A outra crise humanitária
No início de 2023, a crise humanitária do povo
Yanomami decorrente do garimpo ilegal ganhou o mundo. Os acampamentos
garimpeiros cercaram os indígenas submetendo-os à fome e a doenças agravadas
pela desnutrição. A megaoperação de emergência logo começou e ainda continua.
Como já apontado no blog, os problemas sociais dos
originários ligados à atividade econômica ilegal sem suas terras têm caráter
genérico e a ministra Sonia Guajajara também já denunciou isso. Um outro
exemplo é a descoberta de um surto de mau desenvolvimento físico e mental entre
os Munduruku.
Munduruku – é uma das muitas
culturas originárias de ocupação amazônica que já tiveram contatos mais
intensos com a cultura branca, assim como os Kaiapós (norte de MT), Baniwas,
Sateré-Maués (Pará) e os Yanomami de Roraima. Sua liderança mais conhecida é o escritor e historiador Daniel Munduruku.
Se distribuem em pequenas comunidades na Amazônia da
vasta terra indígena na fronteira norte do Mato Grosso com o sul do Pará.
Preservada e rica em recursos, a área é alvo da cobiça de latifundiários e
madeireiros, e ocasionalmente se operam verdadeiras guerras frontais nas
fronteiras. E agora já ocorre uma nova crise.
Como um surto – recentemente, médicos da
Sesai¹ descobriram uma comunidade indígena Munduruku no Pará, na beira de um
rio de águas barrentas. Crianças e jovens apresentavam sequelas físicas graves:
mãos e pés tortos, membros atrofiados, alguns paralíticos, cabeça pendente e
mudez. Eram muitos afetados numa comunidade pequena.
Em dúvida, eles inicialmente creditaram ser
intoxicação grave por agrotóxicos proibidos usados em monoculturas de fazendas
próximas. Mas ao perceberem que os indígenas consumiam água com nível altíssimo
de mercúrio, entenderam que era o metal líquido do garimpo o causador daquelas
sequelas.
Amostras de sangue coletadas dos indígenas revelaram
índices alarmantes de mercúrio, mineral que nas mulheres grávidas passa pela
placenta atingindo o feto. Daí o caráter congênito da intoxicação e alguns
casais com todos os filhos nesse estado. A situação é dramática.
Garimpo ilegal – Há alguns anos Daniel
Munduruku tem denunciado a investida de garimpo na região, mas aparentemente
nunca houve alarde midiático digno de nota sobre isso. Se sabia apenas dos
avanços das monoculturas de soja e milho, com eventuais intervenções do Ibama.
A ofensiva do governo Lula contra o garimpo legal na
terra Yanomami deu certa esperança para os Munduruku. O problema é que parte do
grupo criminoso fugiu se embrenhando na floresta rumo ao sul paraense,
engrossando a fila dos que já estavam lá há décadas.
Não surpreende, mas... –
A divulgação dos relatos dos médicos da Sesai pela mídia alternativa comprova a
denúncia de Daniel Munduruku sobre a gravidade das ameaças dos extrativistas
ilegais nas terras indígenas. Nesse sentido não surpreende ninguém. Mas parte da
fala de Daniel foi silenciada pela própria mídia.
É essa parte silenciada que a reportagem do Brasil
reverbera em leitura, pois mostra outra faceta de uma crise humanitária: a de
que contaminantes perigosos atingem mais rios e comunidades na floresta e adjacências
do que se imagina – bem como o conjunto de consequências à saúde e seus
significados.
Ou seja, as complicações da intoxicação grave por
mercúrio, agroquímicos ou ambos devem ser mais comuns entre as comunidades da
floresta e ribeirinhas do que sabemos, bem como as implicações disso: quanto
mais pessoas incapacitadas numa comunidade, maiores são as dificuldades de
vida.
Os relatos dos médicos da Sesai sobre os Munduruku
reportados pela BdF de 19/4 são oportunos nesse retorno democrático e maior
visibilidade dos povos indígenas, para mostrar a real profundidade da crise
humanitária dos mesmos e, com isso, redimensionar o resgate emergencial para a
sobrevivência.
