domingo, 29 de outubro de 2023

REFLEXÃO: paz à brasileira vetada. E agora?

 

          Uma plateia popular assistia à votação da resolução de paz do Brasil no Conselho de Segurança na ONU quando a embaixadora dos EUA leu o discurso que vetou a proposta. Em protesto, ativistas de ONG viraram de costas.
                O veto estadunidense endossou os votos contrários de alguns dos membros permanentes do Conselho, que são apenas 5 países: EUA, Rússia, China, Reino Unido e França.
                No Brasil, o veto foi assunto dos deputados na Comissão de Relações Exteriores, que convocou o chanceler Mauro Vieira para explicações. E a senadora Damares postou uma bizarrice na qual os ativistas de costas seriam embaixadores estrangeiros contra a proposta apresentada pelo representante brasileiro.
                Motivo do veto – segundo a grande mídia, o motivo do veto foi o teor de neutralidade, sem menção a Israel. Mas na prática, não foi bem a neutralidade proposta na não menção, e sim a falta de posição favorável a Israel, por não ter criticado o Hamas. É conhecido de todos o apoio geopolítico dos EUA e Europa ocidental a Israel.
                Lula – outro fator muito possível do veto é que o governo dos EUA sabe que o presidente Lula é favorável à Palestina por sua formação política enquanto povo e Estado Nação, e não apontar o Hamas como movimento de fato terrorista, apesar de considerar como tal o ataque à rave em Gaza.
                Para os EUA não há interesse em considerar a neutralidade brasileira como um ato de prudência – virtude esta que tem faltado ultimamente ao governo ianque e dos países em guerra, e também à claque bolsonarista do Congresso daqui que espalha bizarrices como PT como braço-direito do crime organizado e ligado ao terrorismo do Hamas.
                Repercussão global – o protesto de ativistas foi só a primeira das repercussões do reprove. Depois foi a vez do veto à resolução dos EUA, e aí a ONU demandou reunião emergencial. Nesse impasse diplomático, a guerra ganha nova extensão com poderosos “anúncios” armados russos e chineses nas águas mediterrâneas, junto aos ianques.
                Manifestos pró-Palestina e pela paz explodem pelo mundo. Mesmo proibidas pelos governos, multidões pró-Palestina lotam as ruas na Europa, no norte da África e na América do Sul. Nos EUA, mais de 100 judeus do movimento Not im my name (não em meu nome, em tradução livre) foram presos.
                Significados – os cinco membros permanentes do Conselho têm tradição de guerra. Apenas dois deles não são da OTAN, liderada pelos ianques. Seus votos têm mais peso do que os dos membros provisórios. Nesse sentido, o reprove da proposta revela ao Brasil que sua presença ali é bem menor do que a sua posição econômica estratégica.
                Além disso, faltam dois ou três requisitos ao Brasil para ocupar a cadeira de permanente: ter tradição guerreira (para isso precisa reforçar muito suas Forças Armadas) e guinar sua posição inteiramente pró-EUA. E no segundo se insere o terceiro requisito: ignorar a Palestina, o que pode enfraquecer sua força no BRICS – tudo que os ianques querem.

Para saber mais
https://www.youtube.com/watch?v=bvElGX1yrKk (UOL – 50 países se unem contra o veto dos EUA e pedem reunião de emergência)
-----


