domingo, 25 de outubro de 2020

Devastação e colapso socioclimático

Quinto artigo da categoria #Curiosidades, que se focaliza nas alterações ambientais pelo homem e suas implicações climáticas a nível global.
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     O governo Bolsonaro tem reiteradamente negado que os biomas brasileiros estão sob ataque humano cuja agressividade jamais foi vista antes. E ainda debocha ao dizer que o Brasil é "exemplo em preservação".
     O que todas as mídias de todas as vertentes negam. Pois 
os próprios fazendeiros não se importam com a sua exposição como destruidores intencionais, com aval do próprio governo.
     A destruição dos biomas brasileiros suscita hoje duas referências de um mesmo debate: a primeira se trata dos significados e implicações do problema, e a segunda, das teorias da conspiração a elevar o tom de um assunto delicado, porém urgente de discussão em ampla escala.
     O mais interessante é saber que enfrentar a conspiração se tornou mais desafiador aos cientistas do que divulgar seus estudos, pois a pseudociência é mais ampla e rapidamente disseminada entre o senso comum do que os achados científicos. Mas, é necessário enfrentá-lo, pois urge a coletividade ter ciência do flagelo e suas implicações, que recaem sobre nós, a biosfera e o clima global.
     O objetivo deste artigo é, pois, descrever as categorias de biomas tropicais e os climas, mencionar os fatores de alteração dos ambientes e as implicações gerais. 

-> Biomas tropicais pluviais

     As florestas tropicais pluviais são biomas arbóreos altos e ocorrem em toda a faixa tropical global (América, África central, sudeste e sul asiáticos, Oceania), cada qual com a sua composição florística e faunística, e cobrem áreas montanhosas e planícies. Abrigam a maior biodiversidade do planeta, com espécies ainda não estudadas e muito ameaçadas.
     Algumas florestas são sempre verdes e perenes, outras perdem folhas em parte ou quase totalmente na estação seca (semidecíduas, decíduas). Algumas são ombrófilas, mal deixam a luz do sol tocar o solo, enquanto outras são mais abertas e ensolaradas.
     O o Pantanal é um misto denso de cerrado, florestas diversas e chaco (estepe pantanosa) na maior planície de inundação do globo, em boa parte coberta por solos que retêm água. As partes florestais ocupam áreas de serra e planície seca, e há grande biodiversidade animal.
     Em geral o clima tem estações úmida e seca definidas. A pluviometria varia regionalmente. Os locais mais chuvosos são o sudeste asiático, Havaí, seguidos pela Amazônia e floresta africana. Maior floresta tropical do mundo, a Amazônia propicia a maior área de distribuição de chuvas.
     Aliás, o potencial regulador climático dessas florestas é bem conhecido. São enormes os volumes de ciclos d'água1. Toneladas de carbono atmosférico são absorvidas, mantendo médias térmicas agradáveis e umidade equilibrada e distribuída para outras regiões, como o exemplo dos "rios voadores", da Amazônia, que atingem o Brasil e vizinhos.
     Tais "rios" irrigam vertentes leste dos Andes, chaco boliviano-paraguaio, pantanal e cerrado, onde encontram as frentes úmidas oceânicas do leste-sudeste e frentes frias do sul brasileiro, gerando mais chuvas aos fragmentos de mata atlântica do litoral até as áreas fronteiriças da Argentina, a favoecer rios perenes em áreas de clima subúmido.


-> Biomas subúmidos e semiárido 

     O cerrado é um tipo de savana, que se diferencia da africana pela maior densidade2 e mais porção arbórea. Em geral as árvores do cerrado têm porte menor que as das florestas. Limites: a oeste, pantanal; ao norte, Amazônia; a sudeste, mata atlântica e a nordeste, caatinga. 
     Sua área o torna o segundo maior bioma brasileiro, já fragmentado e descaracterizado pelo homem em mais de 50%. As Chapadas dos Veadeiros, Guimarães, Diamantina e Serra da Canastra estão entre os mais importantes parques de cerrado. 
     A caatinga3 possui uma vegetação adaptada a longas secas, com espécies que reservam água em seu interior como as cactáceas e árvores como a barriguda. Formações mais arbóreas são vistas em zonas limítrofes com cerrados ao sul e oeste, mata atlântica a leste e mata dos cocais ao norte.
     Abrangendo um vasto interior de 8 dos 9 estados do Nordeste e o norte de MG, a caatinga é o único bioma 100% brasileiro. Metade desse total foi deteriorada pelo homem e 20% correm sério risco de desertificação.
     Clima no cerrado: duas estações definidas, a seca nos meses de inverno e a úmida nos de verão, e com influências de encontros dos rios voadores, frentes frias e ventos oceânicos úmidos. Nas áreas arbóreas mais altas as chuvas alimentam nascentes de água a abastecer a maior parte das bacias hidrográficas.
     Na estação seca há incêndios que, naturalmente, se findam nas tempestades da estação úmida. O fogo é usado por muitas espécies da flora nativa para a sua perpetuação.
     Clima da caatinga: tropical semiárido; distribuição pluviométrica irregular (poucos meses de chuva intermitente ou alternância de anos mais úmidos com mais secos) por fatores diversos como El Niño ou La Niña no Pacífico. As chapadas da Borborema e Diamantina atuam como barreiras às frentes úmidas, daí a natureza do clima local.

-> Efeitos socioclimáticos da destruição do meio natural

     A exploração dos recursos naturais visando necessidade e conforto suficientes é hoje vista como inerente à própria vida, desde que não se priorize a capitalização. Mas, com notável exceção dos povos tradicionais e originários, o curso tomado pela ala "civilizada" foi bem outro.
     De conhecimento público recente, o aquecimento global já instaura modificações climáticas há milênios, graças à agricultura e às cidades. 
A seguida explosão civilizacional reverteu um resfriamento global há 6,5 mil anos atrás.
     A Revolução Industrial inglesa levou à migração de muitas famílias rurais para Londres, que cresceu rapidamente, desmatando o entorno, e a população dobrou em poucos meses. Sem gestão ambiental à época, a cidade ficou muito poluída devido aos dejetos domésticos e industrial e à fumaça preta e tóxica do carvão.
     É a inauguração da forma atual de devastação ambiental urbana. 
O uso de combustível fóssil4 para alimentar mais fábricas criou microclimas locais. E foi em 1850 que se iniciou a série histórica das médias térmicas, graças às primeiras análises sobre efeitos da poluição pela indústria e os moradores. 
     Esse estudo à época foi impulsionado pela percepção dos naturalistas de a cidade ser mais quente do que o campo. Ainda que muita descoberta estivesse por vir, os achados de então foram suficientes para haver preocupação com as implicações ambientais da atividade industrial e da superpopulação.
     No Brasil, a devastação ocorre desde a colonização. Mas foi na expansão industrial há 80 anos que a agressividade atual se mostrou e está aí. Ainda movidas a carvão, algumas indústrias são alimentadas pela madeira queimada em carvoarias improvisadas, algumas clandestinas, próximas às matas adjacentes.
     Assuntos ambientais desde os anos 1960-70 não sensibilizam governos e megainvestidores. Aqui, o ufanismo das "grandes obras" (maioria parada) da ditadura militar piorou a degradação da água, ar e solo. O uso de agrotóxicos, então já alto, hoje isola o Brasil em liderar o consumo desses venenos terríveis à saúde - nossa e de todos os elementos do ambiente.
     Embargos ambientais e fiscalização de órgãos ambientais na era PT (2003-16) mitigaram a média geral do ritmo destrutivo. Após 2016, o ritmo voltou aos níveis da era FHC (1995-2002). No governo atual, a agressão ao meio natural atingiu níveis inéditos: Brasil virou líder do triste ranking nesse critério.
     Já operam consequências climáticas importantes: a atmosfera amazônica está mais seca, e as massas de ar seco e quente de alta pressão ganham mais tempo e extensão. Na última, a umidade relativa ficou menos de 20% no vasto interior do país. Mesmo de origem natural (La Niña), a massa árida e duradoura é consequência do maior ritmo da destruição ambiental.
     Engana-se quem acredita que há regiões mais sensíveis do que outras às mudanças. Não há uma regra, pois elas já são sentidas tanto em locais mais habitados e ativos (fator humano), quanto nos desabitados: degelo acelerado, mais extremos atmosféricos (ciclones5, secas ou tempestades) e sazonais, etc.
     Isso sempre atualiza a série histórica das médias térmicas globais, além de evidenciar os nefastos efeitos da atividade antrópica sobre o clima a partir do meio natural, sem desconsiderar a origem natural do aquecimento global: este é apenas intensificado pelo homem, como salienta a NOAA6.
     Apesar de secular, a série histórica das médias térmicas só voltou à toma na mídia após os polêmicos apontamentos do IPCC6 sobre os efeitos do aquecimento global sobre o homem e o meio natural: perda da água doce, aumento do nível dos mares, acidificação da água oceânica, extremos sazonais, perda da biodiversidade e prejuízos finais na segurança alimentar, habitacional, na saúde, economia, etc. 
     Embora divirjam em certos detalhes sobre o citado fenômeno, IPCC e NOAA se complementam nas informações sobre efeitos físicos e químicos da atuação antrópica no meio natural e na biodiversidade. Portanto, ambas são valiosas.
     Analistas afirmam que a degradação ambiental se liga diretamente a violações dos direitos humanos, como os genocídios de povos originários no Brasil e na África, locais que sofrem intensa exploração de recursos naturais. A degradação ambiental espalha miséria, fome, sede, desabrigo e barbárie, cenário da anomia que derrete o sentido de sociedade e de civilidade.

