#Curiosidade: Gênero, sexualidade e transtornos
Entre os muitos assuntos que geram controvérsias até hoje em nossa sociedade, se destaca, sem sombra de dúvida, a diversidade sexual. E é a este tema tão complexo que este novo artigo da categoria #Curiosidades se dedica a versar. Apesar de prometer ser longo, será o mais sucinto possível, sem deixar de ser abrangente.
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Mari se declara cisgênero1 heterossexual, que namora Jorge, formando um casal heterossexual clássico. O casal admira os vários amigos, por "ser cada um de um jeito".
O amigo Maurício é gay cis, casado com Mário, também cis. Bia é lésbica cis de expressão andrógina e a namorada feminina. São casais homossexuais clássicos. A amiga Anita confunde Mari, que não sabe dizer se ela é simplesmente travesti, transexual ou drag queen. Anita namora um gay masculino clássico.
Mari fala de Daniel, um cis autodeclarado demisexual; fala também da pansexual Geisa, e de Marcos, que se considera yag. E ainda cita a intersexual Michele.
Ao final das apresentações na entrevista, Mari assume se sentir confusa com tantos termos, todos relativos a sexo, gênero e sexualidade, e na relação entre eles. Sobre isso será falado aqui.
-> Sexo e gênero: até hoje, muita treta
O ano era 2012, no governo Dilma Rousseff. O pastor e deputado Marco Feliciano se torna então presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara. Houve um alarido, devido aos comentários homofóbicos, sexistas, machistas e infelizes dele.
Em 2013, lançou projeto que reconheceria somente homem e mulher cis e heterossexuais, sem desconsiderar a diversidade sexual, e outro que protege pastores de acusação de homofobia nos cultos. Um tanto inconstitucionais e ridículos, os projetos não foram adiante.
A grita contra o projeto da heteronormatividade foi pela natureza excludente; e contra o protetivo aos pastores, por intolerância e poder incitar ao ódio. Foi neste que se notou a confusão de sexo com gênero e de orientação com identidade sexual. Todos têm diferença.
Sexo
No senso comum se reconhecem na biologia dois sexos, o feminino e o masculino, em observação de genitália, hormônios e cariótipos cromossomais (XX feminino e XY masculino). Mas pode haver combinações cromossômicas diferentes que gerariam os tipos intersexuais.
Homens com síndrome de Klinefelter têm cariótipo XXY, com características físicas femininas e masculinas. Mulheres com síndrome de Turner têm apenas um X, com caracteres algo masculinos, infertilidade, seios muito pequenos ou ausentes e pescoço alado. São condições raras, mas conhecidas pelos médicos.
Também raras são condições para hermafroditismo, ou seja, pessoas com traços das genitálias dos dois sexos biológicos. Uma minoria de sindrômicos de Klinefelter pode ter hermafroditismo. Essas condições diferenciadas não interferem na orientação ou na identidade sexual.
A mentalidade sobre sexo sexualidade e formação familiar evoluiu muito. Daí alguns países, por lei, terem desobrigado a definição do sexo nas certidões de nascimento das crianças.
Gênero
Sua definição se liga aos papeis e expectativas sociais sobre comportamentos, pensamentos e características do sexo atribuído a cada pessoa. Portanto, o papel social a ser desempenhado define o gênero, coincidindo com o sexo propriamente dito.
Na sociedade tradicional se atribui ao gênero masculino prover a família e ao feminino, cuidar da família e do lar. Com a maior participação feminina no mercado de trabalho, surgiu a definição para "profissões femininas" e "masculinas", que hoje são pouco diferenciadas. Mas os salários....
Compreende-se, assim, o gênero como convenção de papéis e expressões sociais. Mas há casos que "fogem do padrão", como as pessoas que não se identificam com o sexo biológico: os transexuais, ou transgêneros por sua identidade por papeis sociais ligados ao sexo oposto.
Os tipos mais comuns de transexuais são o trans-homem (mulher biológica, mas se identifica, age e se expressa como homem), e a transmulher (o homem biológico que se identifica, age e se expressa como mulher). Mas a regra de vida não é rígida, cada um constrói suas regras.
Há os que não se identificam com sexo ou gênero, se considerando queer, genderqueer ou "gênero fluido".
Essas definições também não interferem necessariamente na orientação sexual. As histórias são bastante diversas, em decorrência da flexibilidade de regras e preferências.
Orientação sexual
Se define pela seleção e comportamento sexual (sexualidade). Sua razão biológica é conhecida por ocorrer em centenas de outras espécies animais. Contudo, em meio sociocultural mais progressista, casais não tradicionais têm visibilidade maior com certa margem de tolerância.
Pode ser heterossexual (opostos se atraem); homossexual (atração pelo mesmo sexo), bissexual (atração pelos dois sexos), etc. Assim como ocorre no gênero, a orientação sexual é elástica em várias identidades.
O casal hétero pode ser cis ou transexual; o homossexual pode ser uma mulher cis com outra cis ou trans-homem, ou dois homens cis ou um cis e outro transmulher, ou ambos transmulheres ou trans-homens. Sim, eis uma mostra da elasticidade na homossexualidade.
Entre os bissexuais se destacam os yags, termo novo para homens de vida heterossexual, mas com eventuais encontros sexuais com outros homens, gays ou héteros. E há outros tipos.
Demissexual é a pessoa que só tem vida sexual com sentimentos. O pansexual é o tipo com vida sexual mais diversa, convivendo com cis ou transgêneros. O tipo poliamor se relaciona com mais de uma pessoa, e até existem famílias assim formadas.
