Reagindo à pressão
gospel
Segundo o mapa religioso do Censo IBGE 2022,
cerca de 35 milhões de pessoas se declaram evangélicos, 80% dos quais nas alas
pentecostais e neopentecostais. E 63% se declaram católicos – uma encolha de
27% desde 1990. 2% são minorias e sem religião.
Inexiste comparação relacional de
católico-pagão¹ e católico-protestante, considerando-se temporalidade. A Igreja
Católica tentou erradicar o paganismo afro e indígena por 500 anos, mas em 35
anos, ela recuou diante da investida gospel. Fenômeno fora da curva? Sim, mas
tem explicação.
Tolerância –
mesmo tradicional, a instituição ICAR deixou de perseguir para tolerar as
demais fés por influência de fatos externos como o Iluminismo, a Revolução
Francesa, o avançar da ciência e o reconhecimento das fés pelo II Império. O
laicismo republicano ajudou no aprofundamento dessa relação.
Como tolerância é só respeito e não aceitação, a
ICAR viu no protestantismo um aliado na evangelização massiva dos praticantes
afro-brasileiros. Foi um sucesso, ao ponto de as práticas quase
desaparecerem. Mas a coisa mudaria. O
antigo temor da “ameaça protestante” retornou, desta vez o
de eliminar “a maior nação católica do mundo”.
O mecanismo de conversão gospel é ritual: nos
cultos há imitação de ritos africanos e atendimento a queixas de cada fiel. O
sucesso ainda se mantém, mas o censo de 2022 revelou detalhes interessantes.
Resistência –
se em 2010 eram 64% católicos e 31% evangélicos indicando forte inversão (- 1% católicos
e + 2% gospels por ano), o censo 2022 em respectivos 63% e 32% indica
diminuição da velocidade de inversão, com tendência a estabilizar.
Talvez seja
o carisma popular do reformista Papa Francisco, por ser mais interativo com os fiéis
e ser sul-americano, facilitando a afinidade. E o catolicismo não está sozinho nessa resistência, o que não é problema para as lideranças gospels.
Nesse contexto de mescla político-religiosa da extrema-direita, o foco se volta inteiramente para eliminar totalmente as práticas de matriz africana e ateus. E, para isso, adotam um viés mais agressivo do que antes.
Ataques: só no RJ, 91% dos terreiros foram depredados por
fanáticos, bandidos² ou não. Seguem BA, AL e DF. Ataques a fiéis são mais
institucionais do que pessoais, como alunos de fé afro-brasileira impedidos
de entrar nas escolas, por exemplo. Ainda assim, o povo de fé afro-brasileira resiste. E os sem religião também.
O Censo 2022 revelou mais de 1% dos brasileiros declarados fiéis de matriz africana, um salto imenso em relação a apenas 0,3% em 2010. Os sem religião também avançam, superando 20% entre os mais jovens., de acordo com pesquisa do DataFollha, que também revela menos católicos e gospels.
Essa é uma demonstração de que a religiosidade no país não é estática. O mapa muda constantemente. Se o catolicismo luta agora para não perder espaço para a pressão gospel, as fés afro são a cara da resistência ao fascismo, ao racismo religioso e à intolerância prosélita, na busca da harmonia dentro da diversidade.
Nota da autoria
¹ sem intenção depreciativa, o termo agrupa
todas as fés não cristãs, apenas para generalização.
² traficantes, milicianos ou PMs desonestos que,
fiéis ou em acordo com pastores intolerantes, expulsam praticantes de fé afro-brasileira
e depredam templos.
Para saber mais
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O censo IBGE-2022 levantou um dado importante: o
número de sedes religiosas é maior do que a soma das de educação e de saúde no
país. São 597.700 templos contra 264.400 de ensino e 247.500 de saúde. A cada
100 mil pessoas são 286 templos na média nacional, em distribuição desigual.
A região Norte tem 79.650 templos, e média de 459/100
mil pessoas. A menos concentrada é o Sul, com uma média de 226/100 mil. Em
seguida vem a Nordeste, liderada por Sergipe e Bahia. No geral, 95% dos templos
são igrejas, maioria gospel. Mas, o que levou a esse paradoxo no Brasil atual?
Vários motivos – para os leigos, o suposto fervor religioso já
explica. Ok, um povo recorre à fé, em especial quando há constante ou recorrente
descaso dos poderes públicos. Mas só isso não explica o disparate que destaca o
país no rumo inverso ao do resto do Ocidente.
Pesam fatores como: facilidade para abrir templos,
incentivo político e investimento tímido na ampliação de serviços públicos
essenciais.
Facilidade de abertura – o candidato católico ou
gospel à vida religiosa precisa se qualificar em Teologia, que pode ser
superior (em universidades e seminários) ou intermediária (como um curso
técnico). Candidatos a padre sem ensino médio o fazem nos seminários antes de
cursar, e alguns se especializam em universidades.
Milenar e protagonista na nossa história, a ICAR
possui seus templos, conventos, mosteiros e universidades. O pastor faz um
simples registro em cartório para abrir a sua igreja, geralmente iniciada em
espaço alugado ou próprio. Tal como capelas católicas, a construção de seus
templos também tem ajuda popular.
Incentivo político – a CF-1988 consolidou a
liberdade plena de culto, bem como o tombamento de espaços religiosos
históricos. Mas por laicidade, a CF veta o patrocínio público de eventos
religiosos de massa, e os líderes religiosos de indicar candidatos a cargos
eletivos durante os cultos e festividades.
Mas os políticos e religiosos são os primeiros a
transgredir as leis. A começar pelos eventos de fé em locais como instituições
públicas em geral, até o ilegal patrocínio a eventos gospels de massa – o que
potencializa, se somado às vultosas emendas ao Congresso, um velho problema.
Mau investimento – em parte, a complexidade
geográfica e sócio-histórica do país explica a precariedade de recursos
materiais e humanos em saúde e educação. Mas há outros problemas, como pressões
política sobre o destino da grana pública e a conduta dos gestores estaduais e
municipais com a mesma. Mas não é só.
No lugar das antigas sedes de saúde e/ou escolas
surgem estacionamentos, shoppings ou igrejas. A benesse pública a igrejas evangélicas
teve auge na era 2019-22, quando a dupla Bolsonaro-Guedes tentou abster o
Estado de atenção essencial, além de permitir a imposição de bíblias e orações no
ensino básico.
A proposta foi federalizar as PMs estaduais para legalizar
as milícias regionais, e atribuir assistência social, educação e o SUS às
igrejas evangélicas. O ex-prefeito Crivella tentou fazer no Rio, repassando
recursos bilionários à sua IURD. Inconstitucional, a PL foi rejeitada no
Congresso.
Priorizar os interesses de líderes religiosos rebaixa
as necessidades populares essenciais e entrega o povo na armadilha mercantil-ideológica
sob a profissão de fé. Isso aguça o ódio intolerante insuflado pela elite gospel
sendo uma ameaça à Carta democrática, que exige ao Estado acolher todo o mosaico
social com qualidade.
Para saber mais
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