quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Análise: o fim de Bolsonaro pode ser Haia. Ou não

        Enquanto a entidade não-governamental All Rise, na Áustria, apresentava um vídeo-campanha sobre a ameaça à vida humana global por conta da má política ambiental do governo Bolsonaro, o relator da CPI da C19, o relator, senador Renan Calheiros, apresentou à tribuna os vários volumes de seu caprichado relatório, onde indicia 80 nomes, entre eles o presidente Bolsonaro.
        Antes de apresentar o vídeo que já foi colocado nas redes sociais para visualização, a equipe da All Rise, formada por intelectuais altamente gabaritados, havia protocolado uma denúncia contra Bolsonaro por crimes contra a humanidade com uso de ecocídio. 
        O documento se referenciou em pesquisa ampla e completa sobre as relações estreitas entre a biosfera e a vida humana: além de afetar a biodiversidade, o ecocídio afeta profundamente a saúde e ameaça à vida humana em escala global. Tudo porque o estudo afirmou que a nossa Amazônia agora mais emite do que absorve CO2, o que aumenta a concentração dele na atmosfera.

Os crimes de Bolsonaro na CPI

        Inicialmente o relatório da CPI incriminou Bolsonaro em 11 crimes, mas dois foram refutados por falta de consenso: genocídio e homicído. O que, para juristas, não mitigou o rigor investigativo da comissão. A seguir, os crimes listados, conforme artigos do Código Penal e na Lei 1079/1950:
        Epidemia resultando em morte (Art 267 do CP)- O presidente atuou premeditadamente ao atuar pela disseminação do Corona, com aglomerações diversos cantos; omissão reiterada como recusas à compra de vacinas oferecidas e ênfase no ineficaz e perigoso kit-C19.
        Infração de medida sanitária preventiva (Art 268 do CP)- reiteradamente, Bolsonaro promoveu aglomerações, abusou de falácias contra as medidas preventivas (uso de máscaras e de álcool gel), e afrontou governadores e prefeitos. com aglomerações e ataques às medidas restritivas.
        Charlatanismo (Art 283)- defesa reiterada de tratamentos ineficazes com suposta "cura infalível" (o tratamento precoce com o kit-C19) e discurso antivacina, contrariando a ciência.
        Incitação ao crime (Art 286)- em seus discursos, ele incentivou os populares a violar as medidas sanitárias impostas por autoridades regionais, e invadir hospitais supostamente vazios para mentir.
        Falsificação de doc particular (Art 298)- Bolsonaro inventou que o TCU superestimou os óbitos pela C19, apresentando um suposto doc com timbre do tribunal, que depois negou a autoria do texto, que foi, na prática, feito por um auditor bolsonarista no TCU, Alexandre Marques.
        Emprego irregular de verbas públicas (Art 315)- dar a um recurso público destino diferente do legal. O presidente (mentor) e seu ex-MS Pazuello (operador) empregaram volumosos recursos para produção e compra da cloroquina mesmo após comprovada sua ineficácia contra a C19.
        Prevaricação (art 315)- Bolsonaro não fez nenhuma medida para conter irregularidade de compra da vacina Covaxin (e outras), que foram canceladas após descobertas pela CPI. E ele ainda retardou o quando pôde a aquisição de vacinas, que acabou sendo iniciada pelos governadores.
        Crimes de responsabilidade (Lei 1079/1950)- o relatório da CPI reconhece duas modalidades, a violação intencional de direito intocável à vida, e incompatibilidade com a dignidade e decoro do cargo. A punição é o impeachment, sobre o qual, vale lembrar, são mais de 120 pedidos que o venal Arthur Lira se recusa a analisar.
        Na violação, Renan atribui como descompromisso "com o combate à pandemia de C19 e, em consequência, com a preservação da vida e da integridade física de milhares de brasileiros"; e na incompatibilidade com o cargo, a repetida conduta de ofensas chulas, especialmente contra jornalistas mulheres.
        Crimes contra a humanidade- conjunto de crimes que envolve extermínio, perseguição e outros atos desumanos, e se baseia na legislação internacional (Estatuto de Roma). O caso em tela está em b (extermínio), h (perseguição), e k (atos desumanos intencionais).
        Em 'extermínio' está a crescente privação de acesso a alimentos e remédios para eliminar parte da população. 'Perseguição' é a violação de direitos fundamentais de identidade de grupo ou coletivo. No caso em tela, Renan se refere ao caos na saúde em Manaus, que se tornou um "laboratório humano".
        Reflexos macabros- Caos este que, na real, se estendeu a outras regiões onde faltou oxigênio, respiradores e anestésicos para intubação, obrigando profissionais de saúde a amarrar os pacientes nos leitos para executar processo tão doloroso e traumático quanto inevitável para tentar salvar vidas.
        Vale mencionar a atuação da médica Mayra Pinheiro, responsável pelo hoje desativado TrateCov e por mandar administrar cloroquina e ivermectina em casos suspeitos de C19, incluindo grávidas e até bebês, no auge do caos em janeiro, evidenciando a intenção de instaurar um laboratório humano. Isso, somado aos testes da Prevent Sênior e Hapvida, e Flávio nos hospitais federais fluminenses.
        Outra evidência apontada por Renan é a de "ataque sistemático [...] contra a população indígena", em especial por Bolsonaro, por "medidas [...] concretas e de omissões deliberadas que resultaram no número de contaminações e de mortos entre as populações indígena proporcionalmente superior ao que atingiu as populações urbanas". 
        Daí a intenção demonstrada pelo senador de incluir o crime de genocídio, refutado pela maioria dos senadores. Outro crime retirado da pauta foi o de homicídio.

Quais crimes de Bolsonaro interessam mais ao TPI?

        O Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, Holanda, foi fundado em 2002 através do Tratado de Roma, que se embasa na legislação internacional, e fiel à Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948). O Brasil é um dos signatários dos dois documentos, se sujeitando, portanto, a seus desígnios.
        Apesar de eventualmente acusado de violações de direitos fundamentais, o Brasil nunca teve um governante de fato denunciado, nem mesmo na ditadura militar. Bem, mas nesse caso, vale mencionar interesses de nações como os EUA, que a História explica muito bem.
        Entre os juízes, o TPI teve uma brasileira, a juíza do TRF3 Sylvia Steiner, que atuou de 2003 a 2012, período de atuação dos juízes nomeados na entidade. Ela acompanhou a CPI da C19 e a minúcia caprichosa dos detalhes do relatório elaborado por Renan Calheiros.
        Segundo Steiner, a retirada de homicídio e genocídio não mitigou a gravidade das evidências da conduta comprovadamente criminosa de Bolsonaro, apontado o relatório como mentor intelectual por trás de tudo que foi operado com ajuda dos outros 79 indiciados. 
        Ela explica isso pela menção clara de crimes contra a humanidade, a mesma acusação aparente em denúncias já protocoladas à entidade. Pois essa categoria de crimes é bastante ampla, podendo incluir ou não o genocídio, por si um homicídio em massa por pouco tempo, em tempos de guerra ou não.
        Aliás, em se tratando de guerra, vale rever seus conceitos, pois ao violar o direito à vida em várias formas, inclusive impedindo acesso à segurança alimentar e à saúde, e perseguindo certos coletivos, Bolsonaro travou guerra contra seu próprio povo desde o início, e ao usar a C19 para o extermínio. 
        Em relação à denúncia entregue pela All Rise, Steiner explica que "ecocídio não existe para o TPI", daí a ONG ter apontado "crime contra a humanidade" ao explicar, via estudo, a influência da degradação da Amazônia e outros biomas brasileiros sobre a saúde e a vida humana em escala global.

