio Poc Awards da Gay Blog Br por se posicionar contra a
homofobia e, em 2023, recebeu a medalha Grã-Cruz da Ordem do Mérito do MJSP de Flávio
Dino.
Inimigos – se
a Igreja e tantas outras instituições o viam como exemplo de amor ao próximo,
ele teve inimigos de dois lados. De um lado, setores conservadores de classe
média alta escandalizados com a atenção do padre aos excluídos, e de outro, um casal
de ex-internos da FEBEM.
Em 2007, esse casal acusou o padre de pedofilia
por 3 anos, para ter R$ 200 mil. Em 2011 foi denunciado e preso, mas depois solto.
Em 2011 o casal foi condenado à prisão após nova tentativa de extorsão e
ameaçar Lancelotti de morte.
Nessa mesma época, o padre sofreu intensa
perseguição por alguns meios de mídia. Sua mãe ainda era viva quando os
jornalistas foram até sua casa para ganhar proveito das acusações então
correntes.
O mix dessa acusação, redes sociais e extrema-direita
com MBL e bolsonarismo criou uma acusação muito sinistra que movimentou nesse
janeiro de 2024 a vereança bolsonarista de São Paulo, liderada pelo MBL
Rubinho.
CPI: da
vinda ao enterro – os vereadores bolsonaristas assinaram a
solicitação de abertura da CPI, cujo autor é o MBL Rubinho Nunes (União), que acusa o padre de atuar numa “máfia da
pobreza” com ONGs alvos de suspeitas. Após Tammy Miranda, outros vereadores
voltaram atrás e a CPI perdeu força até se colapsar.
A pressão popular – principalmente ateus e cristãos progressistas
– foi responsável pelo colapso da CPI contra Júlio Lancelotti ao partir para cima dos vereadores. Mas a sua
criação despertou perguntas entre os que não entenderam a razão de algo tão
infundado e sem provas.
A CPI foi um marketing pseudomoralista para o
MBL em likes nas redes sociais. Mas há outro fator mais relevante: o padre já incomodava
uma elite política e moralmente conservadora mesmo na sua longínqua origem nada
alvissareira.
Com o pedido desmoralizado, o MBL agora nega ligação com a CPI, ainda que o seu autor seja um MBL. Agora já se ferrou, o mais humano é aceitar a sua estultícia. Pois defende medidas perversas como internação compulsória de dependentes químicos e outras ações higienistas condenáveis de extrema-direita.
Ao atender aos invisíveis, padre Júlio
Lancelotti se tornou um indesejável para tais setores elitistas que se veem representados pelo MBL. Uma figura tão
incômoda a eles quanto popular entre os oprimidos. E estes últimos são mais
numerosos e, sim, vistos por outras camadas da sociedade e mesmo da ICAR.
A solicitação de CPI serviu, ao menos, para que
a figura do padre oportunize à parcela conservadora da ICAR a se reinventar e
reaprender enquanto é tempo para reconquistar o público perdido. E, à sociedade
elitista, a oportunidade de rever seus conceitos sem fundamentos, inclusive na
sua fé.
Nota da autoria
¹ Pastorais da Criança, da Família, do Campo, dos Sem-Teto, da Juventude e outros
Para saber mais
----
Novas revelações de golpismo
Ao aceitar a oferta de delação premiada pela PF,
o coronel do EB Mauro Cid finalmente abriu a boca após manter o silêncio na CPMI
do 8/1. Nomeando os bois, ele disse que acompanhou reuniões no Planalto envolvendo
chefes das FAs, da PGR, da Abin, do GSI e de alguns ministérios, para o plano de
golpe.
Cid afirmou que, após repercussão da fatídica reunião
ministerial de 22//4/2020 graças ao STF, as reuniões paralelas envolvendo esse
povo todo ocorreram no Planalto. Cid confirmou que Bolsonaro convidou o hacker
Walter Delgatti para rastrear urnas eletrônicas e ministros do TSE.
