sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Reflexão: 2021, um ano muito desafiador


        O final de 2021 nos chama para nossas introspecções. Tanto em nível subjetivo (voltado para nós mesmos) quanto no objetivo (voltado à compilação analítica da série de fatos do ano).
        Ainda que a autoanálise subjetiva exija total introspecção, vale apontar que cada um de nós compartilha do testemunho de fatos em comum que diretamente nos atingiram, ao ponto de sermos desafiados em nossas resistências e mesmo em nossas existências pela compressão crescente dos fatos que jamais imaginaríamos vivenciar.

Um ano de mortes e mentiras- Testemunhamos tantas famílias em incessantes lágrimas por perdas que julgamos evitáveis, até que a morte bateu em nossas portas, mesmo mesmo por outras causas que não a C19, maior protagonista do terror que nos tomou de assalto. 
        Entre as milhares de vítimas fatais da C19, muitos negacionistas. Sim, muito mais em nome de uma ideologia baseada na desinformação e na anticiência, muitos fecharam os olhos para a dor dos familiares que, em nome da autopreservação, evitaram a barca, mas pagaram ingresso. Esse se tornou o momento em que a eles nos unimos quando a morte também bateu em nossas portas, mesmo por outras causas.
        Essa união ocorreu até nas notícias das muitas mortes de famosos, como o recente caso do cantor sertanejo Maurílio, por mal súbito e choque séptico aos 28 anos, segundo as reportagens, e a anterior, de Marília Mendonça, por acidente aéreo. E casos anteriores, como Tarcísio Meira, de C19 mesmo após vacinação com reforço.
        Aliás, vimos como o caso Tarcísio Meira serviu de oportunismo aos propagadores de fake news. A própria morte de Maurílio terminou sendo alvo de mentira propagada por gente da família Bolsonaro, a de que o mal súbito teria sido devido à vacinação contra a C19 e o choque séptico, por contaminação na vacina.
        Um ano de choque- De diversas formas, esse ano nos proporcionou choques emocionais e, para muitos, de realidade. Em termos de falsidade, vimos o continuar da insanidade, com fugas de nomes ligados ao Gabinete do Ódio em diáspora pelos EUA, paga com grana pública, para não serem presos a mando do STF.
        Foi um choque percebermos como o governo nada fez para conter o esparrame da C19. Muito pelo contrário, ele fez tudo para piorar. Foi quando aprendemos que a C19 é uma sindemia, doença que tem sua gravidade potencial turbinada por vulnerabilidades como idade, comorbidade, classe social, vida habitacional-trabalho-nutricional, etc.
        Mais do que a C19 em si, nos chocou a má conduta social, apesar dos informes profiláticos como uso de máscara e álcool gel, higiene e distanciamento social: mais por terem seguido o guru Bolsonaro com suas falsidades descaradas do que por "rebeldia natural". 
        As falsidades do Gabinete do Ódio impuseram o terror, tanto na saúde pública, maximizando o garrote nos recursos públicos e a mortandade em março e abril, com quase 200 mil mortes, quanto na política, para que o presidente mantivesse a popularidade em alta, mesmo com sua conduta antipovo. 
        Como se não bastasse, só na saúde pública, o garrote teve até outros meios sujos, que seriam a posteriori revelados na CPI da C19, tornada então a principal fonte da queda livre da popularidade do presidente da República. 
        Ainda vimos o governo agir impune com mentiras e audácias, com o Centrão e PGR coniventes e poucas vozes contrárias, aprofundando a crise ética, social, política e institucional, maximizada na indiferença à vacinação de crianças de 5-11 anos e às vítimas climáticas no interior da Bahia.
        Vale ressaltar que a mentira em torno do cantor Maurílio foi usada como mote para desmotivar o público em relação à vacinação infantil contra a C19. 
        Mas, vimos também que tudo isso possibilitou oportunidades fortuitas e positivas.
        