Enfim...
        A julgar pelas explicações de Steiner, a CPI acertou, batendo com conceitos de denúncias já entregues ao TPI: por sua abrangência circunstancial e operacional, crimes contra a humanidade são bem mais graves do que genocídio e homicídio isolados que, aliás, estão implícitos nas evidências.
        E, por isso tudo acima exposto, o que antes era considerado improvável se torna bastante provável que o destino de Bolsonaro (e sua caterva) seja Haia. Claro que há outros tiranos na lista, mas o caso brasileiro chama atenção pela diversidade e amplitude dos meios utilizados para seus interesses.
        Até por conta da morosidade da justiça brasileira, que se perde em interesses particulares de outros e disputas de poder, típicas na cultura dos altos escalões. O TPI talvez seja mais rápido, embora toda reserva seja necessária quanto à expectativa pela sua execução. 
        O que todos desejamos, com ou sem pressão do grande mercado e outros poderes, é justiça em nome de mais de 600 mil brazucas mortos pela C19, dos povos da floresta, da floresta e da sobrevida do Estado brasileiro.

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Imagens: Google (fotomontagem da autoria do artigo)

Notas da autoria
1.

Para saber mais
- https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/afirmacao-de-bolsonaro-sobre-vacina-e-aids-deu-ultimo-gas-a-cpi,30d887e2e697b8990972efa2994063bdayp4p4mh.html
- https://www.jb.com.br/pais/politica/2021/10/1033570-entenda-os-crimes-atribuidos-a-bolsonaro-pela-cpi-da-covid.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2021/06/analise-vacinoduto-e-reforma-do-estado.html


 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

ANÁLISE: a fome pelo agronegócio - e os agrotóxicos

 

        Não faz muito tempo que o canal de esquerda Meteoro Brasil, no Youtube, apresentou um vídeo sobre a relação entre o uso de agrotóxicos e o aumento da situação de fome no Brasil. A dupla jornalística Álvaro Borba e Ana Lesnovsky, que capitaneia o canal, apresentou essa relação de forma interessante, que interdepende a biota, o meio abiótico e a ação humana. E aqui caberá mais uns adendos. 

Evolução da agricultura

        Definida como o conjunto de atividades para a produção alimentar, a agricultura se iniciou no Neolítico inferior (±15 mil anos) e por muitos séculos seguiu os ciclos sazonais: alguns alimentos eram de primavera-verão, e outros de outono-inverno, daí a baixa produtividade, que sacrificava os mais pobres para alimentar as classes medianas, religiosos, nobres e governantes.
        Mais tarde, com as descobertas químicas, em especial na orgânica, e depois na biologia (genética) no século XIX, a ciência abriria portas para atender ao desejo humano de aumentar a produtividade agrícola para poder alimentar maior número de pessoas. Com os primeiros experimentos com plantas tóxicas, surgiriam os primeiros agroquímicos.
        Tais compostos eram extraídos de plantas capazes de repelir ou matar animais daninhos e parasitas na lavoura e na pecuária, respectivamente. Da planta Piretrum derivariam os piretroides sintéticos dos inseticidas atuais, e das usadas para o gado viriam os antiparasitários de hoje. Depois viriam os herbicidas e, finalmente, os antibióticos.
        O surgimento secular da indústria química e farmacêutica antecede a de automóveis e tratores. Estes vieram para ajudar os agroquímicos, que seriam aspergidos nas culturas pelos primeiros pulverizadores. Surge aí a agricultura mecanizada, que gerou empregos no campo. O melhoramento genético na lavoura e pecuária produziu variedades mais resistentes à ação do tempo e a doenças, e ainda mais produtivas do que as originais.
        Tudo isso gerou uma simbiose econômica, que refletiu no aumento considerável da produtividade agrícola, e daí, na lucratividade das indústrias envolvidas. Com os posteriores investimentos públicos, a imagem do produtor rural humilde, com enxada ou arado, cedeu lugar ao chapéu de latifundiário bordado com o cifrão da riqueza: surge o agronegócio (agrobusiness, em inglês).
        Agronegócio- deriva da ‘Revolução Verde’, como foi batizado o boom agrícola ocorrido nos anos 1980. A julgar pelo nome, ele surge para gerar divisas de grande volume, através da megaprodução visada para exportação e importação. Hoje ocorre no mundo todo, com forte desenvoltura em países em desenvolvimento – as explicações virão.

Um paraíso agrícola chamado Brasil

        "Em se plantando, tudo dá". O Brasil é a terra “abençoada” pela natureza por ter até três colheitas anuais. A tropicalidade climática reinante permite maior disponibilidade alimentar. Até hoje, a maior parte da patuleia se alimenta do oriundo de produtores de pequeno e médio portes, em grande parte cooperativados, que também usam agroquímicos e tratores para produzir mais.
        Embora alguns produzam o suficiente para exportação (geralmente grãos), a maior parte se volta para o mercado interno. A insegurança alimentar deriva da grave desigualdade originada de más políticas econômicas, e não por suposta indisponibilidade de alimentos: eles estão disponíveis, mas muitos não têm acesso.
        Mas, como país estratégico no cenário econômico global, o Brasil se tornou também um paraíso para o agronegócio que, por seu turno, não é unânime em matéria de opinião popular e de analistas. Até por conta de suas consequências socioambientais. Essa divisão opinativa tem suas razões, a serem bem explicadas a seguir.

