Passada a era Bolsonaro, se esperava que as coisas se
normalizariam em poucos meses. Engano: alguns dos radicais em instituições como
a Abin e a PF são servidores de carreira, exoneráveis somente por PAD¹ no trânsito em julgado. O seguimento das investigações revelou um escândalo que pode ultrapassar
o da ditadura.
Conforme as investigações da operação Lesa-pátria
avançam, mais parlamentares bolsonaristas são acordados às 6h pelo já popular
toc-toc-toc da PF. Vitimizações em redes sociais à parte, muita coisa estranha
por trás tem aparecido. Para entender a história em resumo, vamos regredir no
tempo.
22/4/2020 – “a informação está uma porcaria [...] o meu
particular funciona [...] se não puder trocar o diretor, troco o ministro”,
disparou o então presidente Bolsonaro no que foi reunião de uma orcrim, fazendo
duas referências principais.
Uma se relacionou à crise com o então MJSP Sergio
Moro, e a outra, o “meu particular”, se revela este ano e envolve Abin, GSI e
Forças Armadas em uma complexa rede de espionagem interna envolvendo um
software espião.
Uma se relacionou à crise com o então MJSP Sergio
Moro, e a outra, o “meu particular”, se revela este ano e envolve Abin, GSI e
Forças Armadas em uma complexa rede de golpismo.
Meados 2022 – o ex-GSI gal. Augusto Heleno se destacou na nova
reunião ministerial no salão do Planalto. Ele insistiu que “deve-se bater o martelo
antes das eleições” referindo-se ao plano de golpe. Expôs uma estratégia golpista
da Abin. Antes de ser interrompido por Bolsonaro, ele chegou a citar "espião eletrônico", referência da investigação da "Abin paralela".
First Mile – há algum tempo, os governos contam com monitoramento eletrônico de amplo espectro de captura e análise de dados, como o Córtex, que captura e armazena dados pessoais de milhares de cidadãos para segurança remota. E, para o plano golpista, foi envolvido um verdadeiro espião eletrônico: o First Mile.
Desenvolvido pela israelense Cognyte, ele teria
sido adquirido inicialmente para monitoramento remoto de dados de controle,
dentro da LAI – lei de acesso à informação. Mas na era Bolsonaro, ele foi
ostensivamente aperfeiçoado, talvez dentro da Abin, para contribuir no plano golpista.
Abin – por mentira ou silêncio, diretores da Agência
Nacional de Inteligência (Abin) da era Bolsonaro estão na lista de indiciados
no relatório final da CPMI do 8/1. Eles se envolveram na Abin Paralela,
grupo de PFs e militares liderados pelos ex-diretores da Abin, Alexandre Ramagem e o adjunto Vitor Carneiro.
Num fim de semana, a PF acordou o hoje deputado federal
Ramagem em seu lar funcional. O motivo: seu e-mail institucional ainda estava
ativo, conforme trocas de conteúdos suspeitos deste ano, salvos na nuvem, com
militares e os Bolsonaro. Mas e-mails
não podem durar muito tempo? Alguns específicos, não.
E-mails institucionais normalmente invalidam após
algum tempo da saída do responsável. Mas dada a natureza e missão da Abin e
outras entidades afins, tais e-mails só funcionam nas instituições ou não
deveriam ser salvos em nuvem.
Como o de
Ramagem estava pleno até em dispositivo pessoal e contendo e-mails de Bolsonaro, a PF-RJ foi acionada.
Angra dos Reis – lá, os Bolsonaro estavam ausentes no momento da abordagem,
mas o ex-presidente e o 02 Carlos retornaram, em aparente disposição. Divulgado pela mídia, o
feito entusiasmou antibolsonaristas. Mas... muita calma nessa hora.
Detalhes suspeitos – as primeiras imagens
mostram a recepção tranquila de Jair e Carlos Bolsonaro aos PFs de saída. A
saliência abdominal do ex-presidente era anormal. O carro sem inscrição, cinza
e placa não revelada. O horário da abordagem foi ao menos 1h após o normal ao
amanhecer nas imagens: o sol já parecia meio alto.