O momento é agora. Pois se desconhece o futuro e, em
consequência, o que politicamente virá a posteriori. É agora ou nunca. A nossa sobrevivência depende intimamente da sobrevivência dos povos originários.
Nota da autoria
¹ Secretaria de Saúde Indígena - SUS, agrega profissionais habilitados em saúde indígena que se concentram mais nas regiões do país com mais povos indígenas.
Para saber mais
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Dino, o imbatível (e quiçá sucessor)
Sal Ross
Com sua inteligência política peculiar e aparentemente
aguçada com o progredir da idade, o presidente Lula nomeou o maranhense Flávio
Dino (PSB) para comandar uma pasta bem especial: o ministério da justiça e
segurança pública. Não é para menos: ele atuou como juiz federal no seu Estado
por mais de 10 anos.
Suas duas vezes como governador do Maranhão foram
marcantes. Ele procurou amenizar os graves e históricos problemas sociais e
estruturais e valorizou professores de ensino básico com a maior média salarial
do Nordeste – se não for do país. Isso lhe auferiu grande popularidade, que rendeu a eleição para senador.
Os fatos revelam Dino como o sapato certo para o pé
doente. Previamente ele avisou à SSP-DF sobre o 8/1, cuja história já se sabe,
agora acrescida de 180 horas de imagens de uma câmera de segurança, sobre a
qual o então GSI general Gonçalves Dias mentiu ao presidente Lula ao dizer que “estava
queimada”.
Imagens desta câmera revelaram a mentira que custou a
autodemissão de G. Dias do GSI, substituído por Ricardo Capelli, civil de
confiança de Lula, que seguirá caso o presidente definitivamente fracasse com os milicos de vez. (spoiler: essas imagens com G. Dias levaram o governo a aceitar a CPMI do 8/1).
Eficiência – O governo Lula mostra a
harmônica coesão das instituições, com resultados que atestam a ausência de
“petistas infiltrados” na barbárie de 8/1 e esquentam a batata dos
financiadores, parlamentares bolsonaristas e do mentor Jair Bolsonaro.
Essa coesão institucional acabou favorecendo Dino indiretamente, em
especial na sua condução no ministério, tão eficiente e pragmática (até o
momento) quanto nos tempos de governador de seu Estado natal. As falhas no
início do governo praticamente foram esquecidas, tornadas irrelevantes frente
aos novos feitos.
Além dessa eficiência, Dino revela mais uma qualidade
essencial: o carisma popular. Este se consolidou após as duas sabatinas
tumultuadas de comissões do Congresso, nas quais deu uma verdadeira aula de
Direito e ainda intimidou parlamentares bolsonaristas por mentira e
depreciações a pessoas ou grupos que não ele próprio.
Sucessão – Como Lula já havia
avisado previamente rejeitar a disputa pela reeleição, a preocupação pegou o
colegiado do PT. Não sem razão. Eles já perceberam que um sucessor à altura de
Lula deve ter como qualidades básicas: linguagem popular direta e didática,
afiamento político, e alto potencial pragmático.
A condução eficiente no ministério e os shows com os
parlamentares e imprensa soaram bem ao público gerando o carisma popular que os
petistas procuram. Só que o ponto vai para o PSB e não para o PT, embora não
seja necessariamente uma perda para este último, pois poderá lançar Haddad como vice em possível
chapa.
O PSB está de olho em Alckmin, pela harmonia na
relação com Lula, mas também por estar sendo sondado pela oposição para
presidir logo o país em caso de impeachment já pautado pelos bolsonaristas. Mas o partido não
parece disposto a trair Lula e o PT, daí já mirar Dino como uma opção popular
pela esquerda.
A substituição de Lula por Alckmin se torna uma chance naturalmente maior por ser o vice com um papel importante no aparamento de arestas. Mas faltam-lhes as qualidades vistas em Dino: para o povo, ele ainda é o picolé de chuchu, em alusão ao seu jeito aparentemente insosso de se expressar e agir.
