O frágil terror cristonazifascista
Enquanto a geral assiste atenta às sessões de impropérios exibidos na vigésima primeira versão do reality show BBB e a C19 ataca o povo em festa, lá em Brasília o presidente Jair Bolsonaro assinou tranquilamente quatro decretos relativos à posse de armas pelo cidadão comum.
Tais decretos, segundo mostra a matéria do G1 - Globo de 13/2, versam sobre as modificações de regramentos desde a compra da arma à posse e ao porte das armas: num deles, o cidadão comum poderá ter direito a até seis armas de fogo.
Os bolsonaristas mais abastados se esbaldaram com o fato, enquanto a maioria popular se limitou ao aceno de cabeça ou um joinha, sem máscara nas ruas. Porque aqueles têm poder aquisitivo suficiente para comprar armas legalmente, e estes, só se ilegalmente, e ainda assim não sai nada barato.
A julgar pela fotomontagem e pelo títulos, vocês leitores certamente questionarão, o que tem a ver os decretos das armas do presidente, crime organizado e a intolerância religiosa. Calma, vão ver que têm muito a ver, sem precisar ser diretos.
-> A aliança Neopentecostal-Bolsonaro: breve histórico
O clima pós-Collor deu maior espaço a movimentos e partidos de esquerda. De carona, entram em cena parlamentares pentecostais e neopentecostais. Politicamente opostos, esquerda e evangélicos caminharam lado a lado. O petismo assumiu o poder e a bancada da bíblia se tornou a mais famosa no Congresso.
Com o Centrão (de Lira, Maia, Renan, etc.), a bancada se prostitui com o governo, não importa o líder. E o faz em nome de seus interesses econômicos e, por marketing, das pautas cristocêntricas. Se destaca mais por aí do que nas suas propostas barulhentas, mas irrelevantes ou ridículas.
Irrelevância e barulhos à parte, essa bancada evidenciou o movimento evangélico popular1, que se juntou a grupos de direita nas ruas na era Dilma, em 2013, com apoio da mídia da casa grande a se expressar em lindas palavras. É nesse cenário que surge Jair Bolsonaro.
Deputado veterano, do baixo clero e ligado ao centrão, Bolsonaro era da bancada da bala, mas vagueava pela da bíblia, a defender os valores cristocêntricos e, junto a Malafaia, Macedo e outros do mesmo naipe, formou uma aliança evidenciada no processo de impeachment de Dilma.
A vitória de Bolsonaro em 2018 se deveu, em grande parte, pelo curral eleitoral de púlpito2. Daí se estima que, dos 57 milhões de votos, 20 milhões saíram desse curral, graças ao discurso moralista do então candidato.
Outros pontos conhecidos da aliança neopentecostal-Bolsonaro se evidenciou no discurso da fé acima da ciência, da Bíblia sobre a Constituição, e nas pautas cristocêntricas, como a nova agenda de costumes, considerada relevante pelo governo.
-> Outras alianças
Mas, sempre há alguma sujeira por baixo do belo e límpido tapete vermelho do glamour e poder. E nessa aliança não é diferente não. Até revela coisas piores do que se imagina. A começar pela própria aliança entre igrejas evangélicas e o tráfico no Rio de Janeiro, idealizado pelo pastor Marcos Pereira3.
O motivo pastoral inicial, na esteira da pioneira Igreja Católica de reabilitar criminosos presos, deu lugar a um pacto no qual bandidos soltos evangelizados perpetuam seus crimes, somando intolerância religiosa na área dominada, e/ou guarda de armas em dependências da igreja.
A intolerância religiosa está além das diferenças de crença. A fé afro é parte central da etnografia africana mais ampla, numa identidade histórica do povo negro. E é sobre esse sentido que os grupos criminosos no aval dos líderes pastorais se investem contra. Mas, só localmente.
Essa aliança acima se revelou muito lucrativa para ambos os lados: os pastores têm maior domínio evangelizador para ter mais dízimos, e os criminosos com um seguro depósito de muambas, e lucrando com seu comércio.
No cenário entram as milícias. Defendidas por Bolsonaro, com a eleição deste e de representantes seus no embalo, ganham poder pleno, mesmo sendo criminosas. Entram já articuladas com prefeitura e igrejas evangélicas. No Rio, a aliança se consolidou na gestão de Crivella, aliado do presidente.
A relação com a política ocorre na eleição de representantes em prefeituras e legislaturas, o que se explica em eventuais assassinatos de candidatos a vereador ou vereadores de fato (Marielle foi apenas um entre vários), bem como nas eleições de seus representantes ou aliados.
As milícias diversificam suas atividades: comércios em geral, fornecimento de gás, eletricidade, internet (gatonet), jardinagem, imóveis, segurança em geral, etc. Tanto residentes quanto comerciantes pagam taxas extras por esses serviços.
O poder articulador das milícias surpreende, talvez pela experiência da diversidade de serviços com os moradores das áreas dominadas e junto a instituições importantes como a DPU4, sobre moradias do programa Minha Casa, Minha Vida.
Na aliança entre milicianos e pastores não há menção de intolerância tal como com o tráfico. Mas há pastores que procuram converter os aliados, parte dos quais acata sem deixar de seguir seus crimes.
Na aliança entre milicianos e igrejas evangélicas, não há menção de intolerância religiosa tal como nas áreas dominadas pelo tráfico. Mas, muitos pastores procuram converter milicianos, alguns deles autodeclarados evangélicos, sem deixar de seguir sua carreira criminosa.
Entre as diversas atividades que marcam a carreira criminosa figuram assassinatos de encomenda, tráfico de armas de uso restrito das FFAA, e em alguns locais do Rio, até a narcomilícia, como já foi tratado neste blog.
