quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Anomia policial, bolsonarismo, terra arrasada


     2019: na ponte Rio-Niterói, PMs cercam ônibus para pegar suposto sequestrador. Um sniper acerta o criminoso, matando-o. Wilson Witzel, o então então governador, desceu do helicóptero de onde acompanhou a ação e comemorou com a PM.
     Acompanhado do secretário de segurança, o mesmo Witzel comemorou o acerto de um de seus snipers em morador, em sobrevoo de helicóptero sobre uma comunidade carioca. Detalhe: morador segurava a filha de 1 ano no colo.
     Spoiler: afastado, Witzel foi substituído pelo vice Claudio Castro. Que não é flor que se cheire.
     Em todo o tempo de 2019 e 2020, a PMERJ, em operações em comunidades na zona metropolitana, matou vários moradores sem maus antecedentes. Destes, dezenas de crianças e adolescentes, sem incluir subnotificações.
     No Natal 2020, o deputado estadual Sargento Farhur (PSD) comemorou em se Twitter a morte de suspeito em suposto tiroteio entre a PM e ladrões em tentativa de assalto a residências:
"Aconteceu em Londrina-PR. Bandido bom é bandido morto. Foi p/ o inferno antes de tirar a vida de uma pessoa de bem. Estava assaltando uma residência com uma arma de fogo. N gostou do meu comentário? Simples, deixa de me seguir e vai seguir a Maria do Rosário"
     A menção à deputada federal petista se explica: o "ladrão armado" morto pela PM era um garoto de 12 anos.

-> Motivações

     Os fatos acima são apenas exemplos do cotidiano das atuações policiais e, também, do crime organizado: comemorar operação que tenha batido a meta1, ou seja, resultado em mortes. Um ato tão conhecido pelos cidadãos pobres quanto pelas classes abastadas e sua cultura dominante.
     É sabido, pelos especialistas, que a matança de pobres pelos PMs se reflete diretamente da cultura dominante de extermínio de "classes perigosas". Ironicamente, classes estas das quais provêm os PMs de patentes inferiores
     Diversos artigos anteriores deste blog já traçaram sobre a violência policial, bem como sua origem. O que leva à elaboração deste artigo é a comemoração feita pelos PMs e autoridades políticas.
     Na verdade, comemoração de feitos violentos pela PM e pelas autoridades políticas não é novidade. Só não era explícito, e sim nos interiores das corporações e dos gabinetes, respectivamente. A máxima exteriorização era solene, em homenagens condecorativas a militares do alto oficialato em eventos solenes aplaudidos pela multidão. 
     Se mostra que a comemoração da violência é histórica, influindo com muita intensidade sobre o constructo sócio histórico da nação brasileira. Uma nação de violência, sangue, medo e lágrimas.
     Já foi explicado também, neste blog, que a ditadura militar também impôs os métodos de guerra urbana de hoje, por ter ensinado às PMs a ver entre o povo o inimigo. O povo virou este inimigo, o que se intensificou após a eleição de Bolsonaro.
     É fato explícito: na nossa construção sócio histórica, a cultura dominante assumiu a intimidação dos pobres pelas forças militares, mesmo às custas de algumas vidas. As operações tétricas nas favelas hoje são a continuidade da velha política de segregação dos pobres.

-> Comemorações das autoridades, a terra arrasada: reflexões finais

     Como foi descrito acima, não é nenhuma novidade militares comemorarem os feitos operacionais, e ainda serem condecoradas pelos políticos. Mas, se antes a comemoração era mais contida, hoje se escracha nos helicópteros e nas redes sociais.
     Tal escracho se permitiu com o apoio ao então candidato Bolsonaro2. Sua liderança nas intenções de votos se refletiu diretamente nos candidatos a governador, dando vitória à ideologia do "bandido bom é bandido morto" sustentado pela onda bolsonarista.
     Talvez o bolsonarismo explique o o atual escracho das autoridades políticas e das PMs. O presidente por si já é o escracho em pessoa, que encontrou na classe abastada emburrecida e em "pobres de direita" ampla simpatia. A face corrosiva do populismo arditista que vê nas armas a solução dos problemas.
     Na ideologia dos fins justificam os meios, a comemoração não é pelas "corajosas" operações nas "perigosas favelas de bandidos", mas na covardia de ceifar vidas como meta alcançada. E comemoram ali mesmo, diante de olhos temerosos e tristes e o político comemora do helicóptero ou num palanque.
     Nesse populismo corrosivo, se mostra a faceta do arditismo que prega a resolução dos problemas pelo radicalismo das armas. Mas, autoridades públicas que comemoram a morte de cidadãos pobres em nome dos que pouco contribuem já é anomia policial e sociopolítica - é terra arrasada.