-> Brasil: o que está por trás do negacionismo
     Os efeitos da mudança climática - e social - também já são sentidos no Brasil
     Assim como na pandemia de C19, o governo usa a anticiência para distorcer ou brecar o conhecimento público da realidade atual dos biomas. Ao negar incêndios na Amazônia e Pantanal "porque são úmidos", Bolsonaro expõe o caráter criminoso da degradação nesses ambientes.
     Sempre ocorreram secas, como as de 2005 e 2010, consideradas as mais severas. Ainda assim, não houve tamanho estrago, e olha que há incêndios criminosos há muito tempo. A seca de 2020 não justifica a devastação jamais imaginada, oque a torna notoriamente antrópica
     Hoje há 6% da extensão original da mata atlântica, m fragmentos por toda a faixa litorânea e interior, a maioria em áreas privadas, e os maiores nos estados de SP, RJ, BA. São os últimos refúgios de espécies exclusivas de fauna e flora, seriamente ameaçados de sumir pelas ordens do ministro Ricardo Salles.
     A revogação da lei de proteção a manguezais e restingas foi impulsionada pelo prazer de afrontar os princípios constitucionais conservacionistas e suas motivações científicas, visando somente desregular a especulação imobiliária, cujas consequências socioambientais serão imprevisíveis.
     Manguezais e restingas são delicados berçários de vida e geoestabilizadores. Qualquer modificação impacta as formas de vida e os terrenos, que são um risco às edificações: que o diga o fracassado Campo da Fé da JMJ-2013 em Guaratiba (RJ), no qual a água do mar desestabilizou o aterro que substituiu o manguezal que sustentava muitas famílias locais.
     Por isso, o negacionismo de Bolsonaro e Salles não é só ideológico, é fruto da ganância irracional e da mentalidade tacanha ou suspeita, compartilhadas com empresários de setores da especulação imobiliária, do setor financeiro e da extração indiscriminada das riquezas escondidas pelos meios naturais.
     Apesar de inviável conclusão prévia, a dimensão da devastação ambiental de 2020 já dá pista sobre as possibilidades alimentares das classes populares em 2021-2. Além da depressão econômica pós-Covid, o risco de seca severa causará crise agropecuária e hídrica, gerando ainda mais inflação e fome7.
     Mesmo sendo inviável concluir algo prévio, a dimensão da devastação ambiental deste ano já dá pista sobre as possibilidades alimentares das famílias de classes populares em 2021. Além do down econômico pós-C19, o risco de seca poderá prejudicar muitas culturas e escassear a água, resultando em mais famílias atingidas pela fome7, que volta com força.
     As notas na mídia sobre o somatório de danos ambientais em 2020 são pouco detalhadas. A total da área devastada da Amazônia supera a cidade de São Paulo e no Pantanal, 21% da extensão. Empresas do mercado financeiro já olham mal o país, que ainda corre risco de isolamento econômico internacional, algo muito desfavorável a nós.
     É. O cenário geral preocupa. Socioambiental, institucional, político e econômico. Triste Brasil.
     

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Notas da autoria:
1 O conhecido ciclo da água: vapor, condensação, chuva ou neve, armazenamento, e sucessivamente. Todas as florestas do mundo fazem isso, mas as tropicais têm a maior cota.
2 Em espanhol, cerrado é "fechado", significado também usado na nossa língua.
3 Do indígena ca'ai - branca; ting'a - mata, relativa à cor desbotada e aspecto ressequido da vegetação em longas secas.
4 A descoberta do valor industrial do petróleo amplificou e diversificou do uso de combustíveis fósseis. Hoje se usa o gás natural na indústria.
5 Furacões, tufões, tornados, trombas d'água.
6
IPCC, Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas de cientistas do mundo todo; e NOAA, laboratório Administração de Oceanos e Atmosfera do Depto de Comércio dos EUA. 
7
A fome teve índices menores no petismo, na junção dos programas Fome Zero Bolsa Família. Com o desemprego e fim do Fome Zero, a curva sobe a partir de 2017.

Para saber mais: (informações, artigos acadêmicos)
https://global.mongabay.com/pt/rainforests/kids/402.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Floresta_estacional_semidecidual
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Pantanal
- http://cristalinolodge.com.br/pt/the-southern-amazon/vegetation/deciduous-forest/
https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/floresta-tropical.htm
https://periodicos.ufsm.br/remoa/article/download/15213/pdf
- https://colatina.ifes.edu.br/images/tccs/AdmPub2018/TCC_AdmPub_2018_RomilsonRodriguesDeLirio.pdf
- http://www.revistaea.org/artigo.php?idartigo=2861
- https://www.scielo.br/pdf/sn/v25n2/a06v25n2.pdf
- https://revista.fct.unesp.br/index.php/cpg/article/view/4749
- https://www.universidadebrasil.edu.br/portal/_biblioteca/uploads/20200313204119.pdf
- https://brasilescola.uol.com.br/brasil/problemas-ambientais-sociais-decorrentes-urbanizacao.htm
- https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/cerrado.htm
- https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/o-cerrado-agua-no-brasil.htm
- https://www.researchgate.net/publication/291798539_Caracterizacao_climatica_do_bioma_Cerrado
- https://www.fundaj.gov.br/index.php/conselho-nacional-da-reserva-da-biosfera-da-caatinga/9193-saiba-quais-sao-as-caracteristicas-da-caatinga#:~:text=O%20clima%20da%20Caatinga%20%C3%A9,com%20longos%20per%C3%ADodos%20de%20seca.
- https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/caatinga.htm
- https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/aquecimento-global-interrompeu-65-mil-anos-de-resfriamento-revela-estudo.phtml
- https://sciam.com.br/quando-os-humanos-comecaram-a-alterar-o-clima/
- https://www.bbc.com/portuguese/geral-46424720
- http://www.inpe.br/faq/index.php?pai=9 (série histórica de médias térmicas)
- https://www.ecodebate.com.br/2019/11/13/estudo-da-nasa-indica-que-atividades-humanas-estao-secando-a-amazonia/
- https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2020/02/brasil-ja-sente-impactos-das-mudancas-climaticas-e-situacao-pode-se-agravar





segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Gente religiosa nada boazinha


