sábado, 5 de outubro de 2024

ANÁLISE: A ideologia do fogo

 

            A despeito de ser referência de maior biodiversidade do planeta abrigando a maior floresta equatorial, o Brasil tem experimentado constância variável no desmatamento. Veríamos novas altas a partir da breve era Temer, em 2016.
            O auge foi na era 2019-22, com incentivo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que tornou o Brasil uma ameaça planetária. Lula 3 reduziu forte o desmate nos biomas florestais, mas neste 2024 vemos um inédito recorde incendiário pelo Brasil.

           Início – o país já passava por um forte calor e baixos níveis de umidade no ar. As mídias se atentavam na meteorologia, o escândalo envolvendo Silvio Almeida e a voadora de Xandão na rede social X no Brasil.
            Nesse contexto, o histriônico pastor bolsonarista Silas Malafaia usou o alarmista anúncio “o Brasil vai pegar fogo!”, em referência à passagem de Jair Bolsonaro para esquentar as campanhas bolsonaristas em São Paulo.
            Só que o sentido metafórico se tornou literal: os primeiros grandes incêndios foram noticiados quando Bolsonaro foi a SP com o governador Tarcísio, parlamentares aliados e Malafaia a tiracolo. Uma referência importante.

            Da seca ao crime – antes dos Bolsonaro em São Paulo, as primeiras notícias eram de focos dispersos e menores, ligados ao calorão seco do centro-sudeste ao norte do país. E então Bolsonaro entrou no estado e tudo mudou.
            Foi quando surgiram as primeiras notícias dos fogaréus imensos, no interior paulista. Para o país foi um pulo. Fotos da Nasa internacionalizaram as notícias, com fogo já na Colômbia, Peru, Equador, Peru, Bolívia (Amazônia) e Paraguai (Pantanal).
            Tamanha extensão afirmou o caráter criminoso. Após denúncias, alguns bois de piranha foram presos. Um deles acusou o PCC de mando, o que o governador Tarcísio negou – e olhos se viraram para o bolsonarismo.

            Historicidade – aprendemos na escola que a coivara (pequena queimada controlada de baixo impacto) já era praticada por indígenas e aprendida por outras populações¹ e pequenos posseiros para criar roças.
            Os incêndios extensos vieram com os latifúndios e a indústria, demandando grandes extensões de terras e impactando fundo o ambiente. E o bolsonarismo politizou muito mal a coivara para justificar o Dia do Fogo².
            O ex-presidente culpou os indígenas pelos incêndios que “impedem as operações do IBAMA”, mentira que só cola em seu bárbaro fã-clube. O eleitoral 2022 foi o ano bolsonarista mais incendiário.
            No seco 2023 de El Niño, os incêndios foram reduzidos. Neste 2024 seco, mas neutro, a nova “efeméride” do fogo surgiu clareando a suspeita geral contra um setor gigante no país. A mídia tem dito que as áreas mais atingidas foram as agrícolas. Mas as imagens desmentem revelando as áreas naturais.

            O agro à frente – o agronegócio atual emergiu na ditadura militar, com a qual se alinhou para inibir seus trabalhadores. Antes raríssimas, as multas e apreensões ferraram no petismo, o que pode ter alimentado a queda de Dilma Rousseff.
            Tendo 70% do Congresso, em parte fundida a bíblicos e armamentistas, a bancada do boi é a maior pressão sobre Lula 3, eleito por sobrevivência. Daí as propostas deste governo terem aprove bem difícil.
            Essa maioria modifica tanto os textos que estes perdem sua intenção original inibindo os avanços necessários. Seu lobby político-econômico a torna imune a tributos e punições. Menos de 5% das multas é arrecadada pelo Tesouro.
            Pode ter ajudado os milicos nas 8350 mortes indígenas. Na democracia é o maior protagonista de homicídios sobre os líderes de povos tradicionais e de ambientalistas. Pode ter financiado a intentona de 8/1 e o fogaréu atual.
            Não, o agro definitivamente não é pop. E muito pouco põe alimentos na sua mesa.