Ainda que o ex-tucano seja o mais agradável para os grandes meios de comunicação e os economistas de viés notadamente neoliberal, Dino se parece mais com Lula e, por isso, pode ser a opção mais palatável mais à esquerda e para o povo essencialmente lulista.
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Indecoro: nessa briga o ruim venceu
A Constituição de 1988 preconizou novidades sobre os
princípios referentes aos agentes públicos em geral – políticos e servidores
públicos de todas as esferas e dos três Poderes. São princípios de decoro na
função pública, que preveem tratamentos sóbrios e de civilidade da parte
desses agentes.
O decoro na função pública reflete a histórica conduta
indecorosa de um deputado federal que abaixou as calças afrontando colegas em
tribuna, no Rio, capital federal nos anos 1930. Inicialmente ligado à impudicícia, o indecoro hoje significa toda conduta depreciativa
cometida por agentes públicos contra colegas e o povo.
Nesse sentido mais amplo, o indecoro tem sido uma
constante no Congresso nos últimos anos, em especial a partir do fim dos anos
1990, quando o deputado extremista Jair Bolsonaro começou a ter holofotes sobre
suas ideias, que replicaram tantas vezes quando já presidente da República.
Deputados e senadores bolsonaristas têm reproduzido condutas
e falas escatológicas e violentas, como visto na CPI da C19 e em comissões com
pautas em assuntos polêmicos. E não foi diferente em uma comissão mais recente
na Câmara, sobre a escolha do vice-presidente da CPMI do 8/1.
Arranca-rabo na comissão –
formada por deputados de vários matizes, a comissão é sujeita a momentos acalorados.
Isso é normal na democracia, pois facilita a escolha de alguém mais incisivo durante
depoimentos que porventura despertem climas disruptivos. Nessa comissão de
apreciação já surgiu um arranca-rabo.
Até acontecer o estouro, houve antes uma ligeira troca
de adversidades entre os deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP, oposição) e Marcon (PT-RS, situação). Num momento rápido, o petista detonou: “facada fake”, hipótese do controverso fato da facada em Jair
Bolsonaro em campanha eleitoral de 2018. Foi o estopim.
Eduardo saiu de sua mesa indo para cima de Marcon. Colegas
o seguiram a fim de contê-lo para evitar as vias de fato, mas as imagens
revelam que o próprio Eduardo se contém no momento exato, mas não a boca, da
qual foi vomitada uma série de impropérios depreciativos escatológicos e
ameaças. E depois volta ao lugar.
Análise – após o estouro, deputados
se manifestaram à distância, revelando dois grupos, parte em apoio ao
bolsonarista e outro favorável ao petista. A razão do apoio ao bolsonarista se fundamentou
mais pelo crime em Juiz de Fora até hoje não ter sido oficialmente questionado,
apesar das controvérsias.
Já o apoio ao petista não se deu pela fala, mas em razão
da reação intempestiva, ameaçadora e recheada de ofensas e palavrões. Em fria
análise, a menção da facada foi inoportuna e infeliz, em momento totalmente
impróprio e por atingir o âmago de um filho do ex-presidente. Foi irrazoável.
Na família Bolsonaro não houve manifesto público sobre
o episódio, mas já foi dada a munição aos seus fanáticos seguidores. Isso reforça
a impropriedade da fala de Marcon e favorece Eduardo, cujo vídeo já viraliza
entre os fãs. Lamentável, em contexto de violência ideológica atingindo escolas.
Nesse episódio, Eduardo venceu o embate, mesmo em pleno
indecoro. Ainda mais após dizer: “Sou capaz de tudo por meu pai”, ao se
acalmar. É compreensível, mas há quem diga que ele tenha sorrido de zombaria ao
se afastar de Marcon. Mas até o momento não há menção a isso na internet.
Ainda que não seja da ASCOM (assessoria de comunicação
do governo), Marcon em sua fala expõe as fraquezas da esquerda na área enquanto
a extrema-direita nada a largas braçadas no ramo. Mas nada que não tenha jeito:
quiçá, entram profissionais e Janones para profissionalizar a equipe e dar o efeito desejado no cenário.
