domingo, 11 de fevereiro de 2024

ANÁLISE: First Mile e os tentáculos do extremismo

 

      Passada a era Bolsonaro, se esperava que as coisas se normalizariam em poucos meses. Engano: alguns dos radicais em instituições como a Abin e a PF são servidores de carreira, exoneráveis somente por PAD¹ no trânsito em julgado.  O seguimento das investigações revelou um escândalo que pode ultrapassar o da ditadura.
            Conforme as investigações da operação Lesa-pátria avançam, mais parlamentares bolsonaristas são acordados às 6h pelo já popular toc-toc-toc da PF. Vitimizações em redes sociais à parte, muita coisa estranha por trás tem aparecido. Para entender a história em resumo, vamos regredir no tempo.
            22/4/2020 – “a informação está uma porcaria [...] o meu particular funciona [...] se não puder trocar o diretor, troco o ministro”, disparou o então presidente Bolsonaro no que foi reunião de uma orcrim, fazendo duas referências principais.
            Uma se relacionou à crise com o então MJSP Sergio Moro, e a outra, o “meu particular”, se revela este ano e envolve Abin, GSI e Forças Armadas em uma complexa rede de espionagem interna envolvendo um software espião.
            Uma se relacionou à crise com o então MJSP Sergio Moro, e a outra, o “meu particular”, se revela este ano e envolve Abin, GSI e Forças Armadas em uma complexa rede de golpismo.
            Meados 2022 – o ex-GSI gal. Augusto Heleno se destacou na nova reunião ministerial no salão do Planalto. Ele insistiu que “deve-se bater o martelo antes das eleições” referindo-se ao plano de golpe. Expôs uma estratégia golpista da Abin. Antes de ser interrompido por Bolsonaro, ele chegou a citar "espião eletrônico", referência da investigação da "Abin paralela".
            First Mile – há algum tempo, os governos contam com monitoramento eletrônico de amplo espectro de captura e análise de dados, como o Córtex, que captura e armazena dados pessoais de milhares de cidadãos para segurança remota. E, para o plano golpista, foi envolvido um verdadeiro espião eletrônico: o First Mile.
            Desenvolvido pela israelense Cognyte, ele teria sido adquirido inicialmente para monitoramento remoto de dados de controle, dentro da LAI – lei de acesso à informação. Mas na era Bolsonaro, ele foi ostensivamente aperfeiçoado, talvez dentro da Abin, para contribuir no plano golpista.
            Abin – por mentira ou silêncio, diretores da Agência Nacional de Inteligência (Abin) da era Bolsonaro estão na lista de indiciados no relatório final da CPMI do 8/1. Eles se envolveram na Abin Paralela, grupo de PFs e militares liderados pelos ex-diretores da Abin, Alexandre Ramagem e o adjunto Vitor Carneiro.
            Num fim de semana, a PF acordou o hoje deputado federal Ramagem em seu lar funcional. O motivo: seu e-mail institucional ainda estava ativo, conforme trocas de conteúdos suspeitos deste ano, salvos na nuvem, com militares e os Bolsonaro.  Mas e-mails não podem durar muito tempo? Alguns específicos, não.
            E-mails institucionais normalmente invalidam após algum tempo da saída do responsável. Mas dada a natureza e missão da Abin e outras entidades afins, tais e-mails só funcionam nas instituições ou não deveriam ser salvos em nuvem.  
            Como o de Ramagem estava pleno até em dispositivo pessoal e contendo e-mails de Bolsonaro, a PF-RJ foi acionada.
            Angra dos Reis – lá, os Bolsonaro estavam ausentes no momento da abordagem, mas o ex-presidente e o 02 Carlos retornaram, em aparente disposição. Divulgado pela mídia, o feito entusiasmou antibolsonaristas. Mas... muita calma nessa hora.
            Detalhes suspeitos – as primeiras imagens mostram a recepção tranquila de Jair e Carlos Bolsonaro aos PFs de saída. A saliência abdominal do ex-presidente era anormal. O carro sem inscrição, cinza e placa não revelada. O horário da abordagem foi ao menos 1h após o normal ao amanhecer nas imagens: o sol já parecia meio alto.