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Notas da autoria:
1. Na linguagem da PM, é conseguir uma cota determinada de mortes numa operação ou em certo prazo.
2. O caráter deformado de Bolsonaro é sustentado pelos defeitos culturais supracitados somados à cultura da caserna.

Fotomontagem: autoria; imagens: Google.

Para saber mais:
https://www.metropoles.com/brasil/deputado-comemora-morte-de-menino-de-12-anos-em-confronto-com-a-pm
https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/12/mortes-de-pobres-e-pms-pontos-comuns-e.html
https://www.blogger.com/blog/posts/524395237665230473?hl=pt-BR&tab=jj
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/12/crise-economica-e-extremos-da-direita.html
- https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/02/08/80percent-dos-mortos-por-policiais-no-rj-no-1-semestre-de-2019-eram-negros-e-pardos-aponta-levantamento.ghtml
- https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/10/4883162-mortes-pela-policia-atingem-patamar-recorde-negros-sao-as-maiores-vitimas.html


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Curiosidade: Depressão, o vazio de si


Devido à vivência sociocultural, algumas doenças são estigmatizadas - até hoje. Uma delas é a depressão, tema deste sétimo artigo de #Curisiosidades, que pretende contribuir para desmistificar este importante mal.
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     As risadas dos amigos irritam Juca, que está introspectivo, desmotivado, abatido sem fim, querendo se afastar, e se senta num banco próximo. Um amigo se aproxima e o chama, mas ele se recusa. O amigo se afasta.
     Instantes depois uma amiga se aproxima do rapaz, que está cabisbaixo. Ela pergunta o que houve, ele diz "nada". Ela ri baixo imaginando ser "frescura de amor partido", e se afasta. 
     Os demais lhe percebem a tristeza, mas nada fazem. Rindo, um deles é indiscreto: "que frescura é essa". Juca não reage, mas a palavra o toca: tapa o rosto, uma ideia fixa aparece: quer só livrar o mundo do pior - dele próprio.
     O tempo passa, os amigos se despedem, dele também, e se vão. Ele ali fica, na solidão da praça, na ideia fixa que o tortura ainda mais: livrar o mundo do pior- ele mesmo. Não, não é tristeza, frescura, nada disso. Ele está deprimido.
     Passa o tempo, os amigos se despedem, dele inclusive, e se vão. Ele ali permanece, imerso na ideia fixa que o tortura ainda mais, sem que pudesse entender. Não, não é mera tristeza. Ele está deprimido

-> Sobre depressão: visão geral

     A depressão é uma alteração psíquica, um transtorno de humor e de afeto, variável em sintomas e gravidade. Esse conceito genérico foi criado a partir das observações clínicas de pessoas com sintomas-chave como abatimento, tristeza e ideação autodestrutiva.
     O termo depressão é uma alusão da pessoa que se sente "para baixo", tamanha a desmotivação para tarefas simples como tomar um banho, um líquido ou algum remédio.
     Esse é apenas um dos vários objetos de estudo da Psicopatologia, ramo científico que visa estudar os transtornos psíquicos visando sua compreensão, e que nasceu de estudos pioneiros de Pinel e Esquirol no fim do século XVIII, e de Emil Kraepelin no século seguinte. 
     Esquirol descreveu, em 1819, quadro de "melancolia sem delírio" com tristeza, abatimento, desgosto e ideia fixa. Autor do primeiro Compêndio de Psiquiatria, Emil descreveu em 1883 o que hoje é o conhecido transtorno bipolar ou lobitimia. 
     Hoje, a Psicopatologia é o objeto-chave dos estudos específicos da psicologia e da especialidade médica Psiquiatria, que se juntam no intuito de devolver aos pacientes a qualidade de vida prejudicada pelos transtornos psíquicos. E a depressão é um dos 
     A Psicopatologia se tornou o objeto-chave da medicina psiquiátrica, que cuida do estudo clínico, de etiologia e de meios para aliviar ou combater o sofrimento imposto pelos transtornos. A depressão é um dos transtornos mais desafiadores na atualidade.

