#Curiosidade: o perigo social em duas versões
Tendemos a confiar nos nossos próximos, mas o perigo está onde menos esperamos: no trabalho, na vizinhança do bairro ou da rua, ou na nossa casa. Este é o décimo-quinto artigo da categoria #Curiosidades, subcategoria Transtornos de Personalidade.
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Anderson voltava para casa acompanhado de seu amigo Rogério. Ambos conversavam, até que num momento este último, ao conferir o dinheiro pego no bolso, pediu ao amigo um pouco para inteirar o que pretendia.
Anderson então foi verificar sua carteira. Afinal, são amigos de anos. Ao tirar uma cédula, foi subitamente agarrado no pescoço, imobilizado pela surpresa e pelo mata-leão. Sem conseguir respirar, se debateu, mas o braço poderoso de Rogério o sufocava ainda mais.
Vários minutos depois de inglório esforço físico sem ar, Anderson faleceu. Satisfeito, Rogério o largou, pegou a carteira com tudo dentro e correu até desaparecer na noite, o corpo sem vida abandonado na rua mal iluminada e totalmente deserta.
O fictício relato acima revela um crime tantas vezes ignorado ou sem solução, cometido por alguém possivelmente... psicopata. É sobre esse transtorno, em duas versões, que este artigo visa tratar.
-> Transtorno de Personalidade Antissocial ou Psicopatia?
O Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS, TPA) é um dos mais conhecidos males psíquicos, por ser explorado no cinema como a popular Psicopatia. Mas, afinal, são a mesma coisa mesmo?
O nome psicopatia remete à Psicopatologia, área da Psiquiatria e da Psicologia que estuda os males psíquicos em geral, devido à etimologia: psyché = alma; pathos = doença. Nesse sentido em abordagem genérica e simplista, psicopatia seria qualquer patologia psíquica. Só que não se usa assim.
Psicopatia é nome usado no meio forense para diagnosticar presos com traços como ausência de empatia, remorso e sentimentos, e indiferença a regras sociais e legais. O diagnóstico forense tem peso na definição do veredicto final nos processos judiciais.
Mas há quem distinga TPA de psicopatia. Especialista em infratores violentos, Stephen Blumenthal diz que o TPA é basicamente impulsividade e agressão, enquanto psicopatia é total frieza e cálculo.
Nesse sentido, se conclui que a expressão da sigla TPA (ou TPAS) se reserva à denominação clínica pelo Manual de Doenças Mentais (DSM-IV e V), com codificação própria no Código Internacional de Doenças-10, da OMS.
Características, prevalência, etiologia, diagnóstico e tratamento - Stephen Blumenthal
O sujeito TPA não consegue controlar seus impulsos emotivos, sendo muito reativo e agride verbal ou 'no braço' por qualquer motivo. Receber um olhar insistente basta para explodir. É problemático no trabalho e na vida afetiva. É o "esquentadinho ao dobro", que precisa ser contido pelos outros para não ir além.
É o mais propenso a desacatar os policiais e servidores públicos, quando contrariado em suas necessidades ou vontades. Se não bate no provocador, desconta nos objetos. É propenso a abusar de álcool e drogas psicoativas, embora não obrigatoriamente.
Age de forma mal planejada ou sem plano prévio, indicando decisões por impulso, sem a reflexão racional necessária, daí as encrencas no trabalho e instabilidade empregatícia. Afetivamente é muito ciumento e possessivo, passível de cometer violência doméstica. Há remorso, ainda que a empatia seja diminuída.
Já o psicopata é autocentrado, frio e calculista. Os fins justificam os meios e não o contrário. Age com descaso às regras sociais e à lei e não tem empatia com o outro. Tem visão utilitária das pessoas e grande poder de convencer, por seu caráter naturalmente manipulador e à sensação de onipotência. Ele estuda cada gesto, olhar e emoção do outro.
Sempre atribui ao outro a sua própria culpa justificando-se com mentiras; culpa as vítimas por sua inocência; tem total indiferença aos efeitos negativos de sua exploração sobre outros por considerá-los apenas seus instrumentos de domínio ou de alcance de objetivos. Daí ter instabilidade empregatícia, em seu desrespeito à equipe e às trapaças.
Embora frio e calculista, o psicopata desconsidera as consequências de seus atos, que são efetuados sem motivo aparente, só para afastar o tédio. Se mete em irresponsabilidades como direção perigosa e gastos descontrolados, e delitos como assaltos, trapaças, ataques a patrimônio, estelionato, golpe, etc.
A grande maioria dos TPAs e psicopatas não mata. Os cinematográficos serial killers são psicopatas que atuam geralmente sós e com repetição, com um modus operandi pessoal, e entre cada novo crime há um intervalo, que pode durar até anos.
Se as relações afetivas do TPA são marcadas por ciúme explosivo, as do psicopata são impossíveis devido ao desprezo ao parceiro, promiscuidade, e pela índole irresponsável, arrogante e teimosa.