Netanyahu, sabotador internacional

                A guerra convencional entre Israel e Hamas é uma realidade tangível, cujos horrores de destruição pelas bombas e balas geram danos, sangue, morte, lágrimas e traumas. Mas também há a guerra do ciberespaço, onde informes contrários se cruzam e se digladiam. É a face mais autêntica da guerra híbrida.
                Entre as mídias que divulgam matérias pró-Israel e outras pró-Palestina, se alimenta a guerra híbrida que assume uma faceta muito maior do que imaginamos, pois colocam os povos árabes, israelenses e todo o mundo sob um manto, de cujo potencial destrutivo ainda não nos damos conta.
                Um país muito bem equipado – graças ao apoio militar dos EUA, Israel venceu os árabes nas guerras dos anos 1960 e hoje tem aparato bélico poderoso. Fala-se que eles tenham ensinado técnicas de tortura aos militares brazucas na ditadura. Por isso, sua potência de alcance destrutivo e letal é infinitamente superior ao palestino.
                Enquanto bolsonaristas e gospels choram as 1500 mortes infantis israelenses, mais de 3500 pequenos palestinos nem puderam ser enterrados. Enquanto isso, assentamentos israelenses têm forte apoio de oligopólios como MacDonalds (que agraciou soldados com víveres), Airbnb, Motorola Solutions, Booking.com e mais dezenas.
                Censura – há outro equipamento poderoso: a espionagem tecnológica. Nomeado de Canary Missions, o sistema interfere em movimentos ativistas no Ocidente envolvendo empresas, universidades e políticos.
                O Canary Missions interferiu nos movimentos negros dos EUA, censurou a exibição de uma série documental da Al-Jazeera no Ocidente e persegue ativistas pró-Palestina mediante difamações à reputação resultando em ódio traduzido em ameaças, expulsões e demissões.
                 De revolta em árabe, o termo Intifada passou a significar "extinção aos judeus" pelo sistema, numa falsa comparação ao nazismo. O ideário de extinção se limita ao Hamas, que é um movimento e não um povo, e incita psicologicamente o Ocidente à islamofobia, que está em alta nos EUA.
                Como intolerância religiosa, a islamofobia é criminosa, por generalizar a mentira e a depreciação sobre todo um povo e seus descendentes. Antes de julgarmos o fundamentalismo islâmico devemos entender as razões de sua existência, e assumir que as versões cristãs e judaicas existem e são igualmente ofensivas.
                Igualmente, vale ressaltar que os povos israelenses e árabes não podem ser postos nesse balaio minado.  O que move a guerra muito acertadamente não os representa.
                E por trás disso tudo... – explica-se tudo isso um único interesse: são conhecidas as riquíssimas jazidas de hidrocarbonetos no subsolo palestino. A petrolífera estadunidense Chevron já sugere a construção de um gasoduto oriundo daquele subsolo para resolver a crise energética europeia iniciada com a guerra russo-ucraniana.
                O não reconhecimento do Estado palestino previsto pela ONU em 1947 já revelava o propósito exploratório, pois já eram realizadas pesquisas prospectivas na região. A nevralgia cultural religiosa foi mexida e facilitou a ofensiva destrutiva e revelando o hibridismo da guerra criada pelo capital, usando Netanyahu como mediador eficiente da sabotagem internacional.
                
Para saber mais
https://www.intercept.com.br/2023/10/24/israel-perseguicao-ativistas-pro-palestina-chega-no-brasil-serie-censurada-lobby-usa/
https://www.intercept.com.br/2023/10/20/israel-apoie-ou-perca-mandato-serie-censurada-al-jazeera-episodio-2/.
https://www.intercept.com.br/2023/10/17/israel-lobby-eua-documentario-censurado-al-jazeera-palestina-gaza-hamas-propaganda/.
https://www.intercept.com.br/2023/10/11/sim-este-e-o-11-de-setembro-de-israel/.
- https://www.intercept.com.br/2023/10/13/israel-estes-sao-os-maiores-massacres-contra-a-palestina/
https://www.intercept.com.br/2023/10/27/israel-nao-vai-cumprir-acordos-nem-se-descolonizar-mundo-precisa-agir/.
https://www.dw.com/pt-br/onu-divulga-lista-de-empresas-ligadas-a-assentamentos-israelenses/a-52358830#:~:text=Entre%20os%20nomes%20h%C3%A1%20bancos,Expedia%2C%20Motorola%20Solutions%20e%20TripAdvisor
 -----





                

sábado, 21 de outubro de 2023

REFLEXÃO: velho conflito, nova politização

 