            Consequências – durante seu úmido mandato, o então presidente Bolsonaro declarou que “na Amazônia não pega fogo porque ela é úmida”. Claro que essa afirmação teve oportunas omissões.
            Naturalmente, Amazônia e Mata Atlântica juntas criam bolsões úmidos atmosféricos que se fundem e se estendem a outras regiões, como os rios voadores para o centro-sudeste-sul do Brasil. Mas estão sujeitas a ciclos sazonais e climáticos.
            Influenciados por El Niño (aquece águas do Pacífico central e seca o norte-nordeste) e La Niña (o contrário), os ciclos são meio regulares e variam de duração e força – e se desequilibram com a ação humana, gerando extremos perigosos.
            Desequilíbrio- desde 2023, a Amazônia vive a sua pior seca, sem os rios voadores para molhar o Centro-Sul chamuscado pelas chamas. A onda quente e seca possibilita incêndios naturais mediante combustão espontânea de vegetação seca. Sim, possibilita: só incêndios criminosos são consequências obrigatórias.
            Incêndios naturais tendem a apagar com as primeiras chuvas da época úmida. Mais extensos, os criminosos persistem e criam feedback com a seca ferrando a integridade ambiental natural.
            Calor extremoos principais gases estufa naturais são gás carbônico e metano. Os emissores respectivos são vulcões, combustão e atividades humanas, e decomposição de matéria orgânica e produção bacteriana.
            Levamos séculos para saber que tais gases aumentam o calor médio. Mas há compostos que, além disso, reconfiguram a química atmosférica – o que pode pode aumentar o perigo térmico.
            Mais radiação solar- o Sol emite raios UV entre 10 e 16 h, dando a sensação de queimadura mesmo em dias amenos. Mas a Terra tem um escudo natural na estratosfera: a camada de ozônio .
            A 25-30 km acima da superfície terrestre, o ozônio breca a maior parte da radiação UV. Se só um pouco já nos incomoda quando nos expomos, imaginem o total: nem estaríamos aqui. Mas, até essa importante camada é nossa vítima.
            Por décadas houve um tipo de clorofluorcarbono (CFC) na refrigeração e sprays de pressão, proibido após a ciência provar sua relação química com o grande buraco na camada de ozônio.
            Na real, o buraco é a zona menos espessa, medida em Dobson Units (DUs). As zonas normais ultrapassam 400 DUs (4mm). O grande buraco do hemisfério Sul mede menos de 200 DUs.
            Mas outros produtos têm CFCs na composição, como alguns agroquímicos, o que os torna proibidos em alguns países, inclusive aqui. Mas aqui aa lei não funciona a contento.
            Crise hídrica e alimentaros principais países produtores (Brasil é um deles) exportam grandes volumes de alimentos. Mas com a modificação climática global, a produtividade está seriamente ameaçada.
            A crise hídrica devida ao calor seco longo é o maior fator. E a seca quente diminui o volume d’água ameaçando muitas atividades (energia, agricultura, todo tipo de indústria, data centers³, etc.).
            Saúde- a seca atípica desse ano revelou níveis de umidade tão baixos que em alguns pontos foram menos do que a do Saara (12%). Isso causou uma verdadeira epidemia de doenças respiratórias.
            Além do ar muito seco, a devastação ambiental pode liberar vírus perigosos, como o hantavírus. Natural das Américas, ele tem variante capaz de causar a febre hemorrágica americana, parecida com a do africano Ebola.
            Afetada pelos extremos climáticos, a Europa acendeu alerta na OMS ao identificar casos infectados com o vírus Marburg. O temor geral se justifica: este vírus é um dos mais mortais que se conhece.
            Africano de origem, o Marburg sempre foi um vírus silvestre. Mas a devastação colonial do passado o liberou para infectar colonizadores e nativos, e depois foi levado à Europa, sendo identificado pela primeira vez na Alemanha, daí o seu nome.
            O recuo das geleiras também poderá liberar vírus desconhecidos que ficaram inertes por milhares de anos. Seu potencial patogênico sobre a espécie humana é ainda desconhecido.
            Inabitabilidade- não havendo contenção das emissões de gases estufa e da degradação, algumas regiões hoje prósperas ou paradisíacas poderão se tornar inabitáveis em um tempo inesperadamente curto.
            Um estudo revelou que parte do Brasil poderá inabitável ou improdutiva em algumas décadas, se continuado o ritmo destrutivo, devido a calores extremos capazes de matar.