Porque nessa briguinha de quinta série o ruim venceu.
E não podemos deixar ampliar o placar.
Para saber mais
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Uma violação esquecida aqui, lá fora não
Segundo a grande mídia, a dupla passagem de Flávio
Dino (ex-PCdoB) no governo do Maranhão foi uma “ousadia”. Tudo porque ele
investiu na política de valorização do ensino básico a partir do salário dos
professores acima da média nacional, e demais servidores da educação e da saúde. Realmente ousado para o padrão.
Entretanto, não conseguiu resolver a pleno contento
vários dos graves problemas sociais históricos, como os altos índices de
informalidade no trabalho entre jovens que abandonam os estudos e carências
estruturais e de pessoal na saúde pública, que pioraram entre 2013 e 2022
devido a picuinhas ideológicas de Brasília.
Mas há outro problema, por sua vez mais complexo e
mais antigo do que a carreira política de Dino: um conflito sociopolítico
instaurado a partir da construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) da
Força Aérea Brasileira (FAB), em meio à mata florestal, e entre terras
quilombolas.
CLA – Foi projetado como mais
um faraônico símbolo da ditadura militar de progresso no “inferno verde
amazônico” que, ao menos em parte, ainda cobre o norte do Estado. Ela se situa
nos arredores da turística cidade litorânea de Alcântara, famosa por suas
praias primitivas e selvagens.
O projeto do CLA foi elaborado pelos engenheiros da
FAB nos anos 1970, mas seguiu melhorado aos poucos até 1979, quando ocorreram
desmate e terraplanagem de terra cedida pelo governo do Estado. As instalações
surgiram em 1980, mas só estavam plenamente prontas na redemocratização.
O CLA foi alvo de litígio entre governos estaduais, a
FAB e movimentos sociais organizados ligados à terra e aos quilombolas por
anos. Mas houve cessão aos direitos de uso pelos EUA em ações espaciais
menores, segundo a mídia. Mas para movimentos sociais citados, a intenção não é
boa. Eles têm razão.
Quilombolas – Quilombo é termo
afro-português que nomeia assentamentos de escravos negros e indígenas fugidos
no Brasil colonial. A maioria foi destruída por bandeirantes e, depois,
capatazes da elite rural. Os sobreviventes resistem bravamente à pressão das
mudanças sociais, políticas e ambientais, como centros culturais
afrodescendentes.
Seculares, os quilombos são hoje patrimônios
socioculturais e históricos e suas terras são públicas tidas como áreas
militares. Daí os litígios de mais de 40 anos e a ameaça constante do CLA da
FAB. Em 2020, sem aviso, a FAB usou a violência em ação de despejo sobre a área
quilombola adjacente às instalações.
Dino – De visão humanista, Dino
se posiciona contra a retirada compulsória dos quilombolas, vendo na expulsão
promovida pela FAB como uma violação de direitos humanos, compartilhada com os
princípios norteadores da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), que criticou duramente a atuação do governo Bolsonaro.
Após o protesto pessoal contra as ações de tomada
militar pela FAB, Dino ficou de mãos atadas quando os advogados da FAB
mostraram toda a papelada em que estaria já regulamentada a propriedade das
terras ocupadas pelos quilombolas e pelas instalações do CLA.
CIDH – a CIDH recebeu várias
denúncias, protocoladas pelos movimentos sociais e juristas do grupo
progressista Prerrogativas pelas violações e reiteradas aos direitos humanos
pela FAB. Dino apontou uma solução dialógica, em que quilombolas ficariam mais
afastados do CLA por segurança, mas dentro da terra pública.
O início do novo governo Lula é visto pelos
quilombolas da região como uma esperança. Tendo Dino como ministro da justiça e
um militar legalista na chefia das Forças Armadas, se espera haver um acordo no
qual eles não percam as terras que habitam há séculos. Por enquanto, as ameaças
continuam e eles resistem – até quando, não sabemos.
Para saber mais
- https://amazoniareal.com.br/quilombo-vista-alegre/
(FAB usa violência em despejo de quilombolas)
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