                Com o Brasil assumindo brevemente a presidência do Conselho da ONU, a guerra Israel-Palestina explode novamente, em meio à guerra russo-ucraniana, à crise humanitária síria e a golpes de Estado africanos.
                Com o cruzamento inédito de informações das mídias online, pormenores antes desconhecidos da guerra vêm à tona e balançam a política brasileira. Prato cheio para uma reflexão analítica sobre politização e terror.
                Das origens à guerra – os brigões descendem de semitas arábicos¹ que migraram para as terras ao redor do Jordão, formando povos diversos em língua, fé e cultura. Com o tempo vieram duas heranças judaicas divisoras da história: o cristianismo e o islamismo, que brigaram muito por Jerusalém, e só pararam após a tornarem sagrada para todos.
                Palestina é o nome dos romanos de parte da antiga Judeia incluindo Jerusalém. Em 1947, a ONU a tornou cidade internacional na criação dos Estados de Israel e da Palestina. Como ninguém ali gostou, surgiu uma guerra que dura até hoje, que nem o falecido Nobel da Paz Yasser Arafat conseguiu dar jeito.
                Momento atual – após uma trégua, Israel deu resposta feroz a um ataque letal da milícia política Hamas a uma rave em Gaza, e o bicho pegou. O Hamas depois assumiu o atentado a um kibutz, e agora a explosão² num hospital batista reverberou em troca de acusações. Agora vazam na rede denúncias de graves violações contra palestinos em Gaza.
                No Brasil das falácias – como a esquerda historicamente defende a causa palestina mesmo sem grande alarde, a oposição se mune de falácias, como a viral “aliança PT-Hamas” para “tocar o terror em Israel”. Resgatados ingratos negam descaradamente a iniciativa pioneira de repatriamento de brasileiros na zona de guerra.
                A explosão no hospital aguça o clima hostil no parlamento. Nessa cortina de fumaça que tenta encobrir ao público o indiciamento de Bolsonaro e caterva no relatório da CPMI do 8/1 e expõe a ideologização religiosa, surge um destaque: o terrorismo – cujo significado é pejorado com distorções.
                Terrorismo – a nossa lei antiterror designa todo atentado contra pessoas ou grupos com única intenção de impor um status quo e eliminar a diferença, tendo o ódio como combustível. Nesse sentido, muita coisa entra aqui.
                Os crimes de Bolsonaro que levaram a mais de 700 mil mortes e as medidas antissociais de Guedes que levaram a desemprego, miséria, fome, deseducação e retorno de doenças mitigadas, bem como lesões a pessoas e patrimônio antes e após as eleições, podem ser todos considerados crimes terroristas.
                O subestimado terror de Israel – a grande imprensa do Ocidente pró-EUA isenta Israel em só considerar o Hamas terrorista. Mas Israel é também terrorista ainda ao usar seu maior poder de fogo sobre os civis palestinos, sem critério algum. E, não importa o responsável, a explosão no hospital é um terror de extrema gravidade.
                Para completar o que os palestinos chamam de Nakba, 2,2 milhões deles estão forçosamente confinados no sul de Gaza, com só 6% do mínimo de água, sem comida e eletricidade. Eles vivem a agonia da morte lenta no maior campo de concentração ao ar livre do planeta, não denunciado de forma alguma pela grande mídia ocidental.
                Outras fontes apontam uma suposta parceria entre Netanyahu e Hamas para manter a guerra visando interesses imperialistas. Por enquanto isso não passa de especulação, mas nada é descartável nesse contexto de guerra híbrida, na qual as redes sociais funcionam como arma de guerra.
                Essas são faces recentes do terror de Israel. A mais antiga e persistente é a invasão crescente de terras da Palestina para construção de condomínios e kibutzes – à custa de vidas perdidas a bala e fogo.
                Antissemitismo – em meio a distorções acusativas sobre a conduta do governo na política externa, se insurge a acusação de antissemitismo, que recai sobre ativistas pró-palestinos que acusam Israel de genocídio. Com exceção dos grupos neonazistas, rotular os pró-palestinos de antissemitas é um erro.
                Eles defendem um povo tão semita quanto o israelense – são povos irmãos, o que dissolve a tese racista do julgamento. Em toda essa guerra de narrativas estão em jogo vidas humanas dos dois lados.
                Vidas principalmente de mulheres e de crianças, que a grande mídia faz questão de destacar as israelenses, como se as vidas palestinas não tivessem o mesmo valor – uma irresponsabilidade jornalística que merecia ser eliminada sobre um assunto tão complexo que foi complicado escrever este texto de forma mais imparcial possível.
                Quanto à ONU, em meio à rejeição de propostas de paz no Conselho de Segurança, ainda falta resolver um velho problema: desde a resolução de 1947, só se reconheceu na prática um Estado, o de Israel. A Palestina tem sido desprezada no cenário geopolítico ocidental, que é hegemônico, apesar da proposta de multipolaridade global.
                É possível que a sonhada paz tenha jeito na região. Talvez o caminho seja reconhecer, finalmente, a Palestina como um Estado, um país-membro, uma pátria de um povo secular. Talvez. Mas é o que ainda falta. Quiçá, dê certo.

Nota da autoria
¹ referente a Sem, descendente de Noé (vide AT bíblico e o Talmud judaico)
² se atribui a um foguete que, na altura, deu ruim e parte caiu e explodiu em hospital, com número incerto de mortes.