     Embora seja atrasado no sentido das notícias envolvendo figuras como Damares Alves, Flordelis, padre Robson, João de Deus e outros, o artigo se centra em uma reflexão sobre o envolvimento desses importantes personagens em ações no mínimo suspeitas.
     Tal reflexão tem ocorrido há tempos, embora somente agora foi possível um ensaio com palavras mais adequadas ao tema em tela. A intenção deste artigo é afastar, ao máximo, generalizações e ofensas, sem perda da exposição dos casos mais conhecidos, nem da necessária visão crítica popular sobre os feitos de seus atores.
     Como é de conhecimento de quase todos que a religião tem sido ostensivamente utilizada como elemento de controle social em toda a nossa história civilizatória, o texto vai se centrar nas principais reflexões acerca das polêmicas em que se envolvem as instituições na pessoa de seus fundadores ou atores.
 
-> A fé como negócio

     Religião é tema recorrente em debates acalorados.  Embora a preocupação dominante seja a de influência política, há de se refletir sobre como a instituição religiosa chegou a um nível de domínio em espaços de comunicação em massa e mesmo na internet, com mil promessas ligadas à fé, popular, e compra e venda dos produtos cuja sacralidade se torna análoga à dos santos católicos: a fé como produto.
     A fé como produto é cada vez mais debatida em temas sobre religião. Existe uma preocupação com a atuação de instituições religiosas no meio público, num Estado republicano laico. É cada vez maior o espaço religioso em meios de comunicação em massa e na internet, com mil promessas ligadas à fé popular, e compra e venda de produtos simbólicos, com sacralidade análoga à auferida aos santos.
     Mas, o uso econômico da fé não é recente. Nas redes se divulgam cartuns e frases bíblicas de Jesus metendo o sarrafo em religiosos vendendo objetos sacros em templo, o que teria sido base para Martinho Lutero se rebelar contra a "venda de indulgências" pela Igreja Católica nas suas 95 teses, inaugurando a Reforma Protestante. Daí,  Lutero deixou de ser monge agostiniano, tornando-se o fundador e pastor do protestantismo luterano.
     Mal sabia ele que o ramo cristão que acabara de fundar,  abriria caminhos para novas denominações protestantes históricas como o calvinismo, metodista (e batista) e outras, como também para as denominações pentecostais mais dogmáticas, que derivaram em ministérios neopentecostais, hoje os grandes protagonistas do mercantilismo a dominar o cenário religioso no Brasil e mesmo no restante de toda a América.
     Quem não conhece os famosos fatos de Edir Macedo treinando seus subordinados a convencer os fiéis mais refratários, do Waldomiro vendendo objetos "ungidos" a preços estapafúrdios, RR Soares cheios de sorrisos expondo a sua conta bancária e o histriônico Silas Malafaia bradando horrores em púlpito, cada um ao seu modo, e todos com o mesmo objetivo?
     A conjuntura das razões do mercantilismo da fé pela teologia da prosperidade nas igrejas neopentecostais é complexa, reunindo fatores socioeducacionais deficientes, sociopolíticos, a liberdade econômica exacerbada que alimentou a ambição acima da noção caritativa, conluios políticos que privilegia os líderes religiosos mais ricos e influentes.
     Isso afronta a legislação que prevê limites relativos às doações mensais, como o que veda a obrigação do fiel de pagá-las. Mas, em algumas igrejas, o fiel se sente obrigado, pois os obreiros passam com as maquininhas de cartão enquanto oram "Deus abençoe os dizimistas", e também porque os "irmãos" encaram mal o congregado que não contribui.

-> As polêmicas da religião na política

     A ligação entre política e religião é bastante antiga: muitos sustentam que a religião é uma política de controle social e apontam exemplos no Oriente Médio. Aqui no Brasil não chega a tanto, mas ocorre situação parecida.
     A aproximação de lideranças bíblicas com a era PT é fichinha perto da era Bolsonaro: o atual governo já propôs dar às igrejas poder intervencionista em importantes decisões de Estado - daí o ministério de direitos humanos ser chefiado por uma pastora pentecostal, Damares Alves.
     Conflitos nas reuniões da ONU sobre direitos humanos sempre existiram, pois nunca houve interesse, em quase todos os países, em findar as violações internas. A posição brasileira atual tem sido irascível aos direitos sexuais e reprodutivos femininos. O Brasil se aproximou da Arábia Saudita num tópico pouco conhecido por aqui: a mutilação genital feminina (MGF).
     Tradicional em 28 países africanos, no Oriente Médio e partes da Europa e Ásia, a MGF ocorre em outras nações improváveis ao senso comum, disfarçada de nomes técnicos como vaginoplastia, labioplastia, etc.: é o caso dos EUA e alguns países sul-americanos como a Colômbia e até o Brasil, segundo a ativista somali Hibo Werdere, mutilada ainda criança antes de fugir.
     É notório que a estranha posição brasileira nessa questão fosse levada pelos acordos econômicos com a Arábia Saudita, e a afinidade religiosa específica ao papel social da mulher, que se acredita "naturalmente precípuo", que a rebaixa submissa ao papel masculino. O ministro do Itamaraty Ernesto Araújo, católico ultraconservador e fiel ao olavismo, chancela que "o globalismo marxista é uma ameaça ao cristianismo".
     Talvez, em parte, isso explique a conspiração da cristofobia que Bolsonaro declarou no horroroso discurso na ONU, desmentida por analistas da ONG internacional Portas Abertas, que produz ranking anual dos países mais "cristofóbicos" do mundo: o Brasil não aparece em nenhum ranking da série histórica. E não faria sentido algum, sendo um país 89% cristão.
     O que facilitou a penetração das igrejas na política em um Brasil laico e secular? O historiador estadunidense Andrew Chesnut, aponta 5 fatores: coesão ideológica, adaptação cultural dos ritos, maior flexibilidade na formação de pastores, redes de apoio comunitário em zonas carentes e capacidade de ecoar as ideias mais conservadoras das classes mais abastadas aos mais pobres. 
     Com uma ressalva, não apontada por Chesnut, mas não descartada: o poder econômico pela financeirização da fé que conta muito na influência. Líderes das mais ricas organizações evangélicas pouco fazem em caridade, e são minoria os que têm carreira política, mas os principais nomes desse ramo não fazem essa carreira, mas expõem publicamente o seu poder de influência. Econômica e política¹.
     Para se ter uma ideia dessa influência, os discursos de políticos como Bolsonaro (Brasil), Añez (Bolívia) e Trump (EUA) são pentecostais em moralidade, mesmo não sendo seguidores: os dois primeiros são católicos, o terceiro, metodista, e o último, ortodoxo². Eles acenam aos evangélicos pelos fatores já citados e, no Brasil e EUA, pela principal base eleitoral deles.
     Uma polêmica de líderes religiosos e fiéis influentes de carreira política é o envolvimento em crimes como corrupção, peculato, abuso de poder (político, econômico ou religioso), etc. O Congresso em Foco de 2018 apontava um ranking de 1 a cada 3 da bancada envolvidos em crimes políticos. Os dados da bancada atual ainda se restringem a poucos nomes em crimes comuns, como a deputada Flordelis (homicídio) e Damares (sequestro infantil).
     A maioria dos projetos de lei da bancada bíblica nos legislativos federal e regionais sequer é votada. Por não serem prioritárias, ou por fugirem do senso de ridículo. Como a PL da Calcinha, ou confinar LGBTIs numa ilha³, por exemplo. Embora aprovado, o cura gay não sai do papel nem na era Bolsonaro, por ser inconstitucional.
     Na política estadunidense, a influência pentecostal na eleição e na política de Trump se revela em assuntos mais amplos, como a política externa, o maior protecionismo nacionalista e a exportação da cultura religiosa dos EUA  para fins políticos em países africanos e sul-americanos. 