        O agro é tech, mas não é pop- No capítulo da política fundiária, a Constituição de 1988 prevê o uso social da terra, que se define a destinação para uso alimentar para a nação, geração de empregos no campo e permitir uso de terras improdutivas por assentados visando a produção, sem prejuízo do meio natural, público e privado.
        Mas, isso esbarra na cultura do latifúndio, sintoma histórico do elitismo. A elite brazuca é originalmente rural e parte dela ainda o é: são os ruralistas do agrobusiness, que empregam jagunços para protegerem suas terras e até grileiros para apropriação indevida de outras terras visando expandir sua produção.
        Daí, ao contrário dos pequenos e médios produtores, a elite rural não faz bom uso social de suas terras, e são frequentes as denúncias de invasão ilegal (e violenta) de terras públicas preservadas (indígenas ou não) e de posseiros e assentados. Por isso, cresce a pressão sobre aqueles que alimentam a patuleia nacional.
        A grande mídia apoia sem pudor o agro como o grande propulsor da economia nacional, como forma de angariar entre os cidadãos a impressão de termos “a melhor agricultura do mundo”. O Brasil tem, sim, vocação agrícola imensa, mas vale refletir com frieza sobre as consequências da realidade por trás do agronegócio.
        Sociais- são vários: emprego de violência no campo (expulsão ou assassinatos diversos para apropriação indébita); mão-de-obra trabalhadora em situação irregular (sem EPIs, sem contrato trabalhista) ou escrava (sem alimento ou água, e exposição plena a animais perigosos por falta de abrigo adequado). Famílias expulsas de suas terras migram ou se agregam em movimentos organizados como MST para sobreviver; miséria e fome.
        Ambientais- em grande escala, degradação do meio físico (consumo de água e outros, incêndios, destruição de biomas para expansão ilegal de pasto ou plantio, mitigação da biodiversidade), químico (grande contaminação da água e do solo por agroquímicos), e climático (maiores emissões de gases-estufa como CO2 e metano). O agro é um dos fatores da progressiva savanização da Amazônia.
        Os agroquímicos são potentes contaminantes ambientais, daí serem agrotóxicos. E para Bolsonaro, quanto pior, melhor: mais de 500 deles, proibidos no resto do mundo, foram liberados aqui. E se prejudicam o meio ambiente, ferram a nossa saúde, afetando vários sistemas, principalmente o nervoso, o digestivo (hepatopatias), e podem ser carcinogênicos e até abortivos.
        Sim, abortivos. Em 2020 a mídia chegou a publicar alguns casos de abortos espontâneos, a princípio sem se saber do fator. Após minuciosa análise dos casos, como residências próximas a grandes campos de soja e outros ícones do agro, se soube da causa: o glifosato, agrotóxico muito apreciado pelos ruralistas.
        Estudos apontam que o Brasil perdeu até 16% de água doce em 30 anos, e o ecocídio de Bolsonaro pode estar acelerando o processo: os recordes destrutivos ocasionaram fenômenos climáticos incomuns neste ano, como secas prolongadas, tempestades de areia e irregularidade de distribuição e concentração de chuvas, com sérias implicações na produção alimentar.
        Econômicos- há duas linhas de análise: nos mercados destinatários e na disponibilidade alimentar.
        Sendo o principal mercado o externo, o que fica vai para polos industriais e o comércio. Os preços dos produtos afrontam a economia popular, mesmo na queda de exportações, e há locais onde “sobra gado e pasto e falta gente”.
        Na outra linha analítica está a relação disponibilidade alimentar e status ambiental e climático. É sabido que os fenômenos já citados afetam a produtividade regional, que poderá se tornar nacional se nada for feito para barrar o problema. E quanto menos disponível, mais caro, e com isso, mais miséria, fome e doenças.
        Já existem estudos que apontam haver uma íntima relação entre o uso de agroquímicos e as alterações ambientais que, pois muitos deles, mesmo tendo outras finalidades, afetam, direta ou indiretamente, as culturas. Em dois sentidos: os efeitos na bioquímica dessas culturas, levando à sua alteração genética ou morte; e a ação sobre insetos e outros animais benéficos.
        Por mais seletivos que sejam para eliminar as ervas daninhas, os herbicidas, em excesso, afetam as próprias culturas, podendo impactar a disponibilidade alimentar e macroeconômica. Eventos climáticos negativos apenas potencializam o estrago desses agroquímicos.
        Os inseticidas diminuem populações de insetos daninhos, mas também intoxicam ou matam os que mantêm as culturas pela polinização, ou esparrame das sementes por fazes, patas ou bicos. Apesar de mais efetivos do que o controle biológico, esses agroquímicos minam a biodiversidade por afetar animais que comem os daninhos.
        Os fungicidas são igualmente perigosos, pois não são muito seletivos, minando também fungos benéficos à proteção das culturas e à fertilidade dos solos, o que também contribuem contra a biodiversidade.

        Nessa reflexão sobre os males dos agroquímicos, vale ressaltar que, se usados em quantidades menores, eles podem ser inócuos à saúde humana e não afetar tanto a biodiversidade e, em logo prazo, a disponibilidade alimentar. Só não ajudariam a minimizar ou combater a violência e as irregularidades no campo.
        Pois nesse campo, entra outro assunto de extrema relevância, que o governo fez questão de engavetar: a reforma agrária. A CF/1988 faz a sua parte. A grande mídia é também culpada ao omitir o protagonismo dos grandes ruralistas no ecocídio, na posse indébita de terras e de toda sorte de violações no campo e à natureza.
        É aí que o agrobusiness mostra a sua verdadeira face: ele não tem nada de pop, ele mata.

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Imagem: Google

Para saber mais
- https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/agrotoxicos
- https://exame.com/economia/imagem-do-brasil-no-exterior-preocupa-representantes-do-agronegocio/
- https://reporterbrasil.org.br/2020/07/como-o-agronegocio-atua-para-garantir-a-pulverizacao-de-agrotoxicos-pelo-ar/

        

Análise: Brasil Paralelo e a captura ideológica nas periferias

 

        Recentemente, mídias grandes como as paulistas Folha e Estadão reportaram, em tom otimista, sobre uma suposta ação social de amplo alcance a ser empreendida em cerca de 300 comunidades pobres urbanas. Além de doações, essa ação também contaria com eventos culturais e curiosidades. Bem, a princípio todo otimismo tem sentido quando se trata de solidariedade.
        Mas, quando os atores são identificados, toda reserva se faz necessária. Afinal, escaldado pelo sofrimento histórico, o povo já sabe: "o milagre quando é muito até o santo desconfia". Ainda mais num país como o Brasil, onde os mais ricos sugam dos mais pobres até as últimas gotas. Daí, algumas mídias independentes têm lançado nota desconfiada acerca desse lance.
        Na imprensa on-line, uma que se destaca é o Diário do Centro do Mundo, conhecida mídia de esquerda, e alguns canais disponíveis em redes sociais.
        Entre os canais do Youtube, um dos que se destaca é O Historiador, apresentado pelo sergipano Carlito Neto, historiador e filósofo cursando sua terceira faculdade (Direito) e especialista em Ciência Política. 
        No citado canal ele expõe suas análises políticas, e num de seus vídeos ele identifica os atores da elogiada ação, em tom de denúncia: são o Brasil Paralelo e a G10. Para ele, por trás dessa generosidade de grande porte há duas intenções, o lucro e outra mais profunda, uma vez que o Brasil Paralelo é bem conhecido no Youtube.