Existem outras formas, consideradas bizarras, as parafilias: pedofilia, zoofilia, etc., tratadas no campo tanto psiquiátrico quanto criminal, na nossa legislação.
-> Identidade de sexo ou gênero
Uma vez se distinguindo sexo de gênero, fica menos complexo entender o que é identidade de gênero. Antes designado identidade sexual, o fenômeno se refere a uma conduta de autoidentidade por meio da qual a pessoa pode se sentir mais à vontade na sua sexualidade.
Há uma discussão sobre a denominação correta. Mas, vale a máxima na autoidentidade: quem se referencia no sexo biológico acredita ter identidade sexual, e quem se referencia o gênero, é identidade de gênero. A autoidentidade que é a mesma, mas o pensamento, a visão, depende de cada um.
Cissexual é a pessoa que se define como no sexo biológico: é mulher porque é do sexo feminino, não importa o traje e a eventual aparência andrógina. Cisgênero é a pessoa que vê correspondência do seu sexo biológico com o papel social. O mesmo ocorre e pode ocorrer com o sexo masculino.
Transexual designa a pessoa que se vê como do sexo oposto, acreditando ter "nascido com corpo errado". Transgênero seria muito mais a partir do papel social atribuído ao sexo oposto, daí mais do que se vestir e ter aparência feminina, é assumir uma vida atribuída a esse sexo oposto.
-> Escolha, instinto ou transtorno?
Há muito se discute sobre até onde a sexualidade humana pode ser considerada normal. A OMS considerou as orientações não heterossexuais como transtornos mentais até descartar, no fim dos anos 1970. Países ocidentais acompanharam a OMS, mas outros não, por motivações socioculturais.
A razão do descarte é o bom ajuste social observado nos homossexuais, e que o desajuste vem do meio social e não deles. Nisso, os homossexuais cis venceram, após anos de muita luta. Mas não os transexuais/ transgêneros e portadores de parafilias, ainda alvos de certo olhar clínico na psiquiatria.
Embora questionado, o olhar clinico deles tem lógica: eles avaliam por sinais ligados ao ajuste psicossocial, para ver possível associação com transtorno psíquico conhecido. Descartada qualquer disfunção psicossocial, eles veem a sexualidade "diferente" como instinto particular, à luz psicológica.
Até os anos 1980, a pessoa trans era tida como portadora de transtorno de identidade sexual. Mas, por conta da questão de ajuste psicossocial, a tese foi se dissolvendo, com forte ajuda da psicologia.
Conduta sexual a interferir na função social e laboral é um transtorno, e a pessoa sabe que sua sexualidade agride a moral comum. 'Dependência' sexual, pedofilia, zoofilia, necrofilia e outros são vistos como transtornos sexuais2. Algumas dessas parafilias são criminalizadas, inclusive no Brasil.
-> Sexualidade, legislação e educação
Homossexualidade, transexualidade e parafilias são criminalizados em alguns países, e não são só os islâmicos. A cristã Uganda condena os não-héteros a até 14 anos de prisão; Coreia do Norte e Irã geralmente penalizam à morte. E estes são apenas alguns exemplos.
Embora seja tão dura, a legislação iraniana permite a reversão da pena capital se um dos parceiros julgados aceitar a transexualização física, para sobrevivência e o casal seguir uma vida aparentemente heterossexual diante do peso social e da sharia. Exemplo local de hipocrisia.
Muitos países ocidentais são tidos como libertários em relação à diversidade sexual. De fato, na maior parte da Europa, nos EUA, Canadá e alguns países da América Latina as uniões homoafetivas são reconhecidas em lei. Mas, entre a lei e os valores morais há uma trincheira.
Um exemplo muito bom sobre isso é o Brasil: a legislação atual é progressista (apesar da grita de políticos fundamentalistas), criminaliza a homofobia, mas permanece líder mundial de assassinatos de minorias sexuais em dados absolutos.
A legislação não modifica o pensar de uma sociedade, ainda que colabore para moldar condutas das pessoas ao encarar a diversidade sexual. Ela impõe limites comportamentais, mas não interfere nos valores morais aprendidos em seios familiares e comunitários. Num país laico e democrático como o Brasil, nem pode.
É aí que entra o papel fundamental da educação - setor ainda mais desprezado e nevrálgico na era Bolsonaro, graças ao pesado lobby cristofascista e às travas crescentes à liberdade de cátedra. Se aulas de anatomia genital foram censuradas, discussão de gênero virou ideologia comunista...
É aí que se precisa atacar. Não existe ideologia de gênero. A discussão de gênero em si nada tem de ideológica, pois ela visa o debate sobre os papeis sociais de gênero e o que se pode imaginar do futuro, já que a sociedade está sempre sob constantes e novas influências.
Se os países tivessem evoluído bem nesse tema, desvinculando-se de valores religiosos arcaicos (pois a moral religiosa tem papel fundamental nisso), é muito provável que a discussão de gênero e de sexualidade hoje mal tivesse importância: já seria tratada de novo modo, ou ultrapassada.
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Imagens: Google (montagem da autoria do artigo)
Notas da autoria
1. Cisgênero, cissexual ou cis, se tratará no texto. O contrário de transexual, transgênero ou trans.
2. Será tema do próximo artigo de #Curiosidades.
Para saber mais
- https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-54123807 (sexo, gênero, orientação sexual, identidade)
- https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/02/140219_quebra_cabeca_evolucao_homossexualidade_lgb
- http://www.ghente.org/ciencia/genetica/turner.htm#:~:text=A%20s%C3%ADndrome%20de%20Turner%20%C3%A9,sexuais%20h%C3%A1%20apenas%20um%20X.
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