Fontes para a reflexão
https://www.intercept.com.br/2023/10/11/sim-este-e-o-11-de-setembro-de-israel/.
https://www.intercept.com.br/2023/10/13/israel-estes-sao-os-maiores-massacres-contra-a-palestina/
https://www.intercept.com.br/2023/10/14/e-o-pt-hein-midia-brasileira-consegue-atacar-lula-ate-quando-fala-de-israel/
Agência Pública – O Hamas como parceiro (newsletter via e-mail)
https://www.intercept.com.br/2023/10/08/israel-palestina-jornalismo-comete-erros-gaza-hamas/
https://www.brasildefato.com.br/2023/10/19/sob-ataque-de-israel-palestinos-na-faixa-de-gaza-vivem-com-6-do-minimo-diario-de-agua-recomendado-pela-onu
----

Nota extra: esse texto se centrou basicamente no objetivo proposto de reflexão sobre a politização da guerra pelos brasileiros, e sintetizar o que falam as mídias hegemônica e independente. Quanto à abordagem histórica rasa para fins de resumo de um tema tão complexo, os leitores entendidos no tema podem fazer suas colocações como correção, no que serei grata. Quanto às opiniões, cada um responde pelas suas.
Sal Ross











quinta-feira, 12 de outubro de 2023

CURTAS 47 - ANÁLISES (CF 1988; médicos)

 

CF/1988: em 35 anos, vilipêndios

                Após a sanguinária ditadura militar que ceifou presumíveis 10 mil vidas (das quais, 8350 indígenas), o Brasil renasceria das cinzas do caos, tal como a mitológica Fênix. E, para consolidar um movimento democrático renascido, surgiu a Constituinte liderada pelo saudoso Ulysses Guimarães, que pariu a Constituição de 1988.
                Logo no pós-ditadura, o Congresso já se mostrava afeito à diversidade, com um mosaico de partidos. Até a esquerda era mais diversa do que hoje, com PCB, PCdoB, PT, PDT e PSB, repletos de nomes históricos como Luiz Carlos Prestes, Lídice da Mata, Lula, Genoíno, Florestan Fernandes, Luiz Salomão e outros tantos.
                Chamada de Constituição Cidadã por Ulysses e outros, a Carta Magna estava repleta de novos direitos que foram exaustivamente analisados, reescritos e aprovados pelos constituintes. Fresquinha, ela foi apresentada à geral popular que comemorava o enterro simbólico da ditadura militar pelo novo documento.
                Volatilidade – apesar dos esforços dos constituintes, a carta maior da República nasceu para ser volatilizada por governos posteriores. É compreensível, haja visto que, como já havia previsto Ulysses Guimarães ao apresenta-la, “não é uma carta perfeita, mas tem as bases necessárias para o Estado democrático de direito”.
                Esta fala sinalizava que a nascente Constituição poderia ser, sim, aprimorada, para se adaptar às mudanças contextuais amplas do momento histórico. Mas, sem tocar nos direitos individuais e sociais via Estado, pelos quais lágrimas e sangue foram derramados. São as emendas constitucionais (ECs), que alteram um ou mais artigos da Carta.
                Entretanto, entre as essas emendas, vieram algumas nada alvissareiras.
                Emendas nada cidadãs – as primeiras emendas à constituição (ECs) surgiram após Collor. FHC aprovou várias, como a da reeleição de presidentes da República e outros cargos políticos, outras que facilitam a sessão de privataria, mudanças na lei previdenciária e outras relativas aos servidores públicos – que tiveram os seus salários congelados em 8 anos.
                A era petista não escapou de criar emendas, e também algumas delas nada cidadãs, como nova reforma sobre a previdência, que define a soma de tempo de contribuição + idade, e não mexeu nas ECs de FHC que facilitaram ganhos do sistema financeiro.
                Temer pouco fez, e o governo Bolsonaro meteu recorde de ECs, criadas principalmente por Paulo Guedes. Esses seis anos e meio de dois governos foram responsáveis pela atenuação da essência cidadã da CF-1988 – que alguns veem como utópica. Guedes, aliás, defendia uma nova Constituição, de essência bem neoliberal.
                A essência cidadã da Carta Magna em conteúdo original não era utópica. Era apenas mais progressista do que é hoje e considerava a responsabilidade estatal e governamental pelo desenvolvimento – e isso desagradou os governantes mais ambiciosos e com tendências retrógradas e anarcocapitalistas, que a vilipendiaram o quanto puderam.
                A Constituição aniversariou 35 anos. E com ela vieram seguidos vilipêndios cuja aspereza sentimos nos bolsos e na perda de direitos. Se ela tivesse entrado como disciplina obrigatória na educação básica, talvez as arestas das mudanças não fossem tão agudas e cortantes. Pois quem os poderosos mais temem é um povo conhecedor de seus direitos.