G10 e Brasil Paralelo

        Segundo as mídias, a G10 é uma organização social (OS) tida como “filantrópica”, por seus gestores que, quando indagados sobre se juntar ao Brasil Paralelo, se limitaram a dizer que era “pra difusão informativa e cultural aos jovens carentes”. A emenda saiu pior do que o soneto.
        Pois bem, na saúde elas atuam como fornecedoras terceirizadas de recursos humanos qualificados. Mas, também são citadas em várias denúncias de irregularidades financeiras, pois seus gestores são políticos e/ou empresários, em geral estreitamente ligados a políticos. Todos compartilham ética bem duvidosa.
        Como a Associação Filantrópica Nova Esperança, uma das Oss em saúde no Rio, cuja receita quintuplicou em 2 anos, e seus gestores têm estreita relação com o senador Flávio Bolsonaro, por sua vez acusado de comandar “rachadinhas” (peculato, corrupção) com assessores, e sabidamente ligado a milicianos. E, também, ligado à cúpula da G10 e, claro, do Brasil Paralelo.
        O Brasil Paralelo é um canal conhecido no Youtube há anos, mas também atua em outras redes sociais como Twitter e o Instagram. Com efeitos audiovisuais, tem narrativa com lógica própria e afirmações e negações categóricas sobre fatos e pessoas sem permitir margem a dúvidas e questionamentos.
        Apresentado pelo astrólogo vidaloka Olavo de Carvalho e outros, o canal exalta figuras, ditadoras ou não, da direita capitalista, e deprecia fatos e nomes tidos como de esquerda ou comunistas pela grande mídia. Há um cristocentrismo notório e desprezo à diversidade. E, detalhe, Olavo é guru da família Bolsonaro.
        Confusão mental- Considerando-se essa soma de característica, o Brasil Paralelo é tratado pelo filósofo e youtuber Paulo Ghiraldelli como meio de disseminação de confusão mental, que ele chama de DCP, ou deficiência cognitiva programada, como resultado da intencional desconstrução da veracidade dos fatos sociopolíticos.
        Ghiraldelli assinala que o canal traz desinformação anticientífica (terraplanismo, C19 não existe, discurso antivacina e pró-tabaco[1]), e violência ideológica, disseminando falácias como “ditadura comunista” do PT, chip chinês comunista e “globalismo marxista”, tudo isso usado em fake news que ajudaram a eleger Bolsonaro.

Esquema em favelas: reflexões
        A denúncia de Carlito Neto em seu vídeo concorda com a narrativa de Ghiraldelli sobre a ideologia e conteúdo do canal Brasil Paralelo, revelando a intenção de doutrinar ideologicamente os favelados, usando a ação caritativa da G10 para angariar confiança e consequente aceitação das desinformações.
        Carlito Neto ainda deixa evidente que canais de esquerda como Henry Bugalho, Plantão Brasil e outros em conjunto já ajudam os favelados. Se sabe que até Felipe Neto, que não é esquerda, faz suas ações sociais. Todos sem alarde e sem promessas vãs.
        Carlito menciona que cerca de 300 favelas estejam nos planos de alcance da dupla, mas sem especificar cidade ou região. Vale conferir isso, pois a julgar pela teia de ligações políticas, as maiores favelas dos principais redutos bolsonaristas do país podem ser os alvos diletos dos operadores.
        Nisso, se chega à ideia de que, de todos os redutos bolsonaristas, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina se tornam os pontos cruciais a partir dos quais os tentáculos se espalhariam para as demais regiões. No Rio, milicianos podem dar uma forcinha extra na jogada, nas grandes e populosas áreas de domínio.
        Já operante- como demonstram as matérias das mídias paulistas, é possível que a dupla já esteja em ação, sem aviso para não dar alarde. Talvez por isso, curiosamente, alguns líderes locais não saibam. É o que veio mostrar a matéria do Diário do Centro do Mundo, na qual, indagado sobre o tema, o líder da Associação dos Moradores de Paraisópolis, em Sampa. Estranhou: “quem é esse Olavo?”.
        Esse desconhecimento pode parecer estranho, mas faz sentido pleno, uma vez que evidencia a natureza insidiosa da atividade e as segundas intenções por trás do slogan caritativo e socializante que publiciza a ação da dupla G10-Brasil Paralelo sobre os jovens mais carentes e religiosos, a parcela mais impressionável das patuleias faveladas.

        Verificando-se o encaixe das diferentes fontes informativas, inclusive dentro do próprio Youtube, onde inúmeros vídeos do canal Brasil Paralelo ainda estão disponíveis, é fácil concluir que tanto Ghiraldelli quanto Carlito Neto têm razão sobre a orientação e as reais intenções da dupla com as populações periféricas.
        E a ação da dupla pode ser apenas um reforço de peso: em palestra, o autor da Teologia da Libertação Leonardo Boff disse que foi nas esquinas das periferias que as bases do bolsonarismo encontraram os pontos mais férteis para crescer e se consolidar. Sim, faz sentido.
        Não que os cidadãos favelados apoiem a associação entre entes tão distintos quanto os religiosos, outros filantrópicos, empresas e políticos por uma ideologia violenta e destrutiva como o bolsonarismo e correlatos. Mas sim, que os mais carentes são mais crédulos e vivem sob pressão do crime organizado que se liga a tal movimento.
        As favelas, portanto, são os postos-chave de disseminação de ideologias. E, não por acaso, ante o avanço de Lula na liderança das expectativas para 2022, que o Brasil Paralelo e o G10 vão disseminar novos delírios para a captura das periferias contra a volta da “esquerda”.


[1] Para Olavo, o prejuízo clínico pelo tabaco é uma mentira para desacreditar a indústria e o produto, apesar do próprio sofrer de DPOC devido ao vício.


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Imagem: Google

Para saber mais
https://www.youtube.com/watch?v=w8pm1ITix6o (denúncia de Carlito Neto, O Historiador)
- https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gabriel-kanner/2021/10/parceria-entre-brasil-paralelo-e-g10-favelas-une-propositos-e-desperta-esperanca.shtml
- https://www.diariodocentrodomundo.com.br/olavo-paraisopolis-brasil-paralelo/