-> Finalizando:
     Enfim, todas as linhas acima explicitam claramente o uso da religião, e da religiosidade, como instrumento de controle sociopolítico, o que já é mais do que suficiente para mostrar que essa gente religiosa, de boazinha, não tem nada.

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OBS: Trechos em azul e roxo no texto são links, constados abaixo ou não.

Notas da autoria:
¹ A caridade das grandes igrejas neopentecostais não é totalmente ausente, Mas o poder arrecadatório delas denunciam a ética duvidosa dos fundadores e principais líderes.
² Ramo católico surgido no Cisma do início da era medieval em Constantinopla (Istambul), A Igreja ortodoxa é liderada pelos patriarcas, que podem se casar, como os pastores.
³ Proposta de deputado estadual de Santa Catarina, inspirada em lei fascista aprovada na Itália em 2013.

Para saber mais:
- http://direito.folha.uol.com.br/blog/joo-de-deus-e-os-limites-entre-curandeirismo-charlatanismo-exerccio-irregular-da-medicina-e-a-proteo-da-f
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Reforma_Protestante
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Mutila%C3%A7%C3%A3o_genital_feminina#:~:text=A%20mutila%C3%A7%C3%A3o%20genital%20feminina%20(MGF,os%20%C3%B3rg%C3%A3os%20sexuais%20externos%20femininos.
- https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-09/cruzada-ultraconservadora-do-brasil-na-onu-afeta-ate-resolucao-contra-mutilacao-genital-feminina.html
- https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quatro-milhoes-de-meninas-devem-ser-sexualmente-mutiladas-em-2020/
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47136842
- https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/07/01/internas_opiniao,868335/abuso-de-poder-religioso.shtml
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50462031 (religião e política)
- https://jus.com.br/artigos/35695/os-crimes-contra-o-sentimento-religioso
- https://www.agazeta.com.br/es/gv/o-que-e-estelionato-espiritual-e-como-voce-pode-denunciar-0120
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54254309
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Bancada_evang%C3%A9lica
- https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/um-em-cada-tres-deputados-e-acusado-de-crimes/
- https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/12/politica/1565621932_778084.html

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 Ustra, Bolsonaro, Mourão e a barbárie de Estado


     Esses dias, o vice-presidente Mourão soltou um elogio ao falecido coronel do Exército Brilhante Ustra, que ficou conhecido como torturador no regime militar. A reação nas redes foi muito mais indignação de muitos e admiração de alguns, do que surpresa.
     Mas não surpreende: o elogio partiu do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, junto a Jair Bolsonaro, conhecido admirador de Ustra e ex-capitão na reserva. Ambos, do Exército.
     Assim como tantos profissionais, os militares também têm corporativismo de classe. Nesse sentido, o elogio é compreensível, mas, considerando-se fatores históricos e sociopolíticos mais amplos, aí, sim, a crítica se faz necessária. 
     Afinal, vale frisar: Ustra faz parte da "lista maldita" de personagens da ditadura militar (1964-85), que foi um dos períodos mais sombrios da história moderna do Brasil, com um número ainda incerto de vítimas que morreram e/ou sofreram nas mãos dessa lista.
     Gaúcho de Santa Maria, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1938-2015) entrou no Exército aos 18 anos e seguiu na carreira militar. Coronel, foi para o DOI-CODI do II Exército em São Paulo em 1970, onde ficou até 1974. Os prisioneiros políticos¹, o conheciam como Dr. Tibiriçá. 
     Em 1986, adido no Uruguai, Ustra foi reconhecido como torturador pela então deputada Bete Mendes. Ela pediu sua exoneração, que foi negada pelo ministro do Exército². Respondeu, em sua versão, no livro Rompendo o silêncio. Em 2006 lançou A verdade sufocada, sua versão sobre a vida em SP. Mesmo na reserva, foi ativamente político, pró-ditadura militar e anticomunista.
     Bolsonaro declarou o livro de 2006 como "de cabeceira". Mourão nunca afirmou ter lido algum deles. Essas linhas podem parecer bobagem, mas a admiração de ambos e o ativismo extremista de Ustra determinaram o papel desempenhado pelas forças militares desde o regime militar, e os engodos populares que reforçam essa atuação.

-> Barbárie e censura "pela ordem"
     A tal "tranquilidade das ruas" dos nostálgicos era só aparente. Mal sabiam estes que as PMs trocaram seu papel de segurança pelo de repressão gratuita. Se acreditam que "bandido não tinha vez", também não a tinha qualquer cidadão pobre, negro, minoria étnica e sexual, mesmo sem ter "ficha corrida".
     A violência urbana grassava tanto quanto hoje. Nas periferias e na Baixada Fluminense, por exemplo, sempre ocorreram muitas execuções sumárias, atribuídas sempre como misteriosas pela grande mídia: crimes "sem solução", que caiam nas gavetas do esquecimento. Só nos anos 1980 que foi possível atribuir a maioria dessas execuções aos esquadrões da morte³.
     Chamadas de justiceiras, essas forças paralelas sempre foram temidas pelos moradores das periferias, que continuam a viver sob dupla opressão, delas e oficial. Elas matavam traficantes e criminosos comuns. Assim, tiroteios e homicídios eram tão comuns quanto hoje, mas sempre muito segredados devido à pesada mão da censura. E em nome da vida. 
     Se as pessoas acham que a violência das operações nas favelas do Grande Rio é recente, vale saber: sempre foram violentas no terror da ditadura militar. E classista desde sempre: aos mais abastados, o trato camarada, aos populares e mais pobres, tiro, porrada e bomba. 
     As prisões se tornaram verdadeiros presídios políticos. Salas de tortura foram criadas, tanto no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) quanto no Departamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) em todo o país. O primeiro foi criado em 1924, e o segundo, pela Operação Bandeirantes (Oban) em 1969, fruto do AI-5.
     Nas ruas centrais, a temida Polícia do Exército (PE) reprimia cidadãos com violência, alegando "restauração da ordem pública". Manifestações populares eram duramente reprimidas, sendo totalmente proibidas pelo AI-5. Mídias apoiadoras do regime fotografavam furtivamente. Foi aí que o termo "vândalo" passou a denominar os manifestantes populares. Até hoje.
     Por ordem institucional (AI-5), a PE rondava também nas ruas de forma a dissipar grupos de jovens estudantes e trabalhadores, visando silenciar possíveis conversas políticas. Gíria nova já era motivo suficiente para ir à delegacia para revistas humilhantes e responder perguntas num interrogatório longo e ameaçador.
     Nos distritos industriais do país, trabalhadores eram extremamente vigiados pelas chefias. Nas áreas abertas os grupos eram dispersados. Qualquer suspeita era comunicada pelos empresários às autoridades, que ordenavam a prisão dos "suspeitos" para averiguação - e houve perseguições, como na Wolkswagen, que fechou acordo para indenizar as vítimas.
     O caso Wolks vemos ser emblemático, pois foi o mais conhecido. Mas não o único. A diferença é que houve em torno de 100 empresas envolvidas em perseguição e delação, que tinham como recompensa muito incentivo fiscal e dinheiro. 
     E falando em censura e punitivismo, outro alvo conhecido foi a cultura. Numerosas peças de teatro foram punidas, e não raro uma peça liberada era interrompida pelas "duras" da PE para dispersar o público e gerar prisões de averiguação, sumárias, visando flagrar algum subversivo infiltrado. Muitos artistas foram presos, torturados, ou exilados.
     Ironicamente, um saldo positivo, um só, pelo menos, foi proporcionado nos tempos da censura: a imensa criatividade dos artistas nos mais variados ramos da arte. Sem apagar o tom da visada crítica política. Músicas e artes cênicas que são sucessos intermitentes. Um legado positivo na politização da patuleia. 
     A reabertura política em 1985, com a entrada de José Sarney, que baniu a censura, permitiu à grande mídia maior expressão de várias notícias. Todavia, ela permaneceu escrava do sistema econômico liberal sustentado pelos governos, com notícias e editoriais sem o contrariar. O que se esperava de educação política não ocorreu, nem no petismo. E agora tende a regressar.
     