            Abordagem da PF às 6h serve para evitar vazamento de informe privilegiado ou distorção. E nada escapa à vistoria, nem os corpos dos abordados. Objetos afins ao tema de investigação são apreendidos. A abordagem aos Bolsonaro pareceu tão antiética e errática quanto estes.
            30 mil – se lembram do dossiê de servidores críticos a Bolsonaro em mãos do ex-MJSP André Mendonça? Pois é. Foi criado a partir do Córtex, plataforma de big data com detalhes de 200 milhões de pessoas. O First Mile pode ter engordado o dossiê ou tenha selecionado ao menos entre 30 e 60 mil informes privilegiados que foram enviados a Israel.
            30 ou 60 mil monitoramentos ou pessoas é um número inconclusivo. No aguardo do resultado da perícia, o STF Alexandre de Moraes revelou que autorizará a publicação dos nomes dos vigiados devido à diversidade: de membros dos tribunais superiores a populares incluindo caminhoneiros, taxistas e trabalhadores por aplicativo.
            Nem aliados – nem estes escaparam da espionagem. Conforme entrevistas em vídeos e podcasts no Youtube, a vigilância era diária. Segundo a hoje influencer Joice Hasselmann, sua rotina era vigiada até de perto, inclusive de carro, durante a trajetória entre a moradia e o parlamento.
            Outros perigos – se o rastreio da Córtex foi aproveitado pelo First Mile, ainda faltam provas. Mas agora há outro possível fornecedor de dados ao espião israelense: as operadoras de telefonia móvel, já que elas têm sintonia com as redes sociais neles acessadas. E elas não comunicaram seu conhecimento à Anatel, o que abre um leque de suspeita.
            Não sabemos o quanto de dados elas obtêm de nós, mas a IA das big techs são capazes de ler nossa intenção antes de digitarmos, e na rede as operadoras podem obter nossos dados por elas. Não sabemos se elas colaboraram com o governo Bolsonaro em fornecimento de dados, mas esse mundo tão digitalizado, nada é impossível.
            Bandidos – como o governo Bolsonaro distorceu a triagem do Exército em dar título de CAC a cidadãos comuns, já sabemos pela mídia que bandidos de orcrims viraram CACs para engordar legalmente o seu já pesado arsenal armado. E como se não bastasse, eles sabem mais de nossas vidas do que podemos imaginar graças à IA.
            A partir do Córtex, eles acessaram detalhes privados das vítimas. Em Brasília, o delegado Erick Sallum foi ameaçado de morte no seu Telegram. Ele identificou ser um dos meliantes da quadrilha local que investiga e se espantou com o nível de informações de sua rotina acessado por eles.
            Se ele e outras autoridades – sempre cuidadosos em sua vida privada – foram rastreados dessa forma, é possível que ex-investigadores do caso Marielle em 2019-22 tenham sido vigiados. E nós, patuleia? Nossa vulnerabilidade é gritante: a privacidade foi para o espaço.  Estamos não só nas mãos de bandidos.  Também presos nos tentáculos do extremismo.

Para saber mais
- https://www.youtube.com/watch?v=p8BZsJF6nao (João Cezar Castro Rocha no ICL explica o esquema metódico da família Bolsonaro de apropriação da grana pública e da construção do golpismo)
https://www.youtube.com/watch?v=5CUTbbPHL5k (ICL Notícias – Chico Pinheiro e a ABIN)
- https://www.youtube.com/watch?v=pGIiikFpZCU (ICL Notícias   - história do First Mile)
- https://www.intercept.com.br/2020/09/21/governo-vigilancia-cortex/ (córtex, da placa do carro ao CPF e até DNA)
- https://www.youtube.com/watch?v=w7AptaFBo94 (Meteoro Brasil – operadoras de celular sabiam do First Mile)
- https://www.youtube.com/watch?v=r_mOSbk8ebM (TV Fórum  explica o First Mile, programa espião usado na Abin)
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