domingo, 17 de outubro de 2021

Análise: dinheiro terceirizado

 
        2019: o governo Bolsonaro anunciou a privataria de estatais, incluindo a estratégica Casa da Moeda do Brasil (CMB), pela alegação do ministro Paulo Guedes de que ela "fará a economia brasileira decolar", mesmo com o avião econômico dando ré. Servidores reagiram contra, e especialistas apontaram riscos econômicos graves.
        2020: quanto mais Guedes prometia a decolagem, mais ré a economia dava. Com a sindemia de C19 grassando ao bel prazer presidencial, a privataria ocorria por baixo dos panos ferrando a economia. A CMB ficou no abafa até divulgarem a cédula de R$ 200. Escaldado, o povo intuiu a hiperinflação por perto.
        Essa cédula nunca chegou aos nossos bolsos. Mas, dezenas de maços dela foram encontrados pela PF nas cuecas de um senador bolsonarista. Em seguida, suspenderam a sua produção por motivos em sigilo. Mas já se sabe da procedência não usual do papel-moeda e da tinta. De qualquer forma, nada a ver com o traseiro do senador.
        2021: com a privataria dos serviços públicos como tona da PEC32 (reforma administrativa), que por sua vez avança no legislativo deixando servidores em alerta máximo, o Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (CPPI) recomendou a retirada da CMB da lista do Programa Nacional de Desestatização (PND). A solicitação foi publicada no DOU1 de 21/9. 
        O governo terá que editar decreto autorizando a retirada. Até o momento não foi encontrada fonte sobre o decreto, se foi retirada ou não. Tal como especialistas da FGV, o citado CPPI apontou os mesmos riscos da privatização da CMB: na economia e maior vulnerabilidade ao descontrole da falsificação.

Breve história da CMB

        A CMB foi fundada em 8/3/1694 pelos administradores coloniais da Coroa Portuguesa em Salvador, para fabricar moedas com ouro da colônia. O primeiro cunhador, José Berlinque, foi substituído pelo ourives baiano Domingos Ferreira Zambuja. A CMB foi transferida para o Rio de Janeiro em 1699, para Recife em 1700, e volta ao Rio, desta vez em definitivo, em 1702. No século XX surgiram sedes em MG e DF.
        Logo a CMB virou símbolo do Brasil independente e soberano, tornando-se o fabricante oficial da moeda nacional. Em 1843, produziu o primeiro selo postal das Américas e o terceiro do mundo, o Olho de Boi. Até hoje ela fabrica os selos postais, além de moedas comemorativas.
        Há locais que possuem acervo histórico de moedas nacionais fabricadas pela CMB. Entre esses locais, se destaca a cidade de Juiz de Fora (MG), com o Museu do Banco de Crédito Real, em prédio fundado no II Império. Aberto para visitação pública nos dias úteis, este Museu tem valioso acervo histórico datado desde o Império.

Segurança 
        Com o tempo, a segurança se tornou uma preocupação na fabricação de cédulas de dinheiro, ao ponto de, hoje, haver tecnologias a produzir mecanismos de segurança contra falsificação, estendidos aos selos e documentos especiais que são remetidos a outras empresas.
        A falsificação de dinheiro é crime de ocorrência eventual, tipificado nos arts 289 a 292 do CP2, punível com 2 a 15 anos de cadeia e multa, dependendo da natureza e contexto. O cidadão de boa-fé que porventura receba e circule dinheiro falso também pode ser penalizado em até 3 anos de cadeia e multa. O art. 291 trata de porte e posse de apetrechos para falsificação.
        Já deparamos com várias notícias de flagrantes de grandes volumes de dinheiro falso. Mas, não é comum, até prova em contrário, o envolvimento da classe política. Aliás, quando o agente político é envolvido, o crime é mais grave, pois o político é, essencialmente, um agente público, e seu crime tem natureza privada.

Caso da cédula de R$ 200

        Em agosto/2020, correu uma licitação sortear empresa fornecedora de tinta e papel-moeda para a impressão de novas cédulas. Por ordem do governo, a empresa vencedora foi mantida em sigilo por um tempo por motivos de segurança para evitar crime de falsificação. Pela legislação, os produtos precisam ter segredo industrial (segurança química). 
        A circulação da cédula de R$ 200 foi anunciada em setembro/2020. Em outubro, Bolsonaro falou em live sobre o assunto: "ela foi feita por falta de papel-moeda". Mas, a explicação para a ausência da cédula circulante foi outra: "pra evitar uma corrida aos bancos, antes não podia falar, agora posso". Geral não se atentou na falta de nexo da fala, mas outros fatos logo viriam para dar sentido.
        O senador bolsonarista Chico Rodrigues (DEM-RR) foi flagrado com a bunda grande e quadrada em seu apartamento pela PF. Na averiguação. foram encontrados vários maços de cédulas de R$ 200. Alegou inocência, mas deixou a vice-liderança do governo no Senado, exaltando Bolsonaro como "grande líder", soando mais como exposição do presidente no escândalo.
        Em paralelo, dois fatos: a solicitação do MPF para apurar irregularidade no transporte de materiais na sede carioca da CMB após denúncia da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) em São Paulo; e a ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU) para suspender a produção das cédulas de R$ 200. Isso, enquanto a patuleia zoava com a bunda do senador.
        Na denúncia da ABCF, a Ceptis venceu licitação para fornecer tinta de impressão das cédulas de R$ 200, mas reclamou do fornecimento ilegal de sua tinta pela CMB à concorrente Sellerink. A ABCF reuniu documentos, e procurou o MPF-RJ e o Núcleo de Repressão à Falsificação de Moeda da PF em Maringá (PR) para investigar os fatos, que podem abrir as portas para a falsificação.
        Em seguida surge a ação pública da DPU para suspender a produção das cédulas de R$ 200 devido ao descumprimento da Lei de Inclusão: as medidas das cédulas eram idênticas às da de R$ 20. Pessoas com deficiência visual distinguem valores ao diferenciar os tamanhos.
        Como não houve alarido público pela mídia sobre esses assuntos, a geral acreditou que a parada da produção estaria ligada ao escândalo de corrupção envolvendo o supracitado senador, e às notícias de Paulo Guedes em grotesca brisa loka de recuperação da economia no trimestre final de 2020.

Enfim, será uma forçada de barra para a privatização? 

        A licitação de empresa fornecedora de matéria-prima para confecção de dinheiro físico é um meio legal, alternativo à privatização. Mas, quanto à confecção das cédulas de R$ 200, os meios utilizados deixam no ar uma forte sensação de suspeita.
        Suspeita essa que recai diretamente sobre o governo federal, uma vez que o sigilo relacionado aos envolvidos em irregularidades advém de ordem direta do Executivo. O sigilo veio, dessa vez, sobre o fornecedor da nota de R$ 200.
        É aí que a coisa pega. A CMB sempre teve o mister de lançar dinheiro novo e produzi-lo, mesmo que a tinta e o papel-moeda sempre fossem fornecidos por empresa sorteada em licitação. No caso da cédula de R$ 200, à qual a patuleia não teve acesso, se revela claramente que a sua produção ficou a cargo de terceiros.
        A denúncia da Ceptis captada pela ABCF nos leva a pensar sobre a terceirização da produção de dinheiro na era Bolsonaro, retirando da CMB uma atribuição que ocorre há mais de 300 anos. Nesse sentido, a inédita terceirização da produção de dinheiro significa mais uma tentativa do governo de retirar outra atribuição estatal.
        Daí serem estranhos os fatos acima, pois até onde se sabe, todos os países produzem dinheiro por órgãos estatais com servidores. O significado é claro: patrimônio de soberania. Que, aliados aos fatos acima citados, motivam a recomendação do CPPI de que se retire a CMB da lista da privataria.
        Como já citado antes, a privataria é objetivo-fim da PEC32, a reforma administrativa. Se já foi produzida a cédula de R$ 200 fora da CMB ainda pública, imaginem no pós-privataria: além de gerar falsificação à vontade, se dissolve praticamente o que nos resta da resquicial sensação de soberania.