-> A barbárie da concentração socioeconômica e educativa
     O regime militar também foi o período em que se iniciou legislação favorável a um dos atos que a história recente já mostrou ser um dos maiores problemas brasileiros: a privatização. Detalhe: o primeiro serviço a entrar nesse molde foi a educação. Não é por acaso que pipocou tanta escola particular a partir do citado período.
     Pode parecer não ser nada, mas a profusão de escolas particulares pode ser vista como outra forma de barbárie antissocial do Estado autoritário, pois, junto à aguçada concentração de renda, houve concentração de acesso à alfabetização por alunos de famílias de rendas médias a altas, excluindo a maioria dos pobres moradores das favelas das periferias.
     A ditadura foi a época dos vendedores ambulantes de mapa-múndi e coleções enciclopédicas. Nas bancas era muito comum comprar fascículos para encadernar em volumes depois. Parecia tudo muito liberado, só que não: muito das informações sobre sexualidade e gênero, entre outras coisas, eram sumariamente censuradas.
     A economia também foi muito concentrada na época. O Brasil tinha uma indústria centrada em distritos em SP e RJ. A economia agropecuária em crescimento e a mineração moviam o status quo econômico de exportador de matéria-prima para comprar, com taxas altíssimas, manufaturados. A inflação depauperava muito a economia popular e favorecia os mais ricos.
     A pujança estava nos estados do Centro-Sul do país, enquanto as regiões Norte e Nordeste eram restritas a respectivos projetos de mineração (Jari e Carajás) e turismo de praia. Como há décadas, hordas de sertanejos miseráveis migravam ao Sudeste, onde moviam mais a economia com o seu trabalho, mas continuavam pobres, morando nas favelas.
     A continuidade do êxodo rural nordestino, que ocorreu desde a era Vargas, foi fruto da pobreza extrema alimentada pela "indústria da seca", através da qual coronéis da política local e ditadores em Brasília compartilhavam a riqueza ilícita com a grana pública que seria destinada ao sertão.
     Enfim, a vida na ditadura militar não foi tão fácil assim. A exposição de tantos problemas da época se faz necessária no atual governo de admiradores de torturadores. Afinal, depende de nós resistir para que não voltemos totalmente 56 anos em 4 anos, ou menos. E desenganar a doce nostalgia.


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OBS: trechos em azul ou roxo são links, podendo estar na lista abaixo ou não. Fotomontagem de imagens via Google.

Notas da autoria:
¹ Junto com Fleury (DOPS/SP), Ustra foi reconhecido por numerosas vítimas, e condenado em 2008. Falecido em 1979, o colega não foi penalizado.
² Na época eram três ministérios militares, Exército, Aeronáutica e Marinha, reunidos em um só, a Defesa, desde 1990.
³ Antigo nome das atuais milícias, formadas por PMs, PCs, bombeiros e militares das FFAA.

Para saber mais:
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Alberto_Brilhante_Ustra
- https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Verdade_Sufocada
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Comiss%C3%A3o_da_Verdade
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Departamento_de_Ordem_Pol%C3%ADtica_e_Social
- https://pt.wikipedia.org/wiki/DOI-CODI
- https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/historia-quem-foi-coronel-ustra-ditadura.phtml
- https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160419_torturado_ustra_bolsonaro_lgb
- https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-32622008000300002&script=sci_arttext (acadêmico)
- http://www.ets.ufpb.br/pdf/2013/2%20S1%20Politicas%20Publicas%20na%20Educacao%20Superior/08%20GHIRALDELLI%20JR,%20Paulo.%20Ide%C3%A1rio%20Autorit%C3%A1rio%20e%20Leis%20da%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20sob%20a%20Ditadura%20Militar.pdf (acadêmico)
- https://www.dw.com/pt-br/volkswagen-vai-indenizar-v%C3%ADtimas-da-ditadura-no-brasil/a-55034209
- https://operamundi.uol.com.br/permalink/66818
- https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/08/politica/1410204895_124898.html 




segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Vulcões: temidos, mas irresistíveis


Quarto artigo de #Curiosidades, para falar, de modo bem resumido, didático e simples, sobre uma das forças mais incontroláveis e temidas da natureza, mas sempre atraentes: os vulcões.
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-> Introdução
     O tempo todo a nossa Terra mostra sinais, silenciosos ou não, de que é um ente vivo. Ou seja, o planeta é vivo.
     A crosta terrestre em placas em movimento em cima do manto que, por sua vez, atua em correntes de convecção tal como água fervente. O núcleo libera calor por irradiação. Um planeta inquieto em vida.
     Os sinais mais conhecidos são geológicos: terremotos e vulcões - estes últimos o tema deste artigo. O que é vulcão? Como surge e funciona? São todos de um tipo? Por que uns são mais fatais do que outros?

-> Vulcões: conceito, estrutura, materiais

     O vulcão é uma área de uma ou mais crateras de que se ejeta material fundido e muito quente vindo das profundezas da Terra. Devido a isso, o vulcão foi associado, em muitos mitos, ao inferno ou como morada de deuses.
     Na escola se aprende sobre vulcão como uma montanha cônica com cratera no topo. Mas há vários formatos e tipos na natureza, bem como em erupção e material ejetado.
     Sua estrutura é: o cone, a(s) cratera(s), câmara magmática e chaminé que liga cratera à câmara. Material ejetado: lava, cinzas, bombas, nuvem, dique, avalanche, lahar, fluxo piroclástico (figura ao lado).
     Os elementos da erupção se definem:
     Camara magmática: reservatório de magma de profundeza e tamanho muito variáveis. Se forma de uma pluma¹ mantélica.
     Magma: material pastoso da pluma armazenado na câmara sob pressão. Sua composição química varia conforme a região. Ao ser ejetado na erupção, se torna lava.
     Lava: material ejetado quente, fluidificado pela liberação súbita da pressão. A viscosidade depende do concentrado de sílica². Lavas fluidas geram rochas basálticas, e as viscosas, as andesíticas, riolíticas e dacíticas. Lavas com muitos gases geram rochas vesiculares.
     Diques: são de lava sólida de derrames antigos, depósitos piroclásticos ou de avalanche.
     Avalanche: resulta da ejeção de lava com detritos de um flanco desmoronado do cone.
     Fluxo piroclástico: mistura de cinzas (material muito fino e leve) com bombas, que desliza no flanco em grande velocidade.
     Bomba (piroclasto): fragmento em brasa da chaminé ejetado em erupção explosiva. Varia de pedra pequena a bloco do tamanho de carro ou ainda maior.
     Cinzas: material muito fino e leve que forma a nuvem do fluxo. Pode sair quente, e causa sérios danos materiais e à vida, matando por queimaduras graves e asfixia.
     Lahar: lamaçal de lava, fluxo piroclástico, detritos e gelo derretido. Típico de vulcões com cobertura gelada, é perigoso, às vezes fatal.
     Nuvem de vapor: tem água e gás sulfídrico. Fortemente energizada. Sua chuva é bem ácida. A cor às vezes muito escura advém das cinzas que decaem com a chuva e compõem o fluxo.
   