Em meio ao caos, ventos fortuitos- 2021 foi o ano em que, mais do que nunca, as mentiras perderam muito do antigo espaço, sofrendo mais cortes nas redes sociais: muitos usuários tiveram seus perfis banidos, alguns deles para sempre. Graças às ferramentas de checagem, que podem advertir os usuários no momento da publicação.
        Mas vimos que o governo não se cansa de criá-las e requentá-las nas suas páginas. Algumas delas foram discursadas em eventos internacionais como G-20, assembleia ONU e encontros do clima, nos quais o presidente da República nos deu vergonha nível hard diante de autoridades que sabem mais do que nós sobre o nosso país.
        A classe temática mais falsamente explorada nesses eventos é a ambiental. Em cadeia de TV e mídias on-line, vimos Bolsonaro discursar factoides de imediato desprezados pelos presentes que saíam dos auditórios e logo em seguida desmentidos por cientistas renomados, analistas ambientais e até pela mídia.
        Sabemos que neste ano batemos recordes de desmate por vários meios, não só na Amazônia; que opera uma frente política, empresarial e religiosa contra os povos originários e tradicionais; e que tudo isso gerou um estudo a apontar o Brasil como o principal vilão socioambiental e climático do planeta, o que tem gerado desafetos diplomáticos e preocupações em escala global.
        O que valeria denúncia enviada ao Tribunal Penal Internacional, tendo em anexo pesquisa recente, baseada em fontes institucionais globalmente reconhecidas, sobre as consequências da ação humana destrutiva sobre o contexto socioambiental global. Foi aceita pelo TPI por configurar crime contra a humanidade.
        Denúncia essa que corrobora as anteriores já entregues pela mesma categoria de alegação. E, em paralelo, os ventos fortuitos também ocorrem no Brasil em meio ao caos.
        Uma CPI poderosa- Foi a partir do fim de abril que veríamos iniciar uma queda da hegemonia da mentira induzida pelo Gabinete do Ódio governamental nos seus apoiadores. Foi aberta a CPI da C19. Inicialmente desacreditada, essa CPI mostrou a que veio: desmascarou o governo ao revelar os fatos macabros.
        Foi nela que vimos a indiferença e a psicopatia dos principais títeres do governo, Bolsonaro e Guedes, na gestão da C19 no país. Dezenas de recusas a ofertas da Pfizer e outras farmacêuticas de vacinas que poderiam transformar o Brasil na maior vitrine de vacinação do planeta, através do SUS.
        Vimos a CPI revelar a recusa do governo às ofertas de vacinas, as negociatas ilegais com vacinas e empresas inexistentes, testes nazistas em hospitais privados e o interesse de Guedes no alto lucro com o falacioso tratamento precoce, e convidar cientistas renomados para destruir fake news e mostrar o real perigo da anticiência para a saúde e a vida.
        Foi com essas revelações minuciosas, operadas em horas de interrogatórios, e nas explicações dos cientistas, que a CPI veio mudar em velocidade inaudita a visão e a conduta de milhares que correram atrás da vacinação em tempo oportuno, e ter um pouco de fé no tão depreciado e desinvestido SUS, que a partir de então passou a agregar mais contrários à sua privatização.
        E não ficou só nisso. O relatório final da CPI da C19 ainda foi base para uma nova petição que foi enviada ao TPI, que a aceitou como denúncia de crime contra a humanidade - categoria de crime que o relator da CPI, senador Renan Calheiros, quis acusar Bolsonaro, mas foi recusado em plenária.  
        STF- Vimos o STF dar alguns escorregões, mas também mostrar que não está morto. Os ataques de Bolsonaro em 7 de setembro renderam pedido formal de desculpas do mesmo, após fatos de veracidade duvidosa, exceto a transcrição da desculpa por Temer para socorrer o mandatário. 
        E o 7 de setembro foi apenas um dos fatos em que o STF fez revelar os covardes. Como Allan dos Santos, que fugiu para os EUA com tudo pago com grana pública, para não ser preso após decretada a sua prisão pela Corte. Por causa do STF, até Olavo de Carvalho, agora ex-guru do governo, saiu de um hospital onde estava para fugir à francesa, que nós soubemos.
        Nos decepcionamos com a absolvição da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE pela alegada falta de materialidade para a condenação. Muitos antibolsonaristas torceram pela cassação da chapa, ainda que esta oportunizasse a posse de um determinado ficha-corrida, Arthur Lira, presidente do Centrão e da Câmara dos Deputados.
        Redução de apoio- Bolsonaro foi eleito mais pelos 42 milhões de abstenções, votos em branco e nulos, nessa ordem, do que pelos 36% de votos válidos, correspondentes a 57 milhões. O conjunto derrotou o petista Fernando Haddad, que teve aproximadamente 45 milhões de votos válidos.
        Ainda que a compreensão popular fosse superficial ou insuficiente, percebemos que a eleição de 2018 foi definitivamente atípica. Geralmente, num 2º turno, a tendência é a de o eleito tivesse mais de 45% dos votos válidos, como tem sido nos pleitos anteriores.
        Vimos que o atipicismo se explica porque, mesmo avisados, muitos de nossos conhecidos votaram nele. Por direito, pois assim é a democracia, mas por ter configurado voto de risco. Pois Bolsonaro defende abertamente as milícias e ofende mulheres, não brancos, LGBTQIA+ e classes populares. Mas, ouvimos: "é brincadeira dele".
        Mas, mesmo paulatinamente, a sucessão de fatos, muitos destes já expostos acima, além de outros não colocados para não delongar demais este texto, foi mostrando quem é Bolsonaro e seu séquito. E, por conta disso, várias pesquisas de intenção de votos revelaram a inevitável perda de apoio, piorada após a CPI e os últimos acontecimentos.
        Retorno de Lula- Preso em 2018 após julgamentos dos casos tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, o ex-presidente Lula passou cerca de 580 dias na cela da sede da PF de Curitiba. Sua prisão ocorreu no maximizar do clima antipetista que se construiu aos poucos no país desde 2013 e culminou na eleição da extrema-direita.
        Após os 580 dias, vimos Lula ser solto após lide de seus advogados e a valiosa vaza-jato do The Intercept então comandado por Glenn Greenwald - tão valiosa que ficou fácil revelar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro na condução dos julgamentos que prenderam o petista. Parcialidade que terminou reconhecida pelo STF. 
        A reconquista dos direitos políticos e da liberdade não tornam Lula um santo, mas juridicamente inocente nos casos em que foi condenado, dada a conduta reiteradamente irregular de Moro, Dallagnol e outros. E o que viria a seguir, sucedendo-se às anulações deferidas pelo STF, é história que agora já sabemos, e hoje ele reconquista liderança absoluta nas intenções de voto.
        
        Mas, se tais ventos fortuitos mostram que nem tudo está perdido, nada nos tira a compreensão de que, na prática, 2021 foi um ano extremamente difícil. Não nos foi permitido relaxar um minuto. 2021 já dá seus últimos suspiros, mas deixa, para nós e ao futuro líder, desafios importantes para vencermos em 2022.
        Sim, 2022 será um ano de muitos desafios, isso com certeza, pois ainda veremos Bolsonaro e sua trupe à frente, completando ou não seu mandato; muitos sustos virão. Mas os ventos fortuitos que têm soprado podem nos dar excelentes oportunidades de mudança, por iniciativa nossa mesmo.
        Aqui fecho este artigo. Desejo uma feliz vitória nas lutas para tornar 2022 melhor!

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Imagens: Google (montagem pela autoria deste artigo). 

Notas da autoria

Para saber mais
- https://www.cnnbrasil.com.br/politica/o-brasil-nao-e-nem-nunca-sera-um-vilao-ambiental-afirma-mourao/
- https://www.brasildefato.com.br/2021/08/09/brasil-pode-ser-grande-vilao-da-diplomacia-do-clima-afirma-pesquisador-da-usp
- https://www.brasildefato.com.br/2021/11/11/relatorio-da-cpi-da-covid-embasa-nova-denuncia-contra-bolsonaro-no-tribunal-penal-internacional
- https://www.brasildefato.com.br/2021/10/12/bolsonaro-e-denunciado-pela-6-vez-no-tribunal-penal-internacional-relembre-todas-as-acusacoes

 

sábado, 25 de dezembro de 2021

Reflexão: no Natal, o capital

        Todos os finais de ano, bilhões de pessoas se enchem de expectativas. Crianças então, nem se fala. Tudo por conta da contagem regressiva para o Natal, o grande dia em que as famílias se reúnem para uma ceia ou almoço com direito a chester ou um peru assado e muitos presentes. 
        É normal que as crianças tenham essa expectativa, pois a infância é cheia de fantasia, alimentada pelos contos de Natal recitados pelos pais ou avós, e filmes da Sessão da Tarde repletos de personagens natalinos capitaneados pelo Papai Noel. 
        Tudo isso para que, na noite de Natal, elas notem os presentes lendariamente deixados pelo papai Noel bem embaixo de um pinheiro ricamente decorado de enfeites coloridos, às vezes acompanhados do tradicional presépio. Sem saber quem é, de fato, esse papei Noel.
        Entre os mais religiosos, a proximidade do Natal os leva às igrejas para evocar, em suas orações, o suposto nascimento, em 25/12, do mais simbólico personagem: Jesus de Nazaré. Para que, após tantas rezas em poses genuflexas, sequer se atentarem aos famintos que dormem ao relento ali perto.
        Mas, afinal, como surgiu o Natal? Quem o criou? Como foi associado ao cristianismo? E, se o cristianismo é uma religião de coletividade, por que prospera incólume nos países mais capitalistas? Essas e outras perguntas serão respondidas, com direito a uma reflexão final.