Visões subjetivas de diferentes saberes
     Existem várias vertentes, que possuem visões subjetivas sobre a depressão: a médica, a biológica, a psicológica, a sociológica, sem descartar interdisciplinaridade, por influência filosófica. Eis:
     Biológica- visão organicista do fenômeno para a investigação científica para ver a possível origem evolutiva (pressões genéticas e ambientais).
     Médica- visão organicista e finalidade científica idem, mas visando desenvolver meios de mitigação e/ou cura dos transtornos. 
     Psicológica- adota postura flexível, a partir das perspectivas do indivíduo assistido, com métodos clínico e psicanalítico. Também assimila influência sociológica.
     Sociológica- algumas referências antropológicas e culturais como estímulos psíquicos negativos.
     Pelas finalidades supracitadas, a psiquiatria tem seu humanismo reconhecido pelas ciências humanas como psicologia e sociologia, independente de suas visões próprias. A depressão é hoje um objeto de constante estudo psiquiátrico.
     Psicologia e sociologia compartilham suas visões em depressão no estudo de fatores estimuladores externos. A primeira auxilia a psiquiatria, e a segunda aponta fatores econômicos e culturais sobre a amplificação do transtorno.

Tipos de depressão
     A depressão é um transtorno de manifestação heterogênea, sendo por isso classificada em tipos
     Maior- a mais comum e genérica. Tristeza, desânimo, angústia, e alterações (concentração, apetite, sono, libido) persistentes. Graus leve, moderado e grave. Trata-se no combo de antidepressivos, hábitos saudáveis e psicoterapia.
     Sazonal- crises no inverno, em países bem frios como Escandinávia, Canadá e norte dos EUA. Se manifesta com melancolia. Trata-se no combo acima e fototerapia1 (o inverno quase não tem luz solar) para estimular o cérebro.
     Distímica- termo em paulatino desuso. Melancolia leve e persistente, mas prejudicial com o tempo. Trata-se com psicoterapia e alguma atividade física.
     Atípica- necessidades alteradas (insônia ou sonolência, perda de apetite ou ânsia de comer) que pioram no fim do dia, com humor sensível. Trata-se com o combo, e estabilizadores de humor para os casos mais instáveis ou graves.
     Psicótica- além dos sintomas corriqueiros, há delírios de perseguição ou pressentimentos negativos. Raros casos graves de se acharem mortos. Tratamento: antipsicóticos são essenciais; antidepressivos dependem do caso, com avaliação profissional. É um tipo bem prejudicial ao paciente e à família.
     Mista- confunde com ansiedade; tem pensamento acelerado, compulsão de compras, de sexo ou de reação a outrem. Tratamento: estabilizadores de humor, antes de se pensar em antidepressivos2.
     Melancólica- angústia, falta de energia e tristeza absoluta muito intensos pela manhã, melhorando durante o dia. É facilmente identificável, mas necessita suporte de família e amigos para incentivo. Se trata com o combo; a eletroconvulsoterapia3 (estímulos elétricos), só em casos graves.
     Vale salientar a infantil, que se manifesta na infância e pode ser intrínseca (congênita ou genética) ou extrínseca (abuso por adulto). Seu diagnóstico chancela tratamento mais leve e melhora a qualidade de vida dos pequenos, visando um futuro melhor quando crescidos.
     