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Imagem: Google

Notas da autoria
1. Diário Oficial da União, órgão de imprensa estatal que oficializa atos administrativos de autoria da União.
2. Código Penal Brasileiro (Decreto 2848 de 1940).

Para saber mais
- https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-afirma-que-nota-de-r-200-foi-lancada-por-falta-de-papel-moeda/
- https://noticias.r7.com/brasil/dpu-entra-com-acao-para-suspender-circulacao-da-nota-de-r-200-13102020
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/15/senador-flagrado-com-dinheiro-na-cueca-chama-bolsonaro-de-grande-lider-e-diz-que-provara-inocencia.ghtml

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Reflexão- Witzel: Flávio Bolsonaro e o perigo nos hospitais federais


Resumo: desde que Witzel abriu a boca na CPI sobre a influência na gestão de seis hospitais e nove institutos - todos federais - no Rio de Janeiro, a temperatura nos bastidores sobe. E os senadores sabem por que.

        Rio de Janeiro, 2020-21: entre os hospitais federais do Rio de Janeiro, o Hospital Federal de Bonsucesso é eleito uma referência no atendimento de pacientes com C19, quando a pandemia deu seu primeiro boom no Brasil. A partir daí, ele seria palco de importantes notícias, algumas das quais extensivas a outras unidades. Como a suspeita do sinistro método "escolha de Sofia", pelo qual, devido ao grande número de doentes, se selecionaria quem deveria viver - então, os mais jovens e sem comorbidades. Uma série de conflitos entre a direção e alguns servidores. Em paralelo aconteceu um importante incêndio , que decorreu em danos e perdas materiais e de vidas. E, finalmente, com o setor de emergência chegando a ser fechado, os fatos supramencionados seriam “esquecidos” pelos meios de comunicação, que sequer os relembrariam para concatenar com o presente. Uma operação abafa.
        Brasília, 2021. após o sinistro recorde pela C19 em março, redundando em quase 100 mil mortes notificadas, começa no final de abril a CPI da C19, já prometendo calores altos e forte audiência a partir do depoimento do ex-MS Henrique Mandetta, que expôs a público a má conduta do governo Bolsonaro em retaliação às regras de segurança da OMS. Quando o ex-governador do RJ Wilson Witzel compareceu por vontade própria para depor, o calor da CPI teve seu primeiro pico: ele expôs para a cúpula e para a tribuna a influência do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) na gestão dos seis hospitais e três institutos federais, redundando em intenso tumulto quase incontornável. Novos picos desse calor reapareceriam em depoimentos posteriores, com direito a sexismo e homofobia, rebatidos com discursos bastante civilizatórios e históricos. Mas, o depoimento de Witzel, com o complemento do da advogada dos ex-médicos da Prevent Sênior Bruna Morato, seria decisivo para os novos e definitivos rumos investigativos da CPI.

OSs nos hospitais federais- Para se ter uma ideia do quão explosivo foi o depoimento de Witzel, foi preciso continuá-lo no privado, em diligência, pela qual senadores na tribuna não podem participar. E foi lá que o ex-governador apontou Flávio de atuar como “dono” dos hospitais federais, não só indicando direções, como emitindo ordens diretamente de Brasília às direções, e os fornecedores de materiais e medicamentos, bem como a autorização para servidores de organizações sociais (OSs) para atuar nessas unidades. Ou seja, um claro tráfico de influência em larga escala. Em todos esses casos estão envolvidas pessoas ligadas a Flávio.
        O depoimento detalhado de Witzel, que teve que solicitar proteção a si e sua família, fez com que a cúpula da CPI decidisse pela quebra de sigilos bancário e fiscal de sete OSs criadas pelo governo de Witzel, uma vez que as mesmas têm sido partícipes dos esquemas de recursos no Estado, e que o seu impeachment teria sido financiado por uma máfia da saúde local, por trás da qual está uma milícia – e daí, correr risco de vida, como o próprio declarou.
        Entre as OSs envolvidas no depoimento, se destaca a Associação Filantrópica Nova Esperança, cuja a receita saltou de R$ 337,3 mil para R$ 17 milhões no período 2018-19, ou seja, aumento de 50 vezes em prazo tão curto. E, entre 2019-20, de R$ 17 milhões para R$ 249 milhões. Além desses aumentos tão estranhos, as movimentações financeiras envolveram grandes quantias em espécie, ou seja, dinheiro vivo, conforme analistas dos documentos - o que a referida OS nega em sua nota oficial. É nesse crescimento da suspeita que reside a acusação de desvio pelo ex-governador.
        Quanto às empresas fornecedoras de equipamentos hospitalares, há também menção de ligações de seus representantes com Flávio Bolsonaro. A Malugue Comércio Ltda., empreendimento localizado no bairro da Saúde, no Rio de Janeiro, pertence a Stelvio Bruni Rosi, advogado e empresário. Stelvio tem outros empreendimentos, entre eles uma pousada em Itacaré, litoral baiano. Foi dessa pousada que ele teria enviado um e-mail para o senador, solicitando que houvesse reunião com o MS e com representantes do laboratório estadunidense Vaxxinity, produtor da vacina idem. Apesar das suspeitas de desvio, não houve menção de quantias envolvidas que pudessem gerar suspeitas de superfaturamento ou outra irregularidade.
        Detalhe: a vacina estadunidense ainda está em fase de testes, sem, autorização da OMS para uso emergencial. Quando a informação vazou na imprensa, Stelvio, procurado, disse "ter-se expressado mal" no e-mail, em esforço para tirar Flávio da reta. Também procurado, Elcemar Almeida, que nas redes sociais se apresenta como presidente da Vaxxinity no Brasil, negou ter feito qualquer contato com Stelvio e Flávio. Não foram encontradas fontes que detalhassem quantias envolvidas para a compra dessa vacina, nem indícios de conclusão do negócio.