            Fria análise final – a grande mídia tem noticiado o agronegócio como maior vítima dos crimes ambientais. Meia verdade: as vítimas mais imediatas são os que põem alimentos em 75% das mesas brasileiras: os agricultores familiares.
            O agronegócio pode experimentar perda em parte de suas lavouras, mas é uma elite com isenções fiscais e tem seguros contra incêndios e outros fatores de prejuízos – ao contrário dos que de fato nos alimentam.
            Os jornalões pecam feio, no exagero às supostas perdas do agronegócio e omissão de prejuízo sofrido pelos pequenos produtores com a destruição ambiental. Mas isso reflete a ideologia do mercado financeiro que os controla.
            Golpe?- se o fogaréu no interior paulista com a ida de Bolsonaro rememora o desmonte da política ambiental em 2019-22, o fogo no parque de Brasília e o nas imediações do Palácio do Planalto evidenciam outra faceta: a de um segundo golpe.
            Golpe, sim, porque o governo Lula tem focado nesse tema – a despeito da contradição na defesa da indústria petrolífera – e por resistir a alguns desmandos da oposição.
            Parece teoria conspiratória, mas não é. Como citado, o governo Lula sofre forte pressão da bancada do boi – a mesma que esteve ao lado do ex-mandatário Bolsonaro em 2019-22 e cujo sindicato criou o Dia do Fogo.
            Os jornalões criticam Lula como pessoa e governo, e apoiam o agronegócio mesmo sutilmente. Que o diga a publicidade da Globo, que de tão criticada está hoje só no fechado Globo News, acessível apenas por assinatura.
            As mídias independentes fazem a sua parte revelando que os candidatos às prefeituras neste ano não apresentam política ambiental proposta. Já houve quem justificasse que “falar de meio ambiente não cola no povo”.
            Quem disse que falar de meio ambiente “não cola” pode estar com a razão. Mas é irrazoável omitir o tema da política. Pode-se trocar o termo, como “saúde na praça”, como disfarce – ou juntando com ações de saúde pública mesmo.
            Doenças derivadas de devastação ambiental/mudanças climáticas revelam a intimidade entre saúde e meio ambiente. Portanto, uma política ambiental integral é tão urgente quanto a emergência numa UPA hospitalar.
            A política ambiental integral agrega a criação e manutenção de áreas de preservação permanente, recuperação de áreas degradadas, agroecologia, gerenciamento adequado de lixo, criação de meios de mitigação de poluentes e educação ambiental.
            É uma necessidade difícil, dada a resistência – e a $edução – dos setores econômicos de grande impacto. Mas, se enfrentar isso já é complicado, por outro lado, a própria economia global minará por falta de recursos e inabitabilidade ao fim da devastação.
            Estamos no ponto de bifurcação da via de destino. Ou transformamos a visão política em meio ambiente e clima, ou vamos para o nosso próprio fim. Esqueça a colonização noutro planeta: não estaremos mais aqui para tanto.

Nota da autoria

¹ colonos portugueses, escravos, quilombolas, pequenos agricultores familiares, caiçaras (cultura mestiça do litoral).
² em 10/8/19 um grupo latifundiário promoveu surto incendiário na Amazônia, cuja fumaceira escureceu São Paulo em 12/8. O surto matou 1,5 bilhão de árvores.
³ centros que agregam maquinário gigantes de TICs que armazenam grandes volumes de informações e sugam milhões de litros d’água.

Para saber mais
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