-> Reflexões finais

     Independentemente de sua heterogeneidade clínica, a depressão é, como qualquer outro transtorno psíquico, um desafio à vida dos pacientes, pois altera padrões de pensamentos e pode abrir portas para uma percepção negativa de si mesmo, o que é muito perigoso.
     A fixação de ideação negativa, que afeta a consciência, é o gatilho para muitos casos de suicídio de depressivos e outros. Embora não totalmente elucidada pela ciência, pode estar ligada a um déficit de serotonina, neurormônio que estabiliza humor e pensamento.
     Mas não se deve descartar os estímulos negativos, como os midiáticos, como a tragédia4 brasileira e notícias sobre famosos que vivem a exibir seus corpos "photoshopados" nas academias (ou no PC), que causam forte baixa autoestima em leitores mais sensíveis.
     Apesar de setembro ser o mês comemorativo de prevenção ao suicídio, todos os dias são válidos em se instruir sobre os transtornos psíquicos. Para tanto, é preciosa a iniciativa de todos os meios de mídia, sociedade e esferas governamentais (ou ONGs), para a promoção da saúde psíquica.
     Pois, apesar de seus riscos, a depressão é perfeitamente tratável, e até curável em muitos casos, se seguir as regras com afinco. O reconhecimento pelo paciente é o primeiro grande passo para o objetivo final, que é o combate a um dos mais temidos e desafiantes problemas de saúde pública de nosso tempo.
     2020 está no fim, e chegamos vivos. Que todos tenham por todo 2021, e anos posteriores, o desfrute do mais valioso dos direitos: o de viver a vida.

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Notas da autoria:
1. Realizada em recinto iluminado, ela estimula o cérebro do doente a secretar neurormônios estabilizadores.
2Antidepressivos podem acelerar mais o pensamento, daí a necessária análise do profissional antes de receitá-lo.
3. Eficácia comprovada nesses casos, segundo o psiquiatra Ricardo Alberto Moreno.
4. Tragédia sociopolítica, socioeconômica e institucional presente, que afetam a nação.

Imagem: Google.

Para saber mais:
https://www.scielo.br/pdf/pcp/v27n1/v27n1a09.pdf (depressão segundo a Psicologia)
- https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0828.pdf (idem)
- http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2007000300008 (psicopatologia e depressão)
- https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/quais-sao-os-principais-tipos-de-depressao/
 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O triste fim de Marcelo Crivella


     Uma série de elucubrações veio à mente para estipular um bom título para o tema deste artigo, que visa tratar do futuro ex-prefeito Marcelo Crivella, do Rio de Janeiro. Acabou vencendo a paráfrase de O triste fim de Policarpo Quaresma, do impagável Machado de Assis.
     Venceu por ser o mais próximo do conteúdo a ser explorado neste artigo, que visa analisar sobre o tortuoso caminho político de Crivella na prefeitura do Rio, assa inexitoso nas mais variadas esferas, e que o levou à prisão recente, alvo de entrevero jurídico.


-> Marcelo Crivella: uma trajetória sinuosa

     Marcelo Bezerra Crivella nasceu no Rio em 1957. Na curta carreira militar tornou-se tenente pela Escola de Oficiais da reserva. Graduou-se engenheiro civil em Barra do Piraí e se mestrou na África do Sul nos anos 1990. Só retornou ao Brasil em 1998, após atuação missionária na África subsaariana.
     Responde pela disseminação da IURD pelo país, atraindo classes populares e médias, entrando na política a partir de 2002, quando licenciou-se da atividade religiosa. Foi deputado, senador e prefeito.

Fé e a polêmica IURD- O menino Crivella era católico, mas teve influência de parentes evangélicos. Frequentou de início a igreja Metodista. e depois a Pentecostal Nova Vida. Em 1977, participou da fundação da IURD, de seu tio Edir Macedo, na qual se tornou pastor em 1986, e bispo1 em 1994.
     A IURD é neopentecostal: tem cultos adaptados à cultura de fé brasileira e prega a sua Teologia da Prosperidade, segundo a qual se obtém conquistas materiais e afetivas pela fé. Na África, Crivella criou os help centers (centros de ajuda) para atender aos pobres, e no Brasil atuou no Projeto Nordeste, com a fazenda Nova Canaã.
     Como cantor gospel e por sua origem mais abastada, Crivella queria renovar a imagem da IURD para atrair a classe média. Pregou cultos pelo país, com bons resultados. Nessa época, cogitou-se poder suceder Macedo quando este sair de cena, mas... difícil: o tio segue pimpão da Silva!
     Na compra da TV Record pela IURD, Crivella foi acusado de participar como laranja no processo, e as empresas-sócias de evasão de divisas, contas ilegais no exterior e sonegação de impostos. Daí, parte da patuleia perceber na IURD mais do que uma igreja, mas uma grande organização empresarial.