Iniciativa privada- a intenção que move a intenção da decisão tomada pela cúpula da CPI da C19 em investigar essa provável interferência de Flávio Bolsonaro nas nove instituições federais no Rio de Janeiro reside na ideia de que o filho do presidente supostamente tenha a intenção de efetuar entrega paulatina, por via irregular, dessas instituições para a iniciativa privada. Se evidenciada, a suspeita de irregularidade se desdobraria de dois modos: a ausência de licitação para sorteio da terceirizada a gerir as unidades hospitalares; e o propósito dessa terceirizada (uma das OSs dita como de caráter filantrópico ligada ao senador) agir por trás no desvio de mais volumes de recursos públicos. Mas, vale ressaltar que, a despeito das evidências materiais, os fatos são considerados pelos senadores e órgãos investigativos como indícios, justamente por carecerem, ainda, de investigação.
        A privatização na área de saúde é um sonho político pelo menos desde a era Collor. Muitos servidores antigos estimaram que a Lei 8080/1990 nunca foi seguida em sua integralidade - uma verdade infeliz -, pois sempre sofreu subinvestimento e, agora, é sistematicamente desinvestido, abrindo portas para a criação de OS, terceirizadas de capital público e direito privado que empregam (muito mal) profissionais de saúde, substituindo os urgentemente necessários concursos públicos (o último grande concurso com garantia de estabilidade ocorreu em 2005, seguido de um para cargos específicos em 2010).
        Quando a Constituição de 1988 tornou pétrea a saúde pública como direito popular e dever estatal, o sonho do SUS privatizado nasceu difícil de ser realizado. Mas, com o subinvestimento cada vez mais profundo ao ponto do desinvestimento da era atual, e com a aplicação de Lei específica para contratados temporários da União (CTUs) em casos de calamidade pública, portas para terceirizações indiscriminadas e outras irregularidades foram abertas, ao ponto de vermos terceirizados na direção de grandes instituições da Administração Pública direta e indireta, com substituição crescente de servidores por CTUs e terceirizados em vez de concursados. A senha para a interferência da elite econômica e política.
        Com os Bolsonaro no poder, essas portas antes entreabertas foram escancaradas aos olhos dos espectadores desavisados. Mas, foi somente com o desenrolar de revelações na CPI que podemos ver com mais clareza os detalhes sórdidos com que, em nome da família do presidente, ou de quaisquer nomes da elite econômica, crimes contra o erário público como um todo têm acontecido.
        As práticas nazistas com pacientes da Prevent Sênior (também a Hapvida e, quiçá, outras operadoras das quais nem sabemos ainda), reveladas pela advogada Bruna Morato e alguns ex-médicos na CPI, em nome de uma ideologia torpe que se voltou contra a vida e a dignidade de pacientes e familiares, nos leva a inferir sobre as possibilidades de a interferência de Flávio Bolsonaro nas nove unidades federais no Rio se mover na intenção de estender esses métodos escabrosos nelas e, em seguida, pelas demais unidades do SUS, no sentido de padronização. E tudo gerido não por servidores públicos, mas pela iniciativa privada, seja esta OS ou operadora de plano de saúde, que lucraria muito mais às custas do SUS, da dignidade pública e de vidas humanas.

Reflexões finais
        As revelações de Witzel não amenizaram o seu início político aliado aos Bolsonaro, nem a sua inclinação para a privatização dos serviços na saúde pública através das terceirizações em massa, que resultaram na criação de sete OSs. Por isso mesmo, não está inocentado. Mas, por outro lado, o seu impeachment pode ter servido ao menos para refletir sobre os perigos da aliança com uma família cujas ligações com gente muito suspeita dão margem para a queda de aliados, pois estes são vistos pelo Bolsonaro pai como potenciais adversários ao menor passo em falso.
        Por outro lado, é inegável que seu depoimento se mostrou assaz útil para que aqueles servidores que votaram em Bolsonaro por antipetismo ou por infrutífera crença em mudança a partir da moralização da política pudessem repensar seus conceitos e aceitar a sua mea culpa pelo status deteriorado a que a saúde pública chegou, obrigando os servidores da área a um esforço hercúleo e traumático para salvar tantas vidas na pandemia.
        Embora a referência à série de infortúnios passada pelos hospitais federais do RJ, como as citadas no de Bonsucesso, não tenha sido falada publicamente por Witzel, a decisão de investigação pela cúpula da CPI, se levada a cabo sem ser impedida por tentativas de impedimento que certamente ocorrerão, poderá elucidar os fatores para muitos desses fatos, e até descobrir novos e escabrosos fatos não revelados no tempo útil da Comissão. Como, quiçá, alguns indícios de projeto de extensão privatista para padronizar o atendimento em C19 à la Prevent Sênior nas unidades federais. É meter a cabeça, e nós torcermos para que renda frutos. Pois Witzel, por pior que tenha sido como político, como testemunha abriu caminhos para a dissolução de uma ideologia de morte do povo a partir da pulverização do Estado. 

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Imagem: Google (Witzel e Flávio Bolsonaro)

Nota da autoria deste artigo: o conteúdo é uma reflexão, não reflete obrigatoriamente a opinião da autoria.

Para saber mais


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Análise: vitórias da CPI da C19

 

        Como qualquer comissão parlamentar de inquérito (CPI), a CPI da C19 iniciou passando ao público a impressão ligada de que iria terminar em pizza, sem desmascarar ou abrir portas para punir os envolvidos no tema da sindemia de C19. Mas. ela acabou se diferenciando, graças à objetividade e firmeza de sua cúpula (presidente Omar Aziz, relator Renan Calheiros e o vice Randolfe Rodrigues), e seus membros na tribuna.
        Uma mostra dessas qualidades foi a sua prorrogação por mais três meses, totalizando perto de 6 meses, graças à sua cúpula e membros como Alessandro Vieira, Simone Tebet, Rogério Carvalho e outros. O que, ainda antes do fim, gerou resultados muito interessantes a serem abordados aqui.

Por que a visão popular negativa sobre as CPIs

        Como dito acima, as CPIs sempre foram mal vistas pelo imaginário popular, pois os integrantes dizem que a CPI surge para investigar explorando determinado tema que chama a atenção pública. Talvez daí a geral pensa que no final todos os errados "deveriam ir logo pra cadeia".
        Em verdade, essa é uma visão errada, incutida desde muito por políticos populistas sob eventual investigação em atos ilícitos de grande magnitude. Como o próprio presidente Bolsonaro tem feito para depreciar a CPI corrente.
        Segundo o cientista político Leonardo Rossato, a visão errada vem justamente do trabalho que a CPI faz de investigar fatos, tarefa tradicionalmente policial. Mas, se trata de uma investigação política, atribuição regida em regimento interno do parlamento brasileiro. É uma investigação política.
        A investigação aufere à CPI o seu poder discricionário (polícia) concatenando vários fatos ligados a um tema. A CPI da C19 expôs ao público ações ilícitas e seus envolvidos, incluindo as omissões do governo na gestão da sindemia que resultaram em mais de 600 mortos e milhares de sequelados1.
        O "ninguém será preso" é uma ideia errônea ligada à desinformação. CPIs têm poder limitado de polícia, no máximo tornar depoente um investigado e dar voz de prisão em caso de desacato ou de excessos, como já aconteceu com dois ou três casos, todos hoje investigados.
        Mas mesmo com seu poder de polícia, a CPI não tem poder judicial, daí não dar veredictos após a verificação do relatório final. Sua função essencial é desvendar as teias de relações e entrelinhas do tema explorado, e mostrar os protagonistas e coadjuvantes, tudo no espectro político.