-> Tipologia
     Os vulcões têm formatos e atividades diferentes, daí haver classificações, cujos critérios não são ou podem não ser unânimes.
     Pelo formato podem ser:
     Estratovulcão: tipo clássico, cônico devido às sucessivas camadas de lava e cinzas somadas à inflação da câmara magmática. Pode atingir grandes altitudes, como os dos Andes.
     Escudo: elevação mais discreta de base ampla e crateras tipo caldeira, no topo ou não, como os vulcões havaianos.
     Fissural: em terrenos mais ou menos planos, se denuncia pela cratera "em rasgo", o que, às vezes, denuncia vulcão nascente.
     Peleano: elevação de um lado convexo e outro côncavo devido à(s) cratera(s); altura entre escudo e estratovulcão. O nome vem do monte Pelée, Martinica, que tem esse formato.
     A erupção pode ser (vide figura do início do artigo):
     Havaiana (efusiva): potencial explosivo muito baixo ou zero, lavas bem fluidas de fácil e amplo derrame, poucos gases.
     Explosiva³: é a mais comum. Violenta. Lava viscosa. Muitos gases. Fluxo piroclástico abundante e veloz. Nuvem ardente com gases, cinzas e chuva ácida. Alto potencial catastrófico, pelo fluxo e às tsunamis. Típica de vulcões próximos aos limites de placas tectônicas, comolinhas costeiras de continentais e ilhas formadas em processo de subducção.
     Subglacial: não explosiva: lava derrete a cobertura de gelo formando um lago logo acima. Explosiva: material pode romper a cobertura gelada e formar lagos ou derrames de lahar.
     Submarina: vulcões submersos. Explosividade bem variável: se nas proximidades da Indonésia podem ser explosivos, nas áreas abissais das dorsais meso-oceânicas a maioria tem erupção silenciosa. Alguns mais próximos da superfície apresentam sinais na água.

-> Como se formam

     Segundo os vulcanólogos, os vulcões se formam por duas vias (vide figura logo acima):
     Pressão com subducção envolvendo placas: oceânca-continental, oceânica-oceânica ou continental-continental;
     Rifte (divergência) de duas placas continentais, duas oceânicas, ou uma oceânica e outra continental; e
     Hot spot (ponto quente ou pluma), que forma ilhas em meio à placa oceânica ou sobrelevação continental, em geral formando novos vulcões locais. A origem dos hot spots é no manto¹.
     A velocidade de formação de vulcões parece ser maior em locais de grande instabilidade geológica, em decorrência da frequência dos eventos episódicos de grande magnitude, que deslocam metros de placas em poucos minutos. Quanto maior instabilidade geológica, mais ativos são os vulcões.
    Uma pluma leva centenas de milhões de anos desde a sua origem no manto inferior extremo até entrar na crosta. Acredita-se que as plumas atuantes na cadeia meso-atlântica, no rifte africano e no Havaí, por exemplo, iniciaram o abalo crustal desses locais em algum momento do Cretáceo (155-66 milhões de anos atrás), na era mesozoica.
     
-> Vulcões ativos; vulcões brasileiros
     No mundo, há pelo menos 1500 vulcões ativos, a maior parte no Círculo de Fogo, zona que circunda os limites continentais do Pacífico (e de sua placa tectônica) incluindo algumas ilhas deste oceano. Desse total, pelo menos uns 36 estavam em erupção no mesmo momento, 40 a 70 cospem fogo por ano, e uns 155 têm alguma atividade, segundo matéria da Uol de 2017.
     As áreas de maior atividade estão na América do Sul, América do Norte, Ásia oriental (Japão, Rússia), sudeste asiático (Indonésia, Filipinas), Havaí e Nova Zelândia. Mas vale salientar o Mediterrâneo, em especial a Itália (Vesúvio, Etna e Stromboli) e arquipélago de Santorini; Erta-Ale (Etiópia) e Ol Donyo Ugai (Quênia) no ativo Grande Vale de Rifte da África.
     A inatividade momentânea ocorre quando há, então, quietude geológica, seja por câmara magmática vazia ou sinais sísmicos praticamente nulos.
     Um vulcão é considerado ativo se tiver ocorrido erupção nos últimos 11 mil anos; extinto se não tiver atividade no citado tempo. Mas o senso entre os vulcanólogos é de cautela nessa classificação, pois é possível um vulcão surpreender com atividade após vários milhares de anos inativo.
     Entre os vulcões extintos mais confiáveis estão os brasileiros: segundo estudos detalhados, o registro de erupção mais recente ocorreu na baixada Fluminense há mais ou menos 20 milhões de anos. Foram achados, recentemente, vulcões de 2 bilhões de anos na Amazônia. E no sul de MG, interior de SP e Paraná, as últimas erupções ocorreram entre 180 e 100 milhões de anos.
     Se o Brasil foi palco de atividades vulcânicas espetaculares em eras passadas, conforme registros vastos por aí, hoje está calmo por estar em meio a uma placa tectônica, e os alinhamentos de falha existentes não serem tão profundos ao ponto de gerar hoje eventos como riftes ou sobrelevação por plumas mantélicas em ascensão, que poderiam ocasionar terremotos e vulcões.
     Mas a calma brasileira pode não durar para sempre. Portanto, se você deparar com alguma "esquisitice" numa elevação originalmente vulcânica perto de sua cidade, saiba: cada vulcão tem seu jeitinho de se mostrar. Se não, relaxe: já está mortinho da silva. Pelo menos até alguns milhões de anos à frente.
     
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OBS: trechos em azul e roxo contêm links que podem estar na lista abaixo ou não. Numerações sobrescritas (p. e., ¹) podem se repetir, indicando a mesma fonte de origem da pesquisa.

Notas da autoria:
¹ Há duas origens da pluma (hot spot, ponto quente): manto profundo, se a intrusão na crosta é no meio da placa tectônica que se sobreleva, ou em áreas de rifte / distensão; e zona de subducção (mergulho) da crosta no manto. Se a primeira ocorre em terra firme ou oceanos, a segunda pode formar câmaras magmáticas de futuros vulcões nas adjacências. (links abaixo)
² Composto mineral abundante na crosta e no magma, em concentrações muito variadas. Lava rica em sílica são viscosas e têm solidificação lenta. Lavas bem fluidas têm pouca ou nenhuma sílica. A presença de sílica resulta de mudanças químicas por contatos do magma com rochas sobrejacentes (veja aqui).
³ A Wikipedia mostra esse tipo em subtipos: pliniana, vulcaniana, estromboliana e peleana. Não há uma norma universal de classificação de vulcões e suas atividades.