A polêmica ONG Fazenda Nova Canaã
     A Nova Canaã é uma ONG da IURD erigida em terreno na área rural de Irecê, interior baiano, para cultivo de vegetais, criação de animais, educação profissional, fabrico de massa de tomate e têxtil, e esporte e lazer. O dinheiro da compra do terreno e construção foi obtido da venda de mais de 1 milhão de cópias do CD Mensageiro da solidariedade, de Crivella.
     Foi projetada pelo braço social da Record Instituto Ressoar, tendo sua primeira produção em 2001. A ela Crivella atribuiu a produção pioneira de cenoura, cebola e beterraba, mas a Folha de SP esclareceu que Irecê já os produzia, irrigando com poços artesianos, bem antes da chegada da IURD.
     A fazenda foi alvo de investigações. Em 2013, a Comissão de Ética da Presidência da República investigou benefícios irregulares do Ministério da Pesca para a produção de tilápias, após denúncia publicada à época pela revista IstoÉ. Houve rumores de más condições nas instalações, mas não foram encontradas fontes a confirmar. Mas, enfim, ela foi o trampolim para a carreira política de Crivella.

Carreira política: da montanha russa ao ocaso
     Crivella entrou na política em 2002, num populismo de direita. No PL, foi eleito senador no slogan "deu certo no sertão, vai dar certo no Rio". Mas com autonomia em relação à IURD devido à lei que veda participação de entidade religiosa2 na política. Foi eleito senador, participando de áreas como direitos humanos, economia, CPIs, etc.
     Tentou a prefeitura em 2004, mas perdeu para Cesar Maia, e foi acusado de não declaração de ações da Record, mas se safou. Desligou-se do PL após vários colegas, inclusive o bispo Rodrigues3 serem acusados de compras de votos do governo, indo ao PRB e tentando, com nova derrota, o governo do RJ em 2006.
     No Senado fez pontos populistas como a lei que destina parte do FGTS para saneamento básico e habitação popular, ProGás4, regulamentação da lei de biossegurança, controle de publicidade de bebida alcoólica, incentivo ao pleno emprego, educação sexual na Ed. Básica. Mas é contra o aborto mesmo em casos legais, preferindo a esterilização voluntária a partir dos 18 anos. 
     Como ministro da Pesca do governo Dilma, foi acusado de repassar benefícios irregulares para a Fazenda Nova Canaã, conforme descrito acima. Após Dilma, o órgão foi extinto, e Crivella tentou a prefeitura em 2016, sendo eleito mais pelo temor público da eventual vitória do adversário Freixo.
     Mas, como prefeito, foi negativo. Obras paradas, fundação de sedes da IURD com grana pública, censo religioso irregular com servidores, sumiço do tomógrafo da clínica da Rocinha durante a primeira alta de C19, demissão em massa de servidores da saúde, fechamento de clínicas, peculato, Guardiões nas portas de hospitais, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa, etc.
     Impopular, tentou reeleição e foi derrotado por Eduardo Paes. Afastado da prefeitura, foi preso em Benfica, acusado de liderar esquema de propinas. Após 24 horas, conseguiu a domiciliar por ordem do STJ. Um imbróglio jurídico que rendeu muitas críticas nas redes sociais e até de juristas.
     O imbróglio se deveu à gravidade do crime, de liderar QG da propina em corrupção na conta da prefeitura. Além de Crivella, foram presas seis pessoas, inclusive o operador Rafael Alves, que se referia ao prefeito como "01". A prisão derivou do desdobramento da Operação Hades, por meio de delação do doleiro Sérgio Mizrahy, preso via operação Câmbio em 2019.
     Alegando grande relevância das provas do crime, a desembargadora Rosa Helena Penna Pacheco Guida defendeu o retorno do prefeito afastado à prisão,  tendo concordância da maioria dos internautas que acompanham a matéria.
     Assim, se verifica que Crivella pode ser um colaborador razoável, mas como administrador foi tão ruim quanto possível. IURD à parte, as acusações que pairam em seus ombros atestam que fé e caráter independem um do outro. E, justamente nessa conjuntura, que Crivella poderá ver seu ocaso político.
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Notas da autoria:
1. O mais alto cargo da hierarquia religiosa da IURD.
2Essa lei é abertamente transgredida pelos líderes, que impõem curral religioso em suas igrejas.
3Se refere a Carlos Rodrigues, da IURD, atualmente fora da cena política.
4Programa Nacional do Gás, que trata sobre recursos para extensão de gasodutos para indústrias brasileiras.