Natal: origem multicultural, festa ocidental

        Se para as crianças evoca toda aquela fantasia que conhecemos tão bem, retratadas nas animações de computação gráfica cinematográfica, e para os os profundamente religiosos relembra o nascimento de Jesus Cristo, para os historiadores o Natal tem uma origem que se perde no tempo, longe das duas evocações descritas.
        Sim, muito longe: Achados arqueológicos apontam para uma festa ocorrida há pelo menos 7 mil anos a. C., evidenciando a celebração do solstício de inverno, a madrugada mais longa, em que o Sol fica mais tempo no céu, até o auge do verão: a virada das trevas para a luz, o "renascer" do Sol. A razão da festa era a certeza de boa colheita e fartura de alimento para o ano seguinte.
        A festa era multicultural. Na China festejavam o Ying-Yang, harmonia da natureza. Os pré-celtas rodeavam Stonehenge em festa solar. Mesopotâmios dançavam em 12 dias. Egípcios relembravam a passagem de Osíris ao mundo dos mortos. Entre greco-romanos clássicos, era festa a Dionísio/ Baco, deus do vinho e da vida mansa. Entre os persas, ao deus Mitra, da luz e da sabedoria.
        O aspecto em comum entre essas festividades do solstício de inverno é o renascimento da era de abundância (alimentar e de outros recursos), oferecida pela natureza.
        Mitra- a festa a esse deus chegou a Roma através do imperador macedônio Alexandre, o Grande, que havia tomado o Oriente Médio no século 4 a.C.. Tudo foi paulatino, através dos soldados romanos, que então levariam a festa para Roma, onde foi assimilada e tornada então uma das mais importantes, por simbolizar benevolência, solidariedade e sabedoria.
        A festa a Mitra era regada a vinho e alimentos, então repassados a outras pessoas como simbólicos presentes solidários. Enfim, um belo dia, ou noite, nasceria no Oriente Médio um personagem chamado Yeshua (Jesus, em latim), a quem se atribui a filosofia cujas qualidades e pregações eram afins a Mitra: o cristianismo.
        Na era cristã- no século 2 d.C., a filosofia cristã chegou à Europa, por alguns soldados romanos do Império que dominou a região dos atuais Israel, Palestina, Síria, Jordânia, Egito e adjacências. Grupos cristãos primordiais a ignoravam, mas seus descendentes a assimilaram e ligaram Mitra a Jesus, por seu turno a luz divina encarnada. 
        É o sincretismo Mitra-Jesus. Na cultura cristã nascente, Jesus é o Deus sol encarnado que veio salvar a humanidade de seus pecados - daí o termo Cristo (do grego Chrystis, salvador). Essa construção semidivina de Jesus que se espalharia pela Europa, permanecendo até hoje.
        Cristianização da festa- a festa natalina de solstício de inverno para comemorar o nascimento de Jesus Cristo assimilou o culto a Mitra como troca de presentes e refeições suntuosas. Embora ainda não saibamos como foram as festas natalinas cristãs em seu todo, vale salientar dois pontos: a dominância da pobreza e uma festa nórdica. 
        A maioria dos europeus medievais era pobre, ocupando ofícios como curtidores de couro, tecelões, carpinteiros, marceneiros, construtores, metalúrgicos, artesãos, agricultores. Talvez suas festas fossem escassas, ou permitida a abundância pelos senhores e pela Igreja no dia.
        Enquanto isso, missionários cristãos viram, na Escandinávia, nórdicos festejando o Yule, solstício de inverno regado a carne de presunto e bebidas, e casas e pinheiros com enfeites coloridos. Crianças atribuíam a seres sobrenaturais1 os ganhos de presentes. 
        Os missionários levaram os traços Yule para outras regiões do Sacro Império Romano-Germânico então dominante na Europa, ocasionando a evolução da festividade natalina. Mas, é anterior à Idade Média a origem de um personagem que se tornou símbolo essencial do Natal moderno.
        Papai Noel- Myra, Ásia Menor, século 4 d.C. Três irmãs pensavam em se prostituir para driblar a fome na miséria, após o fracasso do pai em conseguir dinheiro para ter comida. Foi quando um homem misterioso, em noites invernais, jogou sucessivos saquinhos de ouro na casa dessa família, e sumiu.
        As moças então usaram o ouro como dotes para casar - um costume comum. Com isso se casaram e viveram felizes, escapando de uma vida de risco. O sujeito misterioso foi apelidado de Papai Noel, que na verdade, era o bispo Nicolau de Myra.
        Embora não saibamos nada sobre a vida pregressa de Nicolau, acredita-se que ele era rico e passou a vida dando presentes e comida aos pobres. Essas histórias da generosidade do bispo viraram um mito tão forte que, no século 5 d.C., ele foi canonizado pela Igreja Católica tornando-se São Nicolau.
        Tornou-se padroeiro das crianças, dos mercadores e marinheiros, que levaram sua história para o Velho Mundo. Tornou-se o principal santo na Grécia e na Rússia, e foi fundido às tradições de Natal no resto da Europa, tornando-se o Papai Noel. Foi assim que as colônias do Novo Mundo viriam conhecer o Natal, do Norte ao Sul. Ficou uma coisa só. E veio o problema.

Com o Natal, vem o capitalismo

        Séculos depois dos nórdicos, o Novo Mundo ocidental, formado pelas atuais Américas, voltou a ser colonizado, desta vez por portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, que trouxeram, além das suas respectivas línguas e religiões dominantes, as festas natalinas. E, no domínio do fracasso ao tentar dominar os nativos, trouxeram os africanos.
        Diferentemente dos ameríndios, os africanos cederam com certa facilidade ao domínio europeu. Talvez por terem vivenciado, por tantos séculos, histórias de escravização de seus antepassados por outros povos, e assim por diante. 
        Os africanos foram mais do que escravos, eles exportaram seus fortes traços culturais nas novas terras. Tanto é que até hoje há vertentes religiosas em praticamente todos os países das Américas. Um notável exemplo de resistência cultural-religiosa diante da opressão do proselitismo cristão.
        No Brasil, o proselitismo foi relativo, no sincretismo que hoje tato conhecemos. Os escravos aprenderam sobre as festas natalinas e respondiam pelos enfeites das cidades e das casas dos senhores. Surge a tradição de enfeitar árvores nativas e as casas antes do Natal para desmanchar tudo no primeiro domingo de janeiro, permanecendo até hoje.
        O capitalismo clássico se materializa sólido na indústria europeia e no forte escravismo do Brasil e EUA, por exemplo. Os comércios nas cidades se aglomeram em centros de compras, hoje enfeitados de luzes piscantes multicores e personagens natalinas nas galerias lotadas de famílias e casais em busca de presentes. É o contorno moderno do Natal se desenhando.