-> Nisso, o decreto das armas
Em maio de 2019, após a ressaca das eleições e do ano novo, Bolsonaro então manda a público o primeiro dos quatro primeiros decretos que versam sobre a flexibilização da posse e porte de armas por cidadãos comuns. Nesse caso, o decreto suscitou alegria entre os seus apoiadores.
Mas a ficha logo caiu para a maioria pobre dos apoiadores, pelo preço e o fato de não ter mexido em pontos obrigatórios do Estatuto do Desarmamento lulista, como registro de nota fiscal de loja, atestado de bons antecedentes e laudo de plena aptidão mental.
Tais pontos demonstram que, ao contrário dos fakes dos bolsominions, o Estatuto não vedava ao cidadão civil a posse e o porte de arma, desde que com devida autorização assinada por autoridade competente e acatando restrições bem específicas.
Alterações: Número de armas por cidadão civil5 (Estatuto- 2; decreto 2019- 4; agora, 6); Porte (no Estatuto- não; decreto 2019- sem menção; agora- até 6); Laudo de aptidão: antes, carimbo de psicólogo cadastrado na PF; agora, pode qualquer profissional inscrito no sistema de Conselhos de Psicologia.
Apesar do apoio da ala ideológica, o Congresso rejeitou o primeiro decreto, pelos riscos como o aumento de conflitos com armas de fogo por motivo torpe, e o embate pelo excludente de ilicitude nas GLOs (garantia da lei e da ordem) policiais. O novo decreto adensa quatro documentos.
Que também corre risco de rejeição. Há traços de ilegalidade a indicar a ignorância das autoridades em segurança pública. "Assegurar o porte de arma é apenas mais uma ilusão de segurança [...] ao longo da história, empresários e gestores já venderam inúmeras promessas de garantia de segurança". O risco de veto pelo congresso é grande.
Adicionando-se a dois planos já postos nesse blog (tirar a responsabilidade estadual pelas polícias para formar um "corpo pretoriano", e o treinamento de jovens favelados para segurança pública), os decretos são vistos por analistas de segurança e juristas como extensão autocrática do governo para controle social.
-> Reflexão final
A reflexão final não é em si complicada de se entender. Bolsonaro deseja impor um novo formato de nação, com uma sociedade ultramilitarizada e armada, cristocêntrica, cristofascista, heteronormativa, racista e patriarcal em seu modo mais agudo.
Para isso, ele coloca em prática, na medida do possível, a negação da ciência que tem resultado em tantas mortes pela C19 e sem um plano claro de vacinação; e em paralelo, na calada, Guedes avança nas suas reformas de destruição do Estado cujos textos já tramitam no Congresso.
À sua disposição há ideólogos, travestidos de parlamentares, como grupelhos correlatos ao de Sara Giromini, milícias e pastores neopentecostais. Todos com sangue nas ventas e nos olhos a destilar ódio e violência, em nome do Deus da destruição pelo renascimento.
Mas, o bolsonarismo talvez não esperasse enfrentar instituições que, mesmo não funcionem a nosso contento, ainda possuem solidez e contam com cabeças honrosas e de notável saber jurídico. Fora que ele mesmo seja, na real, um movimento ideológico truncado e confuso, sem solidez prática.
Até mesmo as minorias religiosas não cristãs, como as da perseguida fé afro, são mais sólidas do que os ideais bolsonaristas. Elas estão na raiz do constructo da própria nação brasileira, em cores e ritmos que ultrapassam fronteiras das negações de qualquer natureza, cristã inclusive.
A destruição só é plena quando é tão ampla e global quanto o macrossistema capitalista que domina o mundo, das ditaduras às mais plenas democracias. O tradicionalismo que Bolsonaro ainda sustenta se restringe ao Brasil e perdeu, neste ano, seu maior sustentáculo, o trumpismo.
A prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira a mando do STF indica que o bolsonarismo é um cão a morder a rodar em si mordendo o próprio rabo. Ele pode sobreviver por muito tempo como uma ideia, mas só. Como política, ele aos poucos se pulverizará como uma fia poeira soprada pelo vento da História.
----
Imagens: Google (fotomontagem: autoria)
Notas da autoria
1. Fruto da redemocratização, assumindo aos poucos papel eleitoral importante, com seu clímax a partir do petismo.
2. Com Malafaia nas marchas para Jesus, Macedo nas "catedrais" e Pastor Everaldo no batismo no rio Jordão (Israel).
3. Até prova em contrário, ele não tem participação no pacto com criminosos nos novos favores trocados que se seguiram.
4. Defensoria Pública da União
5. PMs, agentes penitenciários, membros do MP e de tribunais.
Para saber mais
- http://www.ihu.unisinos.br/188-noticias/noticias-2018/584446-foram-os-evangelicos-que-elegeram-bolsonaro
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2019/12/igrejas-em-presidios-uma-relacao-de_15.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2021/01/bolsonaro-e-as-pms-prenuncio-de-golpe.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/12/tradicionalismo-politica-e-misticismo.html
- https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm
- https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/milicias-do-rio-tem-parceria-com-policia-faccoes-e-igrejas,3bde5cb8c088913dfba3cd70bfd74e42jmtxsc4z.html
- https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/02/15/povo-nao-esta-vibrando-por-armas-como-diz-bolsonaro-e-calafrio-de-covid.htm
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/13/veja-o-que-muda-com-os-novos-decretos-de-bolsonaro-sobre-armas-de-fogo.ghtml
- https://www.justificando.com/2019/05/28/quais-sao-os-reais-problemas-do-decreto-que-flexibiliza-a-posse-de-armas/
-
Nenhum comentário:
Postar um comentário