Crédito da imagem: Google imagens

Para saber mais: 
- http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/crivella-marcelo
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcelo_Crivella
- https://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/poder/eleicoes-2016/2016/10/1825318-fotos-mostram-crivella-fichado-nos-anos-1990.shtml
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2020-12/justica-do-rio-afasta-prefeito-marcelo-crivella-do-cargo
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-12/prefeito-do-rio-marcelo-crivella-e-encaminhado-policia-no-rio
- https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/12/23/o-que-se-sabe-sobre-a-prisao-de-crivella.htm
- https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/26/desembargadora-defende-em-oficio-para-o-stj-que-crivella-volte-para-a-cadeia.ghtml
- http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/05/comissao-de-etica-apura-denuncias-contra-ministro-marcelo-crivella.html
- https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/22/entenda-o-esquema-que-levou-a-prisao-de-crivella.ghtml
- https://www.poder360.com.br/justica/desembargadora-defende-no-stj-que-crivella-volte-a-ser-preso/
     

sábado, 26 de dezembro de 2020

O Congresso entre o Centrão e... Centrão

     Com a perda do direito à reeleição à presidência parlamentar por decisão do STF, em respeito à constituição, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre (ambos DEM) buscaram nesses dias os substitutos respectivos e os apoios suprapartidários.
     Maia conversou com colegas e escolheu Baleia Rossi (MDB) favorito, mas encara outros nomes com boas chances de vencer, como os governistas Arthur Lira e Marcos Pereira, Fábio Ramalho e Fernando Coelho Filho.
     
Já Alcolumbre encara uma situação mais difícil. Ele acena positivo para Eduardo Braga (MDB), favorito de Renan Calheiros, e há outros nomes como Eduardo Gomes (MDB), os tucanos Antonio Anastasia e Tasso Jereissati, e Álvaro Dias (Podemos), caciques tradicionais na casa, cuja influência é inegável.
     Mas vale salientar que não é tão simples quanto parece: a escolha de determinados nomes deparará com as preferências ligadas às bancadas temáticas, que já exerceram poder de fogo decisivo em várias votações importantes nas plenárias.

-> A influência das bancadas temáticas

     Alguns desses nomes compõem as bancadas temáticas, agrupamentos políticos suprapartidários que defendem temas que lhes sejam comuns e considerem relevantes. As mais conhecidas são a da bala ou segurança pública, a da bíblia, a ruralista, a ambientalista, a de minorias e a feminina.
     Nomes femininos fora da bancada da mulher defendem pautas conservadoras. Já a ambientalista e a de minorias defendem pautas progressistas, agregando projetos comuns à esquerda. Mesmo minorias, podem fazer barulho suficiente para brecar votações importantes.
     Liberais na economia, as bancadas conservadoras são maioria e têm alguns nomes do centrão. Mas o voto das progressistas tem poder, devido ao recente apoio a Baleia Rossi. O problema é o vacilo do PT por conta do voto favorável de Rossi ao impeachment de Dilma Rousseff.
     Tal apoio parece contradito, mas não é. Existe um clima de consenso sobre dois temas valiosos no momento: a corrida pelo plano de combate à C19 e o meio ambiente, assuntos que certamente sofrerão solene desdém em caso do presidente ser um bolsonarista.
     Nessas duas pautas, já houve diálogos entre nomes da oposição, como Jandira Feghali (PCdoB), Paulo Pimenta (PT) e Marcelo Freixo (PSol) com Rodrigo Maia, que já acenou positivamente sobre os temas antes mesmo de o STF dar seu veredicto contra a reeleição dos atuais presidentes.
     E não é só isso.