Reflexões finais...
        Das antigas homenagens naturistas do solstício de inverno aos centros de compras de hoje, o Natal seguiu as transformações das sociedades. O colorido dos enfeites e músicas natalinas dá o ar da graça dos velhos tempos, mas hoje serve para outras finalidades. 
        O Natal virou moeda de troca, e no Ocidente cristão, Jesus e papai Noel viraram iscas para que a roda do grande capital continue girando, mesmo um pouco mais lenta porque estamos cada vez mais empobrecidos. E, cientes disso ou não, estamos para comprar um presente, lembrancinha que seja, para alguém querido.
        A roda do capital segue nos sorrisos de vendedores fantasiados de papei Noel e dos consumidores satisfeitos nas galerias dos grandes centros de compras, indiferentes aos mais pobres, antes visados nas homenagens aos deuses da natureza, e agora relegados à escuridão de esquecimento e miséria.
        O sentido solidário e bondoso inicial ensinado pelo paganismo e aprendido no cristianismo antigo se perdeu. A moderna concepção cristã de Natal tem todos os ares impostos pelo capital. Sem este, a tal "magia de Natal", na cultura capitalista, "perde o brilho, a cor, o sentido". Sim, entramos no Natal, e vemos o capital.
        Afinal, feliz Natal! Ops... ou será feliz capital?!

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Imagem: Google

Notas da autoria
1. Seriam os elfos nórdicos, sincretizados aos gnomos ou fadas celtas.

Para saber mais
- https://super.abril.com.br/historia/a-verdadeira-historia-do-natal/




 


sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Análise: por trás do ataque ao sistema do MS

        Quando anunciada à grande mídia, a variante corona Ômicron foi divulgada como oriunda da África do Sul, devido à sua descoberta por cientistas sul-africanos, os primeiros grandes anunciadores. E assim, a Grã-Bretanha, seguida pela União Europeia e países da Ásia e das Américas, fecharam fronteiras para a África do Sul e vizinhanças.
        Foram dois motivos: a descoberta da capacidade notável dessa variante de gerar muitos mutantes em tempo recorde, e a descoberta de holandeses infectados com essa variante, em diagnóstico anterior à divulgação da origem africana da mesma. Daí a razão do temor, que levou a novos lockdowns em alguns países da UE.
        Mas nem todos os países trancaram em definitivo as fronteiras para os países do sul africano, embora exigissem comprovante de vacinação aos viajantes oriundos da África e Holanda. Apenas um manteve, a princípio, total abertura sem exigências: o Brasil, na voz do presidente Bolsonaro, claro.
        Mas em seguida, o presidente Barros, da Anvisa, prontificou a exigência de passaporte de vacinação dos viajantes vindos do exterior, como medida protetiva, o que causou um estremecimento nas bases governamentais.

Primeiro ato: o conflito de falas

        O presidente Bolsonaro prontamente se manifestou contra Barros, contrariando a norma da Anvisa. Para ele, nada poderia ir contra a sua filosofia de primeiro a economia, deixe a vida pra depois, e num pronunciamento público, desprezou a importância dada pela OMS e nações à nova variante.
        Logo depois desse pronunciamento, o ministro da saúde Marcelo Queiroga, que acompanhava o presidente da República, foi questionado sobre a possibilidade de resolver o conflito de posições entre o governo e a Anvisa, e a resposta foi uma máxima da filosofia acima citada: "melhor perder a vida do que a liberdade".
        A fala repercutiu por toda a imprensa e, claro, nas redes sociais, causando nova onda de debates acalorados em que as mais diversas interpretações ali surgiram, alguns tentando minimizar o impacto com explicações mirabolantes, e outros em pronta condenação.
        Enquanto a geral se atentava a esse conflito de falas, foi incluído um aplicativo, o ConectSUS, no qual, além de outras informações, os usuários do SUS podem acessar, entre outras informações, a do registro eletrônico do comprovante de vacinação para obter permissão para viagem, eventos coletivos, etc. 
       Até que, de repente, nessa sexta-feira dia 10, quem tem o aplicativo instalado em seu celular viu que, ao acessá-lo, não conseguiu.

Segundo ato: o ataque ao ConecteSUS

         Os cidadãos com o ConecteSUS relataram que, após logar, apareceu uma tela escura com uma mensagem: "os dados internos do sistema foram copiados e excluídos. 50 TB de dados está em nossas mãos. Nos contate caso queira o retorno dos dados". Nessa reprodução fiel do texto, dá para se notar os erros primários de português, como se a autoria tivesse baixa instrução.
        Abaixo da mensagem, dois endereços: "https://t.me/minsaudebr", pelo Telegram, e um e-mail,  "saudegroup@ctemplar.com". O Telegram é a conhecida versão russa do WhatsApp (o famoso 'zap'), e o e-mail se refere a um provedor privado, muito possivelmente desconhecido da geral, confirmando ser um ataque. Mas, quem teria coragem de acessar um desses endereços?
        Não é o primeiroAtaques cibernéticos ocorrem desde o advento da internet. Desde que passaram a armazenar suas informações na internet, acatando princípios inerentes ao númus público, como publicidade, eficiência e impessoalidade, entre outros, os órgãos públicos logo se tornariam sujeitos a tais ataques.
        Além de sua extensão no sistema de dados do MS, este ataque tem significado singular. É mais um dos vários apontados na era Bolsonaro, evidenciando uma estranha historicidade, que se destaca em comparação a acontecidos em governos anteriores.
        Chama especial atenção o comportamento diferenciado do governo Bolsonaro quanto a este tema, bem como o contexto circunstancial em que os ataques virtuais acontecem. Se antes a população era informada dos fatos via pronunciamento oficial, com ajuda da mídia, hoje somente a mídia divulga o fato - e sempre coincidindo com momentos relevantes para a nação.
        Exemplo do TrateCovDurante a CPI da C19, o aplicativo TrateCov, desenvolvido por equipe capitaneada pela médica Mayra, conhecida como "capitã Cloroquina", foi relatado por Mayra e pelo ex-MS Pazuello sobre a indicação do tratamento precoce com fármacos já provados ineficazes e perigosos como sendo obra de hacker. 
        Investigação posterior aos depoimentos de Pazuello e Mayra mostrou que o TrateCov nunca foi realmente anunciado em publicidade oficial, e nunca foi alardeada pelas mídias suposta irregularidade sobre o tratamento precoce via aplicativo. Durante a CPI, após os depoimentos, o TrateCov foi banido sem diálogo prévio com a população.
        Agora, algo parecido acontece com o ConectSUS.
        