Para saber mais
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_emendas_%C3%A0_constitui%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_1988
----

Uma chacina, duas hipóteses

                Os médicos Marcos de Andrade Corsato, de 62 anos, Perseu Ribeiro Almeida, 33, Diego Ralf Bomfim, 35, e Daniel Sonnewend Proença, de 32, curtiam a madrugada em um quiosque na Barra da Tijuca, na zona oeste carioca, quando de um carro branco próximo saiu uma saraivada de tiros à queima-roupa. O veículo disparou em seguida.
                O dia seguinte amanheceu com a notícia da chacina no telejornalismo e online, revelando o testemunho de “20 tiros de pistola” e “um homem saiu do carro, atirou e voltou pro carro que arrancou”. Três deles morreram na hora, e o sobrevivente está internado em hospital público na Barra, em recuperação.
                Acionada, a polícia verificou que nenhum objeto foi roubado, numa indicação muito forte de execução. E Brasília foi tomada de assalto: Diego Bomfim, um dos mortos, era o irmão da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP). Com isso, surgiram duas hipóteses motivacionais sobre o que levou os assassinos a matar na hora três dos quatro médicos.
                Engano – é a tese sustentada pela polícia fluminense: os matadores teriam confundido Perseu com Taillon de Alcântara Pereira Barbosa, chefe da milícia de Rio das Pedras e Gardênia Azul, devido à notável semelhança fisionômica. Na confusão, as demais vítimas seriam seguranças do miliciano, daí serem baleadas também.
                Horas depois, a polícia descobriu os suspeitos mortos. Segundo a mídia, a PCERJ acredita que sejam traficantes do CV, que disputa a região com a milícia e não teria perdoado a confusão. Daí o sentido da tese e a decisão inicial de dar fim à investigação apenas 24h após os crimes – que gerou forte desconfiança pública na “miraculosa eficiência”.
                Política – nessa hipótese se destaca o parentesco de irmandade entre Diego e Sâmia Bomfim. Embora tenha menos peso para a polícia e não haja acusação propriamente dita, a sua possibilidade não se descarta. Um dos crentes nisso é o ministro Flávio Dino, que acionou a PF em trabalho investigativo colaborativo.
                A deputada federal Sâmia Bomfim é casada com o colega Glauber Braga. Do PSOL, ambos têm presença forte no parlamento, defendendo pautas de socialismo progressista democrático. Por isso, essa tese ganhou força entre a patuleia. E também tem sentido.
                Reflexões – diante de todas as possibilidades, podemos apontar que ainda há lacunas a serem apontadas, o que torna contraproducente o fim de inquérito pretendido pela polícia fluminense. O fato ainda está muito recente e fresco, e necessita de mais trabalho investigativo.
                Se for mesmo engano, vale perguntar se um chefe miliciano se exporia com selfie e tudo quando “todos os gatos são pardos”, em local aberto de uma região disputada por diferentes orcrims. E por que seria obrigatória a autoria do CV em matar os suspeitos pouco após o crime? Como o presente domínio é miliciano, a autoria pode ter sido de milícias.
                Na hipótese política, Sâmia e Glauber são ferrenhos antibolsonaristas. O incômodo a bolsonaristas (políticos ou não) é bem conhecido. O caldo de ameaças ao casal nas redes tem engrossado. Para alguns bolsonaristas, a morte de Diego foi encarada como “pena não ter sido a Sâmia”, e para outros foi “um aviso, um recado”.
                Além da atuação dos parlamentares, outro fato que sustenta a hipótese foi a oferta de forças pelo governo de SP tão logo Brasília acionou a PF, alegando serem as vítimas paulistas. Detalhe: o governador é tão bolsonarista quanto o fluminense Claudio Castro.
                Rescaldo - há quem aponte tudo isso como cortina de fumaça para mascarar o que esteja por trás das mortes ou da disputa pela área. A PF descobriu 47 fuzis e munições numa mansão na qual havia uma festa de arromba. Se acredita que a carga seria destinada à Rocinha, dominada pelo CV que deseja tomar a Barra para si.
                Como o endereço não foi citado, a patuleia brincou que fosse o Vivendas da Barra Pesada, onde em 2019 foram apreendidos 117 fuzis e munição de uso restrito, em casa de vizinho e amigo dos Bolsonaro.
                Enfim... com tudo recente e simultâneo, qualquer apontamento é imprudente. Não podemos ligar as mortes ao fato na mansão, mesmo havendo personagens afins. O certo agora é investigar com calma, responsabilidade e inteligência para se chegar à conclusão que dê justiça às famílias das vítimas e pacifique os ânimos políticos.
                E que a mídia contribua com informações claras, mas principalmente responsáveis e verídicas.