Para saber mais:
- https://www.iberdrola.com/meio-ambiente/historia-da-vulcoes-em-erupcao
- http://geografiacontinenteeuropeu.blogspot.com/2012/10/tipos-de-vulcoes-da-bacia-do-pacifico.html
- http://vulcoes42.blogspot.com/2014/03/blog-post.html
- https://www.mundoecologia.com.br/natureza/tipos-de-vulcoes-submarinos/
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Erup%C3%A7%C3%A3o_vulc%C3%A2nica
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Portal:Vulc%C3%B5es
- https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2018/06/07/interna_internacional,965212/vulcoes-explosivos-e-efusivos-a-diferenca-entre-as-erupcoes-em-guatem.shtml
- https://memoria.ifrn.edu.br/bitstream/handle/1044/918/Fernanda%20e%20Karen-TIPOS%20DE%20VULC%C3%95ES.pdf?sequence=1&isAllowed=y (arquivo pdf)
- https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/redacao/2017/10/26/quantos-vulcoes-estao-em-erupcao-atualmente.htm

Do blog:
#Curiosidade - Brasil: tremor ou terremoto?

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Um decreto a desafiar a inclusão?


     Em 30/9, Jair Bolsonaro assinou o decreto 10.502/2020, o novo Plano Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e Com Aprendizado ao Longo da Vida, no qual enumera as diversas variantes da educação especial, e outras providências. 
     E, tal como já ocorreu com outros decretos diferentes, este já veio para causar polêmica tão logo foi disponibilizado para a geral.
     Ainda que o grosso da essência de documentos anteriores ao supracitado, mas a partir da LDB-1996, passados sem grande celeuma popular, tenha se mantido.
     O objetivo deste artigo se centra em analisar a reação social sobre a educação especial.

-> Pontos da grande polêmica
     A primeira foi no Inciso I do artigo 2, sobre o acolhimento "preferencialmente na rede regular de ensino...". A 'preferência' fez muita gente cuspir fogo.
     Vale dupla linha de análise aí. Numa delas, a LDB-1996 obriga a rede regular de ensino de acolher os alunos especiais (com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento (TGD) e altas habilidades-superdotação). Só os casos muito específicos e graves são encaminhados normalmente à escola especial.
     Na outra, a maioria das escolas regulares brasileiras carece de infraestrutura adequada para acolher a todos os 15 milhões de alunos especiais em vários graus de gravidade. As poucas realmente completas da rede pública já atendem à sua cota, e as particulares são inacessíveis para famílias de rendas mais baixas. Assim, milhares estão fora ou mal atendidos.
     Outro alvo de análise é a ligação entre os incisos III (educação equitativa) e VI (escolas especiais), que pode explicar o ápice da polêmica. 
     Educação equitativa* é um conjunto de "práticas necessárias e diferenciadas para que todos tenham oportunidades iguais" de modo a "valorizar ao máximo as potencialidades" e "eliminar ou minimizar as barreiras" a impedir a vivência plena do educando na sociedade. Mesmo sentido empregado há décadas para definir a "normalização".
     Escolas especiais são instituições de ensino paralelo especializado, com equipe múltipla** para atender a alunos que não foram beneficiados na rede regular. Idealizadas e fundadas nos anos 50 na Europa e EUA, as primeiras sedes brasileiras, dos anos 60, são regularizadas pela LDB-1971 na missão de "normalizar" para integrar os alunos na rede regular e na sociedade.
     As escolas especiais foram regulamentadas na LDB 5.692 de 1971, justamente quando surgiram as primeiras críticas às escolas especiais: elas eram mais depósitos de alunos, muitos deles desnecessários lá, e a normalização não resolveria o problema da segregação social dos alunos. Eram críticas de várias vertentes, que se convergiam nesses pontos críticos.
     Outro fator crítico foram os primeiros manifestos pela educação inclusiva, nos EUA e logo em seguida na Europa, na mesma época. Segundo seus organizadores, a inclusão seria uma vertente oposta à da normalização - tópico a ser exposto e analisado no item seguinte.
     Apesar das muitas críticas, as escolas especiais não foram banidas pela LDB de 1996, que prevê a elas a ação de intervir nos casos já explicados. O temor na polêmica com o novo decreto é de ameaça do retorno da normalização, embora não tenha, ao menos aparentemente, depreciações à prioridade inclusiva.

-> Inclusão vs normalização: análise da crítica pontual ao decreto
     Este item trata de um assunto central da análise dos críticos do decreto de Bolsonaro: afinal, o decreto deprecia a inclusão e faz voltar a temida normalização? Inclusão é utopia?
     É preciso entender que, sim, faz inteiro sentido o argumento que fundamentou a crítica dos primeiros manifestantes pró-inclusão à normalização das escolas especiais, o de serem práticas opostas, tese sustentada até hoje.
     A educação inclusiva se referencia na teoria socio interacionista de Lev Vygotsky***, que aponta a aprendizagem estimulada pelas interações intensas; e na construtivista de Jean Piaget, para quem os alunos são sujeitos ativos do aprendizado mediante a construção experimental, individual e coletiva dos conhecimentos.
     Embora não fossem educadores formais, Marx e Engels (séc. XIX) deram subsídios para se entender a educação crítica, dialética e dialógica, defendida por Paulo Freire (que Bolsonaro deprecia) e Noah Chomsky, entre outros. Subsídio este bem explorado nas teses de Vygotsky, e implícito em Piaget.
     Se a inclusão se baseia nas interações constantes entre os comuns e especiais a estimular o aprendizado e minimizar as limitações dos últimos, daí a defesa da educação destes na rede regular, explanar em como se processou a normalização não é muito simples, mas a sua compreensão não é difícil.
     A normalização ocorria por intervenções para maximizar a proximidade comparada entre o "grupo controle" de pessoas comuns e o especial, até o especial estiver apto a conviver em sociedade. Nos EUA houve o tipo mainstreaming, uma "integração" forçada para uma vida de produtividade, assistida ou não, após período interventivo na instituição.
     As críticas à normalização residiam tanto no processo em si, alegando instituir negação da deficiência, quanto na acusação de segregação, uma vez que, tanto na forma estadunidense quanto na brasileira, pois os sujeitos eram logo apresentados como "excepcionais", mesmo comprovada sua plena capacidade produtiva.
     Nesse sentido, e considerando-se a descrição conceitual de educação equitativa, se pesou a crítica ao decreto de Bolsonaro. Seria uma forma de fazer maximizar a importância das escolas especiais e da normalização? Será o retorno às intervenções educativas dos anos 60-70? Não há como afirmar: o documento não deprecia a educação inclusiva.
     Mas, ainda que o temor possa parecer exagerado ou sem fundamento, vale atentar, quando se trata de um destaque às escolas especiais e aos detalhes da sua supracitada missão.

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OBS: os trechos em azul ou roxo contém links que fundamentam as análises deste blog.

Notas da autoria:
*O conceito descrito é baseado no inciso III do art. 2 do decreto 10.502/2020.
**Equipe de vários profissionais especialmente habilitados para atender aos alunos conforme necessidades individuais. Nas escolas especiais trabalham educadores, médicos, fonoaudiólogos, psicólogos clínicos e terapeutas, psicopedagogos e neuropsicopedagogos.
***Principal nome de referência dos seguidores da inclusão, na especificidade da educação especial.