Terceiro e último ato: o que, ou quem, está por trás do ataque - reflexões

        O ataque aos sistemas do MS, em especial no ConectSUS, ocorreu logo após a Anvisa determinar, em resolução documentada e assinada pela presidência, a obrigatoriedade do passaporte de vacinação anti-C19 para viajantes vindos do exterior, especialmente da Europa e África, locais com um forte recrudescimento da C19.
        A determinação recebeu reação contrária do presidente da República, que põe o país na contramão dos que, inclusive, voltam a fechar fronteiras. E foi a partir daí que o ataque ocorreu surpreendendo milhões de cidadãos, que se assustaram perante o risco de terem seus dados perdidos.
        A alguns jornalistas de emissoras que o defendem, o ministro da saúde deu uma de assegurar que os dados dos cidadãos cadastrados não foram perdidos. O que gerou dupla reação: se para alguns foi um alívio, para uma possível maioria foi a senha para despertar desconfiança com o próprio governo.
        Uma desconfiança que faz pleno sentido, a começar pela estranha (e nova) coincidência de ocorrer um ataque desses que impede o acesso aos dados que comprovem ou possam comprovar a vacinação dos cidadãos em situações que repartições públicas ou viações exijam seu passaporte.
        E mais: como se pode afirmar tão categoricamente que os dados não tenham sido perdidos com o tal ataque? Não basta o tal aviso esquisito. O medo de acessar os endereços citados após o estranho aviso que aparece nos celulares é perfeitamente compreensível, mesmo que o do Telegram pareça bem sugestivo. 
        Mais recentemente, o presidente da República assumiu querer saber dos nomes dos servidores envolvidos na determinação da Anvisa, o que desencadeou em entidades da sociedade civil e também dos serviços públicos a solidariedade aos trabalhadores da autarquia.
        Com tanta coincidência a repercutir entre os internautas, a oposição do Parlamento olha tudo com forte suspeita. O negacionismo reiterado do governo seria uma razão óbvia, mas materialmente não prova, ao menos juridicamente, que o ataque tenha partido necessariamente do Planalto. Ainda que se denote como um bom indício para tanto.
        Para piorar a suspeita sobre o governo, recentemente o governo lançou a consulta pública sobre a vacinação anti-C19 de crianças de 5-11 anos, diante do aumento das infecções por Ômicron no país. Emitida após muita hesitação, a consulta exige atestado médico para vacinação e é muito criticada pelos cientistas pela exigência e o viés ideológico implícito.
        Mesmo que as fontes midiáticas nunca noticiem, o próprio comportamento da equipe de governo a entrega enquanto suspeita numero 1 do ataque ao ConectSUS e outras plataformas .gov, que seguem de acesso ruim ou impossível, evidenciando desatenção ou descaso. 
        Ainda que não tenhamos como provar, resta ao menos uma certeza, a de que, enquanto cidadãos não acessam seus dados de boa, o governo dança funk em churrasco numa lancha, contente com o caos que se aprofunda com a liberação de réveillons e carnavais por todo o país. Dona Morte agradece.
        
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Imagens: Google (montagem da autoria do artigo)

Notas da autoria

Para saber mais
- https://outraspalavras.net/outrasaude/no-ataque-hacker-a-saude-as-duas-marcas-do-governo-bolsonaro/
https://g1.globo.com/saude/noticia/2021/12/07/melhor-perder-a-vida-do-que-a-liberdade-diz-queiroga-veja-analise-de-frases-e-medidas-sobre-viajantes.ghtml
- https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pf-aponta-que-ataque-hacker-atingiu-ministerios-e-mais-de-20-de-orgaos-do-governo/
- https://www.poder360.com.br/congresso/oposicao-considera-suspeito-o-ataque-hacker-ao-ministerio-da-saude/
- https://www.diariodocentrodomundo.com.br/governo-bolsonaro-dados-hacker/
- https://www.tecmundo.com.br/seguranca/224452-anonymous-declara-guerra-bolsonaro-hackeia-fib-bank.htm
- https://revistaoeste.com/politica/grupo-hacker-invade-outros-sites-do-governo-federal-e-xinga-bolsonaro/
- https://canaltech.com.br/seguranca/stj-e-alvo-de-ataque-cibernetico-confira-tudo-o-que-sabemos-ate-agora-174162/


sábado, 11 de dezembro de 2021

Análise: a cota por conveniência

        O petismo se destacou dos demais governos do pós-ditadura por vários aspectos. Foi nessa era que, mesmo tão marcada por fatos negativos que levaram a manifestações populares contrárias, ocorreu uma série de iniciativas inovadoras como política social.
        Facilidade de créditos para obter bens e serviços; distribuição de renda para combater e direitos trabalhistas a domésticas são exemplos. A maior inovação foi a inclusão de pobres e não brancos em áreas antes impossíveis, como concursos públicos e universidades: a política de cotas.
        Até sair do papel, a política de cotas foi muito debatida, desde os especialistas e governo até as conversas de botequim e redes sociais em ascensão. E ainda é objeto de polêmica popular. Mas, do que ela realmente se trata, e seus objetivos? Qual a sua história? E quais problemas tem enfrentado?

Conceito, história e objetivos

        Defendida entre setores da esquerda e repudiada por toda a direita, a política de cotas se tornaria, sobretudo, sinônimo de petismo. Criada pela Lei 12.711/2012, ela ficou conhecida popularmente como cota racial, devido à inclusão de não-brancos em espaços dominados por uma cultura branca e elitista.
        Como se define nas suas linhas legais, a lei de cotas não é somente no campo racial. Ela se torna a política afirmativa de maior amplitude na abrangência entre a sociedade, por incluir também classes populares mais baixas e todos os gêneros em acesso a bens e serviços antes impossíveis. 
        Breve história- Embora considerada inovação petista no Brasil, a política de cotas se inspirou em uma correlata desenvolvida nos EUA nos anos 1960, como forma de amenizar a grave desigualdade racial no país, resultando em algum sucesso na inclusão de negros e outras etnias em universidades e mercado de trabalho de nível superior.
        Diante do relativo sucesso do sistema nos EUA, movimentos negros tentaram propor política correlata, mas veio o regime militar a propagar o mito da democracia racial e perseguições ideológicas para impedir qualquer diálogo. E, na redemocratização, muitas eram as outras prioridades, e assim a ideia seria posta de lado.
        Mesmo eventualmente não impedindo situações repressivas contra os menos privilegiados, foi no petismo que as políticas afirmativas tiveram sua chance de efetividade. Antes de Dilma, Lula já acenava para a abertura dessas políticas de inclusão de grupos historicamente marginalizados, como forma de garantir a equidade de acesso e amenizar a grave injustiça social.
        Os contemplados- Diferente do sistema estadunidense, a Lei 12.711/2012 não contempla somente uma questão racial, alegando "uma reparação histórica" relativa às políticas antigas de segregação que têm imperado no Brasil e "deixado cicatrizes profundas na formação da sociedade".
        Hoje, conforme disposto pela lei, todas as formas de seleção (acesso à universidade, concursos e vagas nos serviços públicos, etc.) devem ter sua parcela de vagas para pessoas pertencentes a qualquer um dos grupos contemplados. 
        Raça/etnia- se destaca pela ampla abrangência. Além de negros, abarca os indígenas, integrados ou não à cultura dominante, bem como mestiços que se declaram negros e indígenas. Juntos, eles somam mais de 60% da nossa população, e em torno de 70% dos trabalhadores de escolaridade e qualificação baixa a mediana. 
        Nesse caso, a reparação a que o governo Dilma se referira, ao aprove da lei, foi à escravidão e ao genocídio. Este último, entretanto, continua como forte, principalmente contra os povos indígenas.
        Os mais pobres- compõem grande parcela da nossa população. São estudantes de escolas públicas de famílias de baixa renda, e em grande maioria são negros e pardos. 
        Pessoas com necessidades especiais- heterogêneo, esse grupo se compõe de PCDs (física, mental, sensorial, múltipla) e com habilidades típicas, que por sua vez chegam a 14% da nossa população - uma parcela importante que tem se mostrado com muito a contribuir. Desde a escola à qualificação e ao emprego, se deve haver cota para essas pessoas.
        Nos concursos públicos, os editais devem especificar não só os números de vagas, como também as necessidades compatíveis com cada cargo disponibilizado.
        Gênero/sexo- talvez a parte mais polêmica entre a classe política e menos conhecida do público. Há um conflito entre o conservadorismo entre a classe política e o fato indiscutível da diversidade sexual e de gênero, mesmo na biologia, por conta dos intersexuais (com caracteres masculinos e femininos) e a transexualidade.
        Apesar do disposto na lei, o acesso ao mercado de trabalho continua muito difícil devido à forte resistência de alguns empregadores, contribuindo para a informalidade contínua, por vezes em vida insalubre ou indesejada, como na prostituição.
        Vale mencionar uma observação ainda neste item dos grupos contemplados: as mulheres. Por uma interessante referência à lei de cotas, foi aprovada medida legislativa estipulando cota de 30% de vagas para mulheres na ocupação de cargos políticos nas casas legislativas federais e regionais.
        Objetivos- a busca por reparação através de medidas garantistas de equidade social foi o objetivo central da Lei 12.711/2012. "Esta lei é uma forma que encontramos de reparar a nossa dívida para com esses grupos", pronunciou a ex-presidente Dilma Rousseff em discurso após a sanção da lei.