-> Os governistas Lira e Pereira: poderes e dificuldades

     O deputado federal Arthur César Pereira de Lira (PP-AL) é formado em Direito, tendo exercido a advocacia. É também empresário e pecuarista. Entrou na política na década de 1990, pelo extinto PFL, depois passou pelo PSDB, no PTB e no PMN, até o atual PP.
     Permanece bastante próximo do presidente Jair Bolsonaro, independentemente da saída deste do PP nos tempos de deputado. Hoje é um dos nomes mais fortes da sigla na Câmara e da turma do Centrão.
     Entretanto, pesam sobre seus ombros várias acusações, como improbidade administrativa, obstrução da justiça (participação em esquema de fraude- operação Taturana), enriquecimento ilícito, violência doméstica sobre a ex-mulher, e em crimes financeiros sobre a Petrobrás na operação Lava Jato.
     Tamanha quantidade de acusações não impediu a sua sólida permanência na vida pública, mas pode implicar em sérias dificuldades na corrida eleitoral na Câmara, junto a colegas sobre os quais pesam acusações mais leves ou sem evidências que os desabonem.
     Já o deputado Marcos Antônio Pereira tem formação em direito (exerce a advocacia), professor de Direito e bispo licenciado da IURD1. Foi ministro da Indústria e Comércio de Temer e atualmente é o primeiro vice-presidente do Congresso.
     A vida pública de Pereira é inexpressiva, comparada com a de Lira. O que não impediu a menção de seu nome na Lava Jato por ter recebido propina da Odebrecht. Tal acusação lhe valeu renúncia ao então cargo de ministro da Indústria e Comércio.
     Ser bispo da IURD é uma faca de dois gumes: se por um lado tem apoio da ala evangélica inclinada por Bolsonaro, por outro enfrenta ferrenha oposição por não ser um nome tão expressivo, indo mais por indicação de Edir Macedo, dono da IURD.
     Mas a indicação não foi somente do chefão da IURD; é também fruto de antiga reivindicação da parte evangélica da bancada da bíblia, que sempre lutou para ter representante de igreja em posto de liderança política.
     Entre os dois, Arthur Lira é aparentemente mais forte. Para Bolsonaro, tanto faz, ainda que prefira o alagoano. Até por sua imensa chance de ganho, segundo projeção publicada pelo Poder360.

-> Reflexões finais: quem ganha, quem perde

     É interessante o apoio da oposição a Rossi. Mas se explica em dois pontos: a união de forças contra os bolsonaristas, e discussão de pautas como política ambiental e combate à pandemia de C19, muito caras ao pessoal da esquerda. Resta apenas a decisão final do PT: mantém o ranço ou vai apoiar?
     A discussão e criação de propostas de lei, ou mesmo decreto legislativo, sobre o SUS e C19 e meio ambiente, por exemplo, já seriam vistas como vitórias primárias pela oposição, enquanto o grupo de Maia, especificamente, tem foco na votação de reformas2 e de privatizações.
     Como se imagina que em fevereiro a C19 ainda esteja em alta, é possível que se voltem as atenções para o plano de vacinação e injeção de recursos ao SUS e a questão ambiental - temas que uniram Maia e oposição contra Bolsonaro. 
     Essa discussão é certa se Baleia Rossi ganhar, mantendo o poder do centrão de Maia, e se aprovado o plano contra a C19, já será meio caminho andado. Se o eleito for Lira ou Pereira, o tema se voltará para as reformas tributária e administrativa, deixando as políticas mais urgentes para trás, derrotando a oposição.
     E quanto à população? Bem, esta segue perigosamente alheia a essa corrida. E pode perder mais do que já tem perdido e agora vive a se lamentar. Pois os temas supramencionados importam muito para o bem-estar geral.
     A presente vacinação em vários países, inclusive aqui no Cone Sul, vai gerar pressão. Bolsonaro ligou o foda-se, mas pagará a conta3. Pois a maior parte da população ainda é favorável à vacinação. Enquanto isso, a imprensa poderia ajudar o STF a neutralizar os negacionistas mediante campanhas.
     A injeção de recursos ao SUS segue na esteira da C19, bem como outras doenças, desde a atenção primária nas unidades