Abordagem da PF às 6h serve para evitar vazamento de
informe privilegiado ou distorção. E nada escapa à vistoria, nem os corpos dos
abordados. Objetos afins ao tema de investigação são apreendidos. A abordagem
aos Bolsonaro pareceu tão antiética e errática quanto estes.
30 mil – se lembram do dossiê de servidores críticos a
Bolsonaro em mãos do ex-MJSP André Mendonça? Pois é. Foi criado a partir do Córtex,
plataforma de big data com detalhes de 200 milhões de pessoas. O First
Mile pode ter engordado o dossiê ou tenha selecionado ao menos entre 30 e
60 mil informes privilegiados que foram enviados a Israel.
30 ou 60 mil monitoramentos ou pessoas é um número
inconclusivo. No aguardo do resultado da perícia, o STF Alexandre de Moraes
revelou que autorizará a publicação dos nomes dos vigiados devido à
diversidade: de membros dos tribunais superiores a populares incluindo
caminhoneiros, taxistas e trabalhadores por aplicativo.
Nem aliados – nem estes escaparam da espionagem. Conforme
entrevistas em vídeos e podcasts no Youtube, a vigilância era diária. Segundo a
hoje influencer Joice Hasselmann, sua rotina era vigiada até de perto,
inclusive de carro, durante a trajetória entre a moradia e o parlamento.
Outros perigos – se o rastreio da Córtex foi aproveitado pelo First
Mile, ainda faltam provas. Mas agora há outro possível fornecedor de dados
ao espião israelense: as operadoras de telefonia móvel, já que elas têm
sintonia com as redes sociais neles acessadas. E elas não comunicaram seu
conhecimento à Anatel, o que abre um leque de suspeita.
Não sabemos o quanto de dados elas obtêm de nós, mas a
IA das big techs são capazes de ler nossa intenção antes de digitarmos,
e na rede as operadoras podem obter nossos dados por elas. Não sabemos se elas
colaboraram com o governo Bolsonaro em fornecimento de dados, mas esse mundo
tão digitalizado, nada é impossível.
Bandidos – como o governo Bolsonaro distorceu a triagem do
Exército em dar título de CAC a cidadãos comuns, já sabemos pela mídia que
bandidos de orcrims viraram CACs para engordar legalmente o seu já pesado
arsenal armado. E como se não bastasse, eles sabem mais de nossas vidas do que
podemos imaginar graças à IA.
A partir do Córtex, eles acessaram detalhes privados
das vítimas. Em Brasília, o delegado Erick Sallum foi ameaçado de morte no seu
Telegram. Ele identificou ser um dos meliantes da quadrilha local que investiga
e se espantou com o nível de informações de sua rotina acessado por eles.
Se ele e outras autoridades – sempre cuidadosos em sua
vida privada – foram rastreados dessa forma, é possível que ex-investigadores
do caso Marielle em 2019-22 tenham sido vigiados. E nós, patuleia? Nossa
vulnerabilidade é gritante: a privacidade foi para o espaço. Estamos não só nas mãos de bandidos. Também presos nos tentáculos do extremismo.
Para saber mais
- https://www.youtube.com/watch?v=p8BZsJF6nao (João Cezar Castro Rocha
no ICL explica o esquema metódico da família Bolsonaro de apropriação da grana
pública e da construção do golpismo)
- https://iclnoticias.com.br/pf-apura-se-ramagem-atendia-pedidos-de-carlos-bolsonaro-mesmo-fora-da-abin/ (coluna Juliana Dal Piva)
- https://iclnoticias.com.br/servidores-contam-que-ramagem-e-investigados-usavam-agentes-para-acessar-sistemas/ (Juliana Dal Piva)
- https://www.youtube.com/watch?v=pGIiikFpZCU (ICL Notícias - história do First Mile)
- https://www.intercept.com.br/2020/09/21/governo-vigilancia-cortex/ (córtex, da placa do carro
ao CPF e até DNA)
- https://www.youtube.com/watch?v=w7AptaFBo94 (Meteoro Brasil –
operadoras de celular sabiam do First Mile)
- https://www.youtube.com/watch?v=r_mOSbk8ebM (TV Fórum explica o First Mile, programa espião usado
na Abin)
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