A explosão do sujeito TPA o expõe mais à prisão, embora tente resistir; o psicopata termina preso pelo reconhecimento do seu modus operandi criminal e, em geral, por não resistir à coerção. Daí a incidência ser alta entre a população carcerária (até 31% e 10%, respectivamente).
Prevalência: o TPA varia até 3,3%, e a psicopatia, a 1,5% na população geral, na proporção de 6 homens/ 1 mulher. Seria interessante estudar o meio político, dadas as facilidades concedidas1, que atraem os psicopatas, que justificam seus crimes em demagogias ou culpando colegas.
Etiologia: genética, e desencadeada pelo ambiente. Normalmente os TPAS têm história infantil de transtorno de conduta (TC, prejudicar os outros e crueldades com animais), mas nem todos os TC vão necessariamente ser TPAS. Se o TC infantil tiver hiperatividade (TDAH) junto, o risco de desencadeio do TPAS é maior.
Comorbidade: comum; geralmente, abuso de psicoativos, TPB ou TDAH2.
Diagnóstico: critério DSM-V. Sinal-chave: desprezo persistente ao direito alheio. Outros: desprezo delituoso à lei; frieza emocional; falta de empatia e de remorso; índole irresponsável; manipulação com mentiras convincentes.
Diferencial: TPB (este manipula para ser cuidado); TC (é padrão somente até os 15 anos); transtorno de abuso de drogas (impulsividade decorre do abuso) e TPN (narcisista não é enganador).
Tratamento: o TPA é tratável com psicoterapia cognitivo-comportamental e fármacos, em um curto prazo para evitar consequências legais (reincidentes ou não) em vez de mudar o paciente. O psicopata parece não responder ao tratamento devido ao processamento de castigo e recompensa (é indiferente à punição).
-> Reflexões finais
A opção de escrever sobre esses transtornos foi inspirada no requentar recente de uma matéria sobre a possível psicopatia de Jair Bolsonaro, dada a sua indiferença à atual catástrofe da C19. Mas, salienta-se a intenção não política deste artigo, embora mereça reflexão. Afinal, o presidente tem evidentes traços de psicopatia, descritos no artigo anterior.
Em suposto julgamento em tribunal internacional, o diagnóstico pode gerar um veredicto polêmico, que dependerá da análise pela legislação internacional. Vale salientar que os especialistas concordam que a frieza metódica revela ação consciente, não importam as consequências - traço visível no líder3.
A visão geral sobre TPA e psicopatia encontra discordância entre os especialistas, tanto no ambiente clínico quanto no forense, no que se refere à separação em dois transtornos diferentes ou em critérios de denominação para um mesmo mal.
A descrição do TPA pelo DSM-IV tende à unificação: um mal, dois nomes, que tem concordância de Morana et al (2006). Dois pontos motivadores são: não medir as consequências de seus atos e o perigo à sociedade. Além disso, prevalece em homens.
Já Stephen Blumenthal discorda ao apontar vários aspectos: TPA (explosão emotiva, algum remorso e empatia mitigada pela agressividade) e psicopatia (frieza, método, cálculo, explosão atitudinal, sem nenhum remorso nem empatia). Mas, não seria psiquiatrizar demais as variações psíquicas?
Pela análise de Blumenthal, a pessoa temperamental normal explode e após rancor posterior reflete sobre o erro e procura se retratar; e a pessoa TPA tem explosão descontrolada e rancorosa e posterior resistência à reflexão e retratação exigidas, com o remorso aparecendo tempo depois, após sofrer as consequências.
Assim, seguindo-se essa linha de análise, a pessoa psicopata aparenta distinção maior, o que não é necessariamente fácil, dado o poder manipulador e convincente. Uma tendência narcísica e se posar de vítima acompanhando os sinais clássicos podem ajudar no diagnóstico.
Em conclusão, vale salientar que cada um de nós tem uma caixa-preta psicológica, cujo conteúdo nem nós mesmos conhecemos em absoluto. Então, até prova em contrário, não devemos confiar em ninguém à primeira vista. Pois, o perigo social pode estar perto, ao nosso lado, ou na nossa casa. Em qualquer das duas versões.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1. No Brasil impera a cultura de imunidade que facilita o cometimento de crimes comuns ou políticos.
2. Sigla de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, ligado ao comportamento.
3. Bolsonaro.
Par saber mais
- https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/transtornos-psiqui%C3%A1tricos/transtornos-de-personalidade/transtorno-de-personalidade-antissocial-tpas
- https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462006000600005
- https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/psicanalistas-veem-bolsonaro-com-atitude-paranoica-e-onipotente-diante-da-pandemia.shtml
- https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/07/psicopatas-reabilitados-saude-ciencia.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2021/01/reflexao-psicopatia-de-bolsonaro-e.html