Para saber mais
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-10/policia-do-rio-investiga-se-medicos-foram-mortos-por-engano
https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/dino-diz-que-medicos-foram-executados-e-aponta-hipotese-de-relacao-com-a-atuacao-de-parlamentares,cf481b6d9619d85bf9a18e20ddb7ba09g50y0mcu.html
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-10/policia-federal-apreende-47-fuzis-em-mansao-no-rio
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/10/05/bandidos-que-executaram-medicos-na-barra-foram-conferir-se-vitimas-haviam-morrido-veja-video.ghtml
----
 
                
                
                
                
                
                













domingo, 1 de outubro de 2023

CURTAS 46 - ANÁLISES (marco temporal, aborto)

 

Tupã venceu. No tapetão

                Após a famigerada vitória imposta pelas bancadas ruralista, bíblica e bolsonarista na Câmara federal, e em meio ao fim de duas comissões parlamentares de inquérito e tendo-se interrupção momentânea do julgamento de terroristas do 8/1, o Marco Temporal foi declarado inconstitucional pelo STF.
                Histórica – foi uma votação inegavelmente histórica e precedida por discursos técnicos, mas acessíveis ao grande público, que configuraram uma verdadeira batalha dialógica de 9 ministros com outros 2, mas também com alguns pontos para serem julgados a posteriori.
                O placar de plenário foi de 9 a 2. André Mendonça e Nunes Marques foram favoráveis ao marco no inteiro teor essencial.
                Significados positivos – o significado mais positivo dessa decisão é o reconhecimento de que a CF-1988 não delimita tempo de permissão para demarcação de terras indígenas. Ou seja, ela não só permite como prevê as novas terras a serem demarcadas pelo governo.
                Outra vitória dos povos originários foi a derrota jurídica dos fazendeiros ou posseiros em questionamentos sobre terras demarcadas. Qualquer reivindicação do tipo implicará em derrota judicial. Mas, ainda há dois pepinos a serem resolvidos.
                Brechas – a derrubada do marco temporal ainda deixou brechas a serem resolvidas pelo STF. Esse foi o motivo da “guerra dialógica” dos ministros antes de seus votos. São dois pontos polêmicos: a mineração em terras indígenas e a indenização de fazendeiros que porventura tenham sobreposto suas terras em áreas indígenas.
                A indenização aos fazendeiros é uma proposta surgida há pelo menos 15 anos atrás. Segundo alguns noticiosos, Alexandre de Moraes já teria conversado com a hoje ministra Simone Tebet, conhecido nome ruralista de Mato Grosso do Sul, em 2017 sobre essa proposta. Mas nesse tempo todo, ela ficou esquecida nas gavetas do poder.
                A mineração em terra indígena tem sido mote dos bolsonaristas que justificam a possibilidade de interesse dos originários pela atividade como meio de vida. Mas, além do alto impacto ambiental, a atividade não é tradicional a eles e pode abrir caminho para ação intensiva e extensa pelos não-indígenas em suas terras.
                A indenização por sobreposição de terras de fazendas em áreas indígenas é, de fato, um problema. Neste caso, a propositura defendida tanto por bolsonaristas quanto pelos ruralistas fala dos chamados casos de boa-fé.
                O problema, porém, é que não há como saber se este ou aquele caso individual derivou de desconhecimento da existência de uma terra previamente demarcada (boa-fé), uma vez que a grilagem de terras é prática corriqueira no Norte e no centro-oeste do país.
                Se aprovada, a indenização de fazendeiros de suposta “boa-fé” na sobreposição de terras em área indígena pode custar à União em até R$ 1 bilhão.  Além do absurdo em si, este valor escancara a gravidade da prática, cuja boa-fé é no mínimo duvidosa, se de fato existiu. Afinal, alegar desconhecimento de sobreposição é fácil.
                Além do tapetão – a vitória indígena no STF marca o fim de um dos capítulos mais importantes do tema indígena. Juristas indígenas e não indígenas, ativistas da causa e analistas sociopolíticos condenavam a tese que, se aprovada, poderia inviabilizar as demarcações após a CF-1988 e vulnerabilizar a maioria dos povos indígenas do Brasil.
                Essa vitória dos cocares não ocorre somente sobre os tratores agrícolas, ela se estende às retroescavadeiras e  os explosivos utilizados pelas mineradoras, que tradicionalmente não economizam nas área de terra a ser minerada e atingem áreas de preservação permanente. Isso significa que elas também que se cuidar.
                Porém, se Tupã levou os ministros a bater o martelo pela inconstitucionalidade do marco temporal, em campo se revela um desafio radicalmente penoso que acomete vários povos indígenas.
                Entre os flagelos, figuram três menores yanomamis amarrados em árvores e ameaçados por garimpeiros que os acusam de roubo de celular e de uma arma (o crime já foi levado ao MPF), o assassinato de Guajajara no Maranhão por grileiros, a violência policial contra Guaranis-Kaiowá no MS e contra os Xavante no MT, entre outros casos no país.
                Notícia da Agência Pública reporta a utilização de drones por homens armados por empresas do agro que fazem papel de polícia com ameaça sobre até sem-terra e indígenas com roças de subsistência na Amazônia.  Este, os demais casos citados – e tantos outros – têm ciência dos ministérios relacionados, da Funai, da PF e do MPF.
                A vitória dá certa esperança aos povos originários sobre seus territórios, enquanto Tupã, vitorioso no tapetão, não tem previsão de descanso. O grande deus indígena novamente se volta aos campos e florestas para vencer, mesmo tão aos poucos e com ajuda judicial, uma guerra iniciada há 500 anos e sem previsão para acabar.