As vitórias da CPI da C19: análise

        Mesmo com todas as suas limitações, pressões externas e depreciações advindas do governo e da Câmara, a CPI da C19 gerou resultados positivos, que Leonardo Rossato enumera em seis pontos, aqui mais condensados para que o texto não fique demasiado prolongado e enfadonho.
        Vacina e C&T- a vacinação se seguia muito devagar: até o início da CPI em 28/4,  só 13,2% dos brazucas receberam a 1ª dose e 5,8% as duas (dados oficiais de Secretarias regionais). Após a vergonha dos cloroquiners e a assertividade de quem exaltou vacinas e ciência, aumentaram as agulhadas.
        Governos regionais e federal aceleraram a aquisição das vacinas disponíveis. Não fosse a CPI, o Brasil levaria mais de ano e meio para cobrir 80% do povo, com morticínio maior. Hoje, pelo menos 78% já tomaram pelo menos 1 dose.
        Antes da CPI, os cientistas não conseguiram dissolver o discurso anticiência bolsonarista. Na CPI, os cientistas Pedro Hallal, Natália Pasternack e Claudio Maierovitch tiveram sucesso, assim como o médico e senador Otto Alencar em detalhes técnicos, mas didáticos, sobre vírus, tratamento precoce e vacinas. 
        Corrupção e práticas nazistas- na CPI foram expostos negócios ilegais com vacinas da Covaxin e AstraZeneca e testes, tudo fantasma, com empresas de fachada para corrupção e lavagem de dinheiro, e o deputado Ricardo Barros e Marcos Tolentino do Fib Bank figuras centrais dessa teia.
        O deputado Luís Miranda expôs a trama com base em denúncia do irmão servidor concursado do MS/ importação. A partir daí, vários nomes foram convocados, inclusive Barros, Toletino e outros que abusaram do direito ao silêncio e de mentiras confrontadas pelos senadores.
        Na alegação de ter patrimônio imobiliário de R$ 7 bilhões (aonde?), o Fib Bank foi criado como banco virtual para atender às volumosas transações ilícitas, como as supracitadas.
        Depois, o nazismo com vidas: prescrição arbitrária de medicações provadamente ineficazes (kit-C19, flutamida para câncer de próstata, ozonioterapia retal, etc.), canto obrigatório de hino com letra nazista, omissão da C19 nos obituários, "estudos" com dados mentirosos e metodologia duvidosa.
        Tudo sob críticas do ex-MS Mandetta, e pleno aval (e pressão) do ex-MS Pazuello e de Queiroga, estes com o gabinete paralelo que ditava as práticas, e o ministério da Economia, em nome da santa Cloroquina, com volumosas cifras por trás disso tudo. Quem sabe, as offshores agradecem.
        As operadoras de planos de saúde envolvidas são a Prevent Senior e a Hapvida, ambas com seus donos próximos à família Bolsonaro. Mas, quiçá, pode haver outras. Afinal, nesse horror que revela a era Bolsonaro, essas operadoras lucraram muito, mesmo sem revelar os valores na CPI.
        Nisso, vale um spoiler dedutivo. A denúncia de Witzel talvez tenha impedido a extensão dessas práticas nos hospitais federais fluminenses, dada a influência de Flávio Bolsonaro, que quer entregá-los à iniciativa privada.
        Percepção civilizatória e política- no campo civilizatório, se destacaram a bancada feminina, ao enfrentar o violento machismo bolsonarista, e Fabiano Contarato, por seus discursos históricos contra a LGBTQIAfobia.
        Simone Tebet foi o principal alvo do machismo de depoentes abusivos e de colegas governistas que a interrompiam a todo custo, e Contarato respondeu por si e por Randolfe (que não é gay) ao empresário Fakhoury e ao MEC Milton Ribeiro. As duas partes chamaram na CPI a atenção sobre a equidade na diversidade social.
        No campo político, não é segredo para ninguém que o brasileiro vê na política como sinônimo de corrupção de todo jeito e desvarios contra a ética - fruto da própria historicidade da cultura corrupta da elite, que secularmente dominou os bastidores da política.
        A CPI foi capaz de mostrar que existem vários políticos sem escândalos em suas carreiras, não importando se são veteranos ou estreantes. E, também, na exposição de tantos fatos relevantes, acabou com o personagem que Bolsonaro plantou para a sua eleição, ao revelar que o mesmo protagoniza o maior esquema de corrupção percebido desde a redemocratização.

        O cancelamento da homenagem às mais de 600 mil vítimas da C19 por Renan Calheiros parece não mexer com o brilho da CPI citado em tantas linhas. Ele explicou que, em decorrência de pressões para encerrar tudo até 20/10, se dedicará à análise do relatório final com Aziz e Randolfe.
        A decisão foi criticada pela mãe do humorista Paulo Gustavo, vítima há poucos meses. Não que não tenha razão. Mas é perfeitamente certo que o enceramento oficial da CPI tenha a homenagem, mesmo simbólica, o que seria feito com chave de ouro.
        Uma vez que tenha produzido esses resultados tão positivos, se espera que no plano civilizatório, se espera da CPI também possibilitar a humanização da vida e da morte na C19, após o aguçamento da banalização pelo bolsonarismo ao ponto da mórbida complacência diante da barbárie.
        Mas, ainda é cedo para se chegar lá. A morte por barbárie permeia a nossa história há séculos. Mas, a CPI poderá ser lembrada na história do futuro como a oportunidade para nossa humanização. Quiçá.
        Os atores da barbárie da C19 no Brasil podem nunca ser presos. Mas sabemos que não é culpa da CPI. Nisso, já é em si mais uma vitória: nem toda CPI tende a terminar em fracasso.

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Imagens: Google (montagem: autoria do artigo)

Notas da autoria
1. Por efeitos adversos decorrentes pela adesão errrônea ao kit-C19, Milhares desenvolveram sequelas hepáticas, nefrológicas e neurais ou mentais. A adesão foi voluntária em apoiadores do presidente.

Para saber mais
- https://www.youtube.com/watch?v=J_MQpjK4N7c (Meteoro Brasil entrevista Leonardo Rossato, cientista político-CPI já venceu)
- https://nadanovonofront.com/2021/10/01/a-cpi-ja-venceu/
- https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/09/17/O-envolvimento-dos-planos-de-sa%C3%BAde-com-o-tratamento-precoce
- https://oglobo.globo.com/politica/kit-covid-operadoras-de-planos-de-saude-sao-alvo-de-reclamacoes-na-ans-em-dez-estados-1-25231700


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