Polêmicas, sucesso e problemas: ocorrências e reflexões

        A referida lei de cotas causou forte debate entre o senso público. Enquanto líderes de movimentos dos grupos contemplados comemoraram a lei, houve muitos contrários, que colocaram em evidência diversos argumentos visando propor sentido e razão para revelar as contradições da lei afirmativa. Mas vale informar que os autores também têm origem diversa, entre populares e classe política.
        Na classe política houve numerosos contrários, em especial entre as bancadas ultraconservadoras da bala, da bíblia e do boi, as mais conhecidas por defenderem suas pautas respectivas como políticas. Os argumentos são diversos, e a discordância à lei não é 100% unânime.
        Alguns alegam possibilidades como a de estímulo a preconceitos de cor de pele, e outros, possível ameaça representada por cotistas "despreparados" tirar vaga dos não-cotistas supostamente preparados para enfrentar os desafios oferecidos pelo curso superior, com risco, assim, de haver uma "formação deficiente" para esses cotistas. 
        Alguns desses argumentos são compartilhados entre populares contrários às cotas, acreditando na intensificação das agressões racistas motivadas por frustração em perda presumível de vaga; ou mesmo de não se conseguir passar em teste seletivo se não fosse cotista devido a possível deficiência de base.
        São argumentos compreensíveis, pois de certo modo desmascaram o racismo na nossa sociedade, profunda cicatriz cultural do escravismo que subestimou o papel social dos africanos e dos indígenas por séculos. Mas revela, também, por trás da ideia de suposta "deficiência de base", um mito*. 
        Entre os otimistas (favoráveis) e os contrários, há os céticos quanto ao sucesso das cotas. Entre os céticos vale anotar duas visões: a de que as cotas não resolvem os velhos preconceitos sociais contra os grupos contemplados; e a de que se permitiria a possibilidade de fraudes. 
        De fato, vemos que a política de cotas não resolveu o problema do preconceito racial e de classe na nossa sociedade, numa indicação de alguma lacuna nos objetivos sociais da política. Por outro lado, é muito válido sempre apontar que esse é um processo difícil, pois tais preconceitos têm historicidade forte, refletida num constructo sociocultural desde a colonização.  
        O mito*Acredita-se que haja obrigatoriamente uma ideia pela qual as escolas privadas tenham "excelência no ensino", que seria ausente na rede pública. Além de generalista, a ideia é duvidosa, e deixa no ar o desconhecimento do grande público sobre o que definiria essa "excelência" educativa.
        O que seria essa excelência? Professores hiperqualificados com a toda sorte de recursos didáticos e métodos de ensino mirabolantes? Ou é o ensino que informa o real e prepara os alunos para assumir os princípios cidadãos de justiça social e senso crítico? Até hoje isso é debatido, sem consenso definido.
        O público também desconhece a desigualdade além das diferenças estruturais físicas das escolas, um problema que afeta também a rede privada de ensino básico. Essa desigualdade é plural e, por isso, complexa e difícil de medir e mensurar. Cada escola atende à sua comunidade e tem cultura singular, pela qual vive seu cotidiano.

        Sucesso das cotas- Apesar das posições contrárias e do ceticismo de alguns, a aplicação das cotas tem gerado sucesso em acesso a universidades e, certamente, em cargos públicos. Segundo dados do IBGE (2019), pretos e pardos foram mais de 50% da população universitária. Em 2003, os dois grupos eram bem poucos em um universo claramente branco e de classes mais abastadas.
        Essa estatística indica um sucesso relativo no critério raça/cor, que implicitamente reflete também a mitigação da desigualdade socioeconômica conjugada a outras políticas de acesso. Vale salientar que o dado acima é genérica, reunindo instituições privadas e públicas no país, e dados por cada região.
        Cada Estado teve dados estatísticos dessas populações em suas universidades, somando-se em escala maior, por região, lançando-se assim que as regiões menos desiguais foram a Sul e Sudeste, e as mais desiguais, Norte e Nordeste. Entre as capitais, as mais desiguais foram o Rio e São Paulo. 
        A pormenorização estatística dos cotistas em meio às populações não-cotistas por cresce conforme se diminui a escala até se chegar por instituição. E é aí que a confiabilidade tende a ficar abalada, por conta de uma realidade que tem se desenhado desde o início da aplicação das cotas: a fraude.  
        Reflexão sobre a fraude- assim como o auxílio coronavoucher em 2020, o sistema de cotas tem sido alvo de inúmeras fraudes desde quando entrou em vigor, sendo as modalidades raça/cor e classe social ou escola de origem as modalidades mais atingidas, com até milhares de casos somados, em todo o território brasileiro.
        Classe social/renda e raça/cor são os critérios mais comumente usados para a prática de fraudes, conforme dados compilados nos flagrantes, que resultaram na eliminação dos candidatos, antes das provas (universidades) e na apresentação de documentos declaratórios para posse de cargo público via concurso. 
        Reportagem da UOL de 2020 registrou cerca de 163 casos de expulsões de estudantes flagrados em fraude por terem se declarado como cotistas, só em universidades federais no país. Parece pouco, mas se torna significativo por ser apenas casos em 2020 e excluindo as instituições privadas, indicando haver um total bem maior, embora não divulgado.
        Significado criminal- O termo fraude, por si só, já tem peso criminal na nossa legislação, e nesses casos contra o sistema de cotas, tem dois significados importantes, que se traduzem em dois delitos reconhecidos em nosso código penal.
        Um desses delitos é o estelionato, que em linhas gerais se traduz como de baixo a médio potencial ofensivo, e consiste de obtenção de vantagens facilitadas através de meios fraudulentos. No caso da lei de cotas, as vantagens obtidas podem ser a isenção ou descontos de pagamentos, ou facilidade constada na citada lei.
        Mesmo o ato púbere de "colar prova", tão comum na vida escolar, é tido como estelionato por ser uma obtenção fraudulenta de conhecimento de outrem. O poder ofensivo se volta ao infrator quando flagrado pelo professor. Esse spoiler visa mostrar até onde se detalha a nossa legislação.
        O estudante ou candidato a concurso geralmente recorre ao critério de classe social-baixa renda para falsificar seus próprios dados de renda familiar para "provar" hipossuficiência visando, enfim, se declarar cotista para obter as vantagens mencionadas. O ato identifica o crime de falsidade ideológica, também de potencial ofensivo baixo a mediano.
        