Entre os ministérios envolvidos estavam o da Justiça
e Segurança Pública, o da Casa Civil, o da Defesa e, em certo grau, o da Economia
e o da Saúde. E Delgatti teve promessa de proteção jurídica de Bolsonaro, mas com
os atos fracassados sobre as urnas, foi abandonado pelo ex-governante.
Ações – no MJSP, André Mendonça
fez lista de servidores públicos contrários ao governo e paralisou a PF no caso
Marielle Franco. Anderson Barros continuou na espionagem e se reuniu com Bolsonaro,
o ministro da Defesa e chefes das FAs para o golpe pós-eleição.
A Abin de Alexandre Ramagem utilizou programa
espião da israelense Cognyte para rastrear opositores e reuniu ministros
envolvidos e militares das FAs para ajudar os civis a tomar Brasília se Lula
fosse eleito. E Guedes propôs PEC que coibisse filiação partidária de
servidores públicos com ameaça de corte salarial ou exoneração.
Na Saúde, cada qual a seu tempo, Pazuello
promoveu a mortandade e o kit-X19 em nome das cloroquinas, e Marcelo Queiroga
postergou o quanto pode o programa de vacinação. E o PGR Augusto Aras engavetou
geral tudo isso para promover a santidade eleitoral de Bolsonaro.
Kids pretos – vestidos
de preto e máscaras, especialistas das Forças Especiais das FA se infiltram em
insurreições populares para atos violentos organizados. Dos mais de 10 mil
milicos nos altos escalões do governo, alguns eram kids pretos nas reuniões palacianas
e mandaram alunos para a barbárie de 8/1.
Nos planos, duas vítimas – os
fatos acima não são mais novidade. Novidade mesmo veio na entrevista à Globo
News concedida por Alexandre de Moraes. Ele contou que os radicais tinham,
de fato, intenção de mata-lo.
Segundo o ministro, os radicais tinham três planos
diferentes, sendo Goiânia o local de seu fim definitivo, e com a participação
de militares. Seja como for, todos os planos felizmente fracassaram.
E a outra vítima – não citada na entrevista –
era Lula. Ideias de atentado a ele correm desde a campanha eleitoral. Na
invasão do Planalto em 8/1, a intenção não se limitou à destruição: os radicais
queriam matar o presidente.
Gravidade – as revelações de Xandão trazem
à tona a reflexão sobre o quão profundo é o teor ofensivo assumido pela
extrema-direita brasileira. E tal teor já era alvo de desconfiança de nomes ligados
à política.
Carlito e Janones –
em seu livro Mito, a cronologia do caos, Carlito revela a história do
bolsonarismo a partir das inspirações nazistas, e os contatos dos Bolsonaro com
descendentes de oficiais nazistas ligados a Hitler nos anos 2010, conforme matéria
do Intercept Brasil. E isso vai de encontro a André Janones.
Na esteira de Carlito, o deputado elaborou uma
PL que visa criminalizar o bolsonarismo. Após ele ter ajudado na eleição de
Lula, sua PL foi temida pelos colegas bolsonaristas, que se encorajariam em enfrenta-lo
após o vazamento de áudio com suspeita de rachadinha – uma prática bem bolsonarista.
Janones acredita também que, tal como Hitler, através
de sua ideologia Bolsonaro tinha intenção de poder para instaurar uma ditadura.
O aposentado Ricardo Lewandowski alertou que “agentes do
caos seguem ativos e o espectro do autoritarismo ainda nos assombra”, no
aguardo de “momento propício para novo golpe”.
O livro de Carlito, a PL de Janones e o alerta
de Lewandowski nos revela que, mesmo com tantos da caterva presos,
desmonetizados e cassados, a extrema-direita não descansa. Bolsonaro segue
atiçando nomes de confiança para a nova tomada de poder, a partir das
eleições de 2024. Alerta, meu povo!
Para saber mais
Nenhum comentário:
Postar um comentário