Para saber mais:
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm (decreto na íntegra)
- https://periodicos.ufsc.br/index.php/pontodevista/article/download/1042/1524 (normalização, inclusão)
- https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782006000300002 (debate inclusão)
- http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/2086 (práticas normalizadoras)
- https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/10/o-golpe-de-bolsonaro-contra-a-politica-de-educacao-especial-inclusiva-por-paulo-pimenta/ (crítica ao decreto)
- https://campanha.org.br/noticias/ (carta de análise do decreto na íntegra)


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Suicídio: um tabu crescente


Terceiro artigo da série #Curiosidades, falando sobre um tema abordado em todos os setembros. Também foi uma sugestão. Mesmo saindo de setembro, sempre vale a pena abordá-lo, o que se merece por todos os meses, todos os dias.
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     Todas as culturas têm assuntos tabus, que são evitados de se falar abertamente. Eles ocorrem mesmo em países tops em educação. Um deles é o suicídio, tema deste artigo. Por que esse acanhamento de falar de uma realidade aos nossos olhos?
     Inicialmente, falar de suicídio já remete ao tema da morte, que ainda vemos como um dos maiores temores e mistérios humanos. Temos naturalmente um instinto em viver, mesmo com tantos problemas a resolver.
     A explicação está em posições culturais ou religiosas: na concepção judaico-católica, se suicidar confronta com as leis de Deus que visam a perpetuação da vida e veem no tirar a própria vida o purgatório da alma. 
     Para os kardecistas, o espírito do suicida se destina ao Vale dos Suicidas, versão do purgatório católico, onde esses espíritos, eternamente transtornados pelo sofrimento terreno que levou ao ato extremo, vivem a eterna procura da sua já impossível solução. Os afro-brasileiros adotaram concepção muito parecida ou idêntica, conforme a corrente.
     Entre os evangélicos, o purgatório ou não existe ou é o inferno propriamente dito: é oito ou oitenta. Portanto, falar naturalmente de suicídio é mais problemático ainda, é coisa de poucos. Como o suicídio é pecado mortal, a alma padece no inferno.
     Mas, na maioria das nações a ciência ganha lugar crescente, paralelo à fé. Assim o suicídio ganha mais espaço para se debater junto ao público. Até no Brasil, país que faz piadinhas com forte pitada de mau gosto, a ciência cresce, o que é uma luz no fim do túnel num país religioso.
     Suicídio é um termo que vem do grego, significando "tirar a própria vida" ou "matar a si próprio" - um homicídio de si mesmo. É o ato extremo de alguém que já perdeu toda a esperança em minar sua carga de sofrimento ou o que levou a tanto sofrer. É uma definição genérica com causalidade ainda muito debatida em dados específicos e técnicos.
     A Psiquiatria e a Psicologia veem no suicídio a consequência última e extrema de agravo de transtorno mental preexistente (depressão ou episódio esquizofrênico ou psicótico de origem diversa, inclusive abuso de drogas). Psicólogos não descartam fatores que geram o sofrimento enorme por perda total de esperança em resolver sua causa-base.
     O grande mistério para essas áreas é o mecanismo psíquico que leva os pacientes ao ápice da aflição, no qual adentram, sem conseguir se conter, em incessante ideação suicida. Por isso que o tratamento mais adequado sempre envolve medicamentos e psicoterapia para empurrar o doente a enfrentar e vencer a doença e recuperar as esperanças e o prazer de viver.
     Na biologia há uma tese de que não haver suicídio entre outros animais, na suposta falta de consciência subjetiva, daí a ilusão de baleias se encalhar para se matar, por exemplo. Todavia, experimentalmente se percebeu que primatas têm capacidade de reconhecer seus semelhantes como outros. Nesse sentido, é coisa para se pensar.
     Superpopulação: o mito dos lemingues* poderia servir para a nossa espécie, visto que, em versão piorada, viramos praga: nosso aumento populacional hoje é mais rápido do que há 100 anos, e a exploração-consumo de recursos naturais se acelera, o que, supostamente, nos levaria a um autocolapso em massa em ápice de desequilíbrio. Mas, isso é mera suposição...
     Spoiler: quem acha que com a quarentena de Covid19 a Terra mostrou "recuperação rápida" se iludiu: pequenas mudanças pontuais não correspondem à realidade do todo.
     Na Sociologia, Émile Durkheim, eminência parda da área entre os séculos XIX e XX, vê no suicídio uma "trágica denúncia de uma crise coletiva", ou civilizatória, em um contexto amplo de "capitalismo puro" que prega um individualismo solitário, em vez da profunda e atraente individualidade.
     A visão sociológica importa, por estarmos há 30 anos nesse contexto**. Afinal, desde então o mix de relações fugazes, individualismo, consumismo e solidão aumentou muito, havendo um acompanhamento dos índices de suicídio, em especial onde os dados eram mais baixos.
     No Brasil e outros países em situação similar, a tal contexto se juntam políticas regressivas, desemprego ou perda rápida de renda, ameaças à função social do Estado e omissão na tragédia do Covid19 que podem engatilhar aumento nas taxas de suicídio. É uma hipótese plausível, já que muitos se dizem ansiosos ou depressivos com a quarentena.
     Segundo a OMS, ocorre um suicídio a cada 40 segundos no mundo. Embora os líderes do ranking estejam no Hemisfério Norte, países africanos e latino americanos têm subido em suas taxas. No Brasil é a segunda maior causa de morte de jovens entre 18 e 24 anos, e hoje alcança o 8ºlugar, à frente de alguns "tradicionais"***, como a famosa Escandinávia.
     Os transtornos mentais são uma realidade, devem ser assumidos e merecer o tratamento adequado e humanizado por profissionais habilitados. Mas também se deve reconhecer o valor da função social do Estado na saúde e outros serviços, quebrando o excesso hegemônico do contexto de desregulamentação financeira, cuja única função é perpetuar o stablishment de extenuação geral em seu nome.
     A contribuição conjunta das necessidades sociopolíticas para minimização dos problemas e o investimento integral às necessidades de saúde podem servir, quiçá, de amortecedores do avanço do suicídio no mundo. Mas, uma vez imposta globalmente essa ação conjunta, e as taxas continuarem avançando, aí será outro desafio: resolver um novo mistério humano.

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Atenção: os trechos em azul e roxo são linkados com algumas das fontes abaixo listadas.

Notas da autoria:
*Pequenos roedores do norte da Escandinávia que, ciclicamente, aumentam rapidamente suas populações locais, o que esgota o estoque alimentar local. Eles se dispersam em busca de novas fontes de alimento abundante. Por que eles quase desaparecem e retomam grandes populações a cada 3-4 anos ainda é um mistério.
**O contexto referido é o do atual capitalismo financeiro, no qual persistem características do industrial, como a sociedade de consumo, mas dependente de aplicações financeiras diversas.
***Alguns destes se perpetuam como tradicionais, como EUA, Rússia e Japão. 

Para saber mais:
- https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-social/suicidio-um-homicidio-de-si-mesmo
- http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932008000400005
- http://www.abrapso.org.br/siteprincipal/anexos/AnaisXIVENA/conteudo/html/sessoes/2902_sessoes_resumo.htm
- https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Suicidio-FINAL-revisao61.pdf
- http://periodicos.uniarp.edu.br/index.php/ries/article/view/236/285
- https://www.editorarealize.com.br/editora/anais/conbracis/2017/TRABALHO_EV071_MD1_SA5_ID1568_30042017192612.pdf
- https://darwinianas.com/2019/05/21/animais-nao-humanos-cometem-suicidio/
- https://www.megacurioso.com.br/animais/89373-e-verdade-que-os-lemingues-cometem-suicidio-coletivo.htm
- https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/09/09/suicidio-mata-uma-pessoa-a-cada-40-segundos-no-mundo-diz-oms.ghtml
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Suic%C3%ADdio_no_Brasil
- https://www.ecodebate.com.br/2019/02/01/as-taxas-de-suicidio-no-mundo-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

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