        Não foi encontrada fonte que delineie quantos flagrantes por especificação criminal nos casos de fraude envolvendo cotas para universidade e concursos públicos. Mas, de qualquer modo, em contexto de preconceitos intensificados, vemos como se autodeclarar negro ou não-branco, só para ser cotista, pode ocorrer quando bem conveniente, mesmo entre os próprios racistas e anticotistas. 

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Imagem: Google

Notas da autoria

Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADtica_de_cotas_no_Brasil
- https://brasilescola.uol.com.br/educacao/sistema-cotas-racial.htm
- https://www.oxfam.org.br/blog/pesquisa-do-ibge-mostra-o-sucesso-da-politica-de-cotas/?gclid=CjwKCAiAhreNBhAYEiwAFGGKPLzIGx_HMGJwPeXAvlsFzeVY_sw7Cc_8cvBS8tQj8Agba_kIqJhCDRoCLywQAvD_BwE
- https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/08/denuncias-de-fraudes-em-cotas-raciais-levaram-a-163-expulsoes-em-universidades-federais.shtml

domingo, 5 de dezembro de 2021

Análise: degradação ambiental x comunidades agroecológicas

 
        A degradação ambiental é um tema extensivamente tratado neste blog como um problema global originário da intensa atividade humana, que tem se destacado de forma recorde em uma nação conhecida e apreciada por sua exuberante riqueza natural: o Brasil.
        A devida importância, não dada por uma enorme parcela da população, por ignorância sobre a dinâmica, dimensão e consequências no clima, na biodiversidade e na vida humana, é preocupação ainda restrita a certos grupos, como cientistas, educadores, povos indígenas, tradicionais e sem-terra.
        Pois são esses grupos os que mais sofrem com as pressões consequentes à degradação e de um dos fatores de destaque, o agronegócio. Neste artigo, será tratada compilação analítica sobre os significados dessa degradação no território brasileiro e suas consequências em relação às comunidades tradicionais.

Povos e comunidades tradicionais

        Segundo a CF/1988, "são grupos que possuem culturas diferentes da cultura predominante na sociedade e se reconhecem como tal". O decreto 6040/2000 acrescenta o uso de "territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas transmitidas pela tradição".
        Como vivem em áreas ricas em recursos naturais nativos, a atividade econômica é sustentável (requisito de identificação desses povos), como roçados agroecológicos e extrativismo direto da natureza. Várias dessas comunidades são centenárias ou milenares.
        Cerca de 25% do território brasileiro são ocupados por comunidades tradicionais, que se espalham por todo o país. A maior parte vive em minifúndios (sítios ocupados por gerações ou assentamentos do governo), em parte cobertas por mata nativa e seus recursos para atividades ecológicas. Áreas indígenas são tidas como totalmente nativas, dada a organização tribal de seus habitantes.
        Ocupando cerca de 25% do território nacional, as comunidades tradicionais se espalham por todo o país. A maior parte dessas populações vive em minifúndios, sejam estes sítios ocupados por gerações ou assentamentos do governo. Elas em parte são ocupadas por mata nativa, explicando o caráter ecológico das atividades. 
        Essa população reunida é muito heterogênea, com traços culturais distintos, dado o arcabouço sociocultural em elo com o meio natural. São os caboclos, caiçaras, extrativistas, quilombolas, indígenas, pescadores, jangadeiros, ribeirinhos, seringueiros e outros.
        Subordinada ao MMA, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais de 2004 estabelece e acompanha a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dessas populações.
        Somando-se aos cooperativados e pequenos produtores não-tradicionais, os povos tradicionais são grandes fornecedores de alimentos frescos à galera das cidades próximas às suas terras. Mas, diferente dos produtores não-tradicionais, eles fabricam venenos caseiros para ajudar no controle de pragas, sem prejuízo à natureza e animais que se alimentam dessas pragas.