Para saber mais
- https://www.brasildefato.com.br/2023/09/21/com-voto-de-fux-stf-forma-maioria-contra-o-marco-temporal-das-terras-indigenas
https://www.brasildefato.com.br/2023/09/21/indigenas-ameacados-pelo-marco-temporal-comemoram-vitoria-no-stf-agora-da-para-respirar
https://www.brasildefato.com.br/2023/09/20/entenda-a-indenizacao-a-fazendeiros-em-discussao-no-julgamento-do-marco-temporal
https://www.brasildefato.com.br/2023/09/20/validacao-do-marco-temporal-pode-agravar-violencia-contra-os-guarani-kaiowa-temem-indigenas-stf-retoma-julgamento-nesta-quarta
https://www.brasildefato.com.br/2023/09/21/criancas-indigenas-sao-amarradas-e-sofrem-ameacas-de-garimpeiros-na-terra-indigena-yanomami
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/09/21/associacao-cobra-investigacao-sobre-criancas-amarradas-por-garimpeiros-na-terra-yanomami.ghtml
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-09/entidades-denunciam-garimpeiros-que-teriam-amarrado-criancas-yanomami
https://apublica.org/2023/09/marco-temporal-indenizar-fazendas-em-terras-indigenas-pode-custar-pelo-menos-r-1-bilhao/
https://apublica.org/2023/09/segurancas-armados-usam-drones-para-vigiar-e-denunciar-sem-terra-em-belo-sun-e-belo-monte/
----