Fragilidade
        A Constituição e a legislação complementar reconhecem a importância dos povos tradicionais em sua identidade sociocultural, atividades baseadas na economia verde e-/ou visão espiritual da natureza, e as organizações como ONGs e outros os denominam como os "guardiões da natureza", explicada na capacidade de moldar o meio natural numa relação simbiótica.
        Por outro lado, movimentos indígenas, quilombolas e sem-terra têm demonstrado a existência de uma realidade muito mal abordada, a revelar a falta de cobertura suficiente e adequada do Estado para salvaguardar e promover a integridade desses povos contra as interferências externas, o que os deixa em evidente situação de vulnerabilidade.
        A patuleia que vive nas áreas urbanas é totalmente alheia a essa realidade. A nossa grande mídia nos bombardeia com menções dramáticas sobre o avanço recorde da destruição ambiental por diversas atividades relacionando-as com a omissão - ou aval eventual - do governo para essas atividades, cuja legalidade é no mínimo duvidosa.
        Tais atividades têm forte significado de preocupação para as populações tradicionais, que sofrem forte pressão, advinda tanto de pessoas "estranhas" quanto das mudanças do meio natural. 
        Meio natural- moradores de comunidades tradicionais revelam várias mudanças ambientais, as quais primeiramente são atribuídas a modificações nos padrões climáticos regionais. É interessante que os relatos apontem mudanças mais drásticas a partir de 2019. 
        Todos sabemos que as mudanças climáticas1, pelo menos a partir do pós-guerra, acompanham as atividades humanas, e hoje, estudos recentes afirmam o Brasil como centro de aquecimento2 acima da média global, talvez atribuído à predação humana nos principais biomas. 
        Por conhecerem há décadas ou séculos a natureza de seus habitats, os indígenas e agricultores familiares são os primeiros a perceber e denunciar essas mudanças, que incidem na disponibilidade alimentar e/ou de suas produções. 
        Na região da Serra do Amolar, de vegetação de transição de Cerrado-Pantanal e clima de estação seca (maio a outubro) e a úmida (novembro a abril) e bom suprimento hídrico, agricultores familiares tinham produção constante. Nos últimos 30 anos, com maior progressão da seca, sua produção sofre.
        Eles atribuem esse fenômeno aos latifúndios de monoculturas mecanizadas e pecuária bovina expansiva3 com alto incentivo dos governos desde o regime de 1964. Percebem também os efeitos do ritmo maior da predação atual, iniciada em 2019.
        E estão certos. Estudos comprovam a devastação dos grandes biomas nativos na desregulação dos padrões térmicos e climáticos globais, através de dados históricos obtidos por instituições científicas. A precária regularidade restante é mantida graças ao que ainda resiste desses biomas. 
        Pessoas 'de cima'- para a maioria dessas comunidades, a pressão humana, em especial de pessoas "de cima", pode ser ainda mais profundamente impactante para a sobrevivência do que as modificações ambientais: os resultados variam desde ameaças, invasões das terras, despejos e até morte.
        As primeiras visões são mais sutis, de novas atividades, com desmates em terrenos circundantes para pecuária ou alguma monocultura, logo acompanhadas de homens fortemente armados que olham ameaçadoramente os previamente assentados.
        Um despejo emblemático ocorreu com o quilombo MST Campo Grande, assentado em terras tidas como improdutivas após desativação da usina de açúcar pelo proprietário, no interior de MG. Em 2018, o dono alegou a reativação e, tendo ganho de causa, os quilombolas receberam a carta de despejo.
        Mas, os MSTs resistiram e, com prova documental da legalidade do assentamento, tiveram direito à permanência. Como havia direito a tréplica, o usineiro retornou arrastando o processo em 2019, até que contatou o governo Zema para ajudar. Em 2020, as famílias foram despejadas à força pelos PMs.
        Três detalhes macabros: tudo ocorreu em plena pandemia atestando a ilegalidade do despejo; os MSTs estavam legalmente assentados, via declaração de terra improdutiva; o proprietário tem uma dívida em torno de R$ 400 milhões. E vale outro: o quilombo é MST, velho "vilão" da elite rural e da grande mídia. 
        Entre os ameaçados de morte estão os assentados de décadas em lotes de terra concedidos pelos proprietários de uma antiga usina de açúcar, para a qual as famílias trabalhavam e moravam nos lotes onde subsistem de suas roças até hoje. A flora da mata nativa cresce na antiga cultura de cana. O local fica na zona da mata de Pernambuco.
        Pelo The Intercept Brasil, os relatos são de desmate paulatino e jagunços armados: latifúndio novo à vista. Os lotes estão estreitamente limitados por arame farpado. O poço do qual as famílias tiravam água teve acesso proibido, pois agora está em outra terra. Ameaças de morte são constantes. Medo, tensão e dificuldades permeiam a rotina dos assentados.

Reflexões finais

        O exposto nos revela uma situação socioambiental bastante delicada. O abandono em que se veem as culturas tradicionais se sobressai às leis de proteção e aos documentos comprobatórios de posse das terras e de reconhecimento de territórios públicos demarcados habitados por aqueles que os protegem. 
        A já conhecida omissão governamental se deve à prioridade dos governos ao badalado potencial macroeonômico do agronegócio, que sabidamente, não tem nenhum uso social, em flagrante afronta ao princípio constitucional maior da questão fundiária, e contra a dignidade e a vida humanas. 
        A grande mídia brazuca também se omite quando aponta os impactos ambientais e climáticos no agronegócio, sem uma palavra sobre como os pequenos produtores tradicionais são as vítimas maiores disso tudo, potencializando todo o abandono que os entrega indefesos à vida de violência.
        Nesse contexto andam em paralelo o mercado externo do agronegócio latifundiário e a economia popular. A prioridade do governo ao primeiro transforma o paralelismo em confronto classista que se traduz na violência no campo e na floresta, como nos fatos supracitados.
        Em meio a isso tudo...- Em meio a esse contexto tão hostil, algo muito valioso move os povos tradicionais a permanecer como são e estão: a resistência. O que a alimenta não é só não terem para onde ir, é também a identidade cultural construída na relação com a terra e com a natureza, e isso é tudo na vida dessas comunidades. 
        As histórias acima exemplificadas são apenas alguns dos numerosos exemplos nesse país marcado pela violência no campo e na natureza. Os povos tradicionais atuam como verdadeiros museus vivos a mostrar como culturas podem resistir ao reveses do tempo e da sociedade em constante mudança.
        E por resistirem tanto, essas comunidades se transformam num verdadeiro incômodo, empecilho aos avanços de sinal de muitos ambiciosos que almejam para si os recursos acima e os que jazem sob seus poucos hectares de terra. E que esse empecilho continue, hasta la vitória, siempre.
        Quem viver, verá. 
        
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Imagem: Google

Notas da autoria
1. Mudanças nos ritmos sazonais e na distribuição e quantidade de chuvas, locais ou globais, ao longo de série histórica, induzidas por fator natural e, principalmente, humano.
2. Aumento das médias térmicas de determinada macrorregião, ou global, ao longo de série histórica.
3. De grande extensão e milhares de cabeças de gado por latifúndio.

Para saber mais
- http://www.ecobrasil.eco.br/noticias-rodape/1272-comunidades-ou-populacoes-tradicionais
- https://reporterbrasil.org.br/comunidadestradicionais/
- https://journals.openedition.org/confins/28049 (Expansão do agronegócio e os impactos socioambientais na região do Cerrado no Centro-Norte do Brasil - Matopiba - estudo)
- https://contraosagrotoxicos.org/enquanto-estado-aposta-no-agronegocio-agricultura-familiar-sertaneja-luta-pela-existencia/
- https://diplomatique.org.br/exploracao-do-pantanal-tenta-varrer-comunidades-tradicionais-do-mapa/ (parte 1)
- https://diplomatique.org.br/essa-regiao-nossa-nao-sei-nao-se-vai-resistir/ (parte 3)
- https://diplomatique.org.br/eu-existo-eu-estou-aqui-no-mapa-2/ (parte 2)
- https://www.poder360.com.br/economia/a-contradicao-entre-recordes-no-agronegocio-e-fome-no-brasil-dw/
- https://conexaoplaneta.com.br/blog/quilombo-campo-grande-familias-sao-despejadas-pela-policia-em-meio-a-pandemia/
- https://www.youtube.com/watch?v=hfdry54DQMw (The Intercept Brasil - pressão sobre comunidade da usina falida no interior de PE)



CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

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