Correndo para salvar as mulheres

                
Em meio à luta livre sobre a união homoafetiva na Câmara, que rendeu discurso chulo do deputado pastor sargento Isidório¹, o STF se volta – de novo – para julgar um tema que nunca morre: os limites legais da interrupção da gravidez, por cruzamento de dados de duas ações, uma de 2016 e outra do PSOL de 2017.
                Os atuais limites legais brasileiros para aborto voluntário são estupro, risco à vida materna e anencefalia fetal, condição incompatível com a vida acrescentada pelo STF junto a especialistas em saúde, biologia, social e direito.
                Arguição PSOL – foi escrita pelo grupo feminista do PSOL e propõe descriminalização do aborto voluntário em até 12 semanas (estágio pré-fetal).  Baseia-se em estudos publicados em revistas científicas de renome e acrescenta fundamentos sociodemográficos e de saúde que enfatizam sobre ocorrências espontâneas.
                Objetiva combater desigualdades de atendimento médico, a denúncia médica ilegal e a invisibilidade do aborto espontâneo. Seu julgamento pelo STF foi interrompido por vários fatos sociopolíticos relevantes nos últimos anos. Mas a arguição tem um caminho favorável no STF, a começar pelo atual presidente, Luís Roberto Barroso.
                Segundo Barroso, “a criminalização do aborto no 1º trimestre [...] viola vários direitos fundamentais das mulheres” como autonomia, integridade biopsíquica, direitos sexuais e reprodutivos e igualdade de gênero. “Se fosse com os homens, o assunto já estaria resolvido há muito tempo”, finalizou.
                Outros ministros também se mostram favoráveis, diferindo da maioria conservadora do Parlamento. Entre a esquerda progressista se destaca o pastor Henrique Vieira (PSOL), por ser contrário às bancadas da bíblia e dos bolsonaristas ao desenhar um Deus bondoso, plural e inclusivo e defender o acolhimento à mulher que aborta.
                Lacunas – apesar dos avanços, a arguição do PSOL objetiva resolver lacunas, como a desimportância dada aos perigos do aborto espontâneo e a criminalização da mulher durante e pós-aborto – um problema que condena a mulher como ser pensante, de desejos e de ações e conquistas.
                A criminalização por profissionais de saúde pode estar por trás de decisões perigosas ainda comuns, como a prática em clínicas clandestinas ou por conta própria, com uso de certos fármacos alopáticos e chás abortivos.
                Jurisprudência – é aplicada em casos mais incomuns ou excepcionais. Em meninas grávidas por estupro, a causa é geralmente favorável a elas. Mas há de se considerar também a jurisprudência a cobrir casos excepcionais, como interrupção no 2º trimestre gravídico devido a condições maternas (p.e., dilatação do colo uterino). 
                Apesar de já ser um período fetal, o 2º semestre de gravidez também é tão ruim para a gestante quanto para o nascituro, em ocorrência adversa que obriga ao aborto. O feto geralmente morre, e a gestante sofre considerável trauma emocional de perda diante da inevitabilidade do evento, necessitando de assistência psicológica.
                Dados díspares – 1 em cada 7 brancas, e 1 em 5 negras tem aborto (média 6), até os 40 anos. 1 gestante morre a cada 28 abortos fracassados.  A cada aborto legal, SUS socorre 100 malsucedidos. 8 em 10 interrupções são espontâneas. Em 100 gestações, 20 serão abortos espontâneos. O problema é a 5ª maior causa de morte materna.
                Vale acrescentar que, a cada 10 interrupções gravídicas, 8 são casos espontâneos. Daí o maior risco de morte e,  por isso, a urgente necessidade de as autoridades considerarem esse fato com atenção e consciência ética.
                Gestantes menores de 14 anos: os dados são incertos por fatores diversos¹, mas é certo que 62% delas são pobres e 52% não-brancas, segundo o Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN/Min Saúde, 2019).
                Fatores dos abortos – estupro, risco à vida materna¹ (citados no CP de 1940), terapêutico (prova legal de anencefalia fetal, há países que permitem em outros casos), desejo imperioso de interromper gravidez indesejada, e mais raramente, surto psiquiátrico como os de depressão grave não tratada levam a abortos voluntários.
                Síndromes fetais incompatíveis com a vida, ou as da gestante², um mau desenvolvimento genital interno, violência física e forte impacto emocional estão entre os vários fatores de aborto espontâneo. A ideologização que o invisibiliza aumenta a incriminação sobre a mulher e aumenta o risco de letalidade materna: é um feminicídio.
                Reflexões – em parte, a ação do PSOL se debruça na política de combate a elementos como os já citados. Mas vale salientar que isso não basta: deve-se haver uma política pragmática de educação básica que fomente a discussão de gênero nas escolas, atinja as famílias e intimide os preconceitos machistas que alimentam o fascismo.
                A criminalização da mulher é histórica, cultural, religiosa e política. E transcende a questão do aborto. 
Daí a aliança de megaigrejas com os parlamentares extremistas em pautas moralistas que sustentam o machismo patriarcal. Mas, ao contrário do que diz a lenda, não existe a tal “abortista”.
                Não há quem goste de abortar. Essa prática é difícil, dolorosa e arriscada. Mas em muitos casos, é um mal necessário à vida e ao bem-estar da menina ou mulher que, quiçá possa ter um futuro melhor, inclusive, se quiser, conquistar o desejo de uma maternidade saudável e feliz. 
                Mas, para tanto, a educação para a cidadania é a melhor arma. Enquanto ela não se concretiza, corramos para salvar as mulheres com as armas progressistas disponíveis.

Notas da autoria
¹ abuso ignorado ou não confirmado por silêncio forçado da vítima, isolamento, cultura familiar, etc.
² p. ex., a temida eclâmpsia, a síndrome da cardiolipina e outras; gravidez anômala de alto risco, morte fetal.

Para saber mais
-----
                

                

                



















CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

  A GUERRA POVO X CONGRESSO                     A derrota inicial do decreto do IOF do governo federal pelo STF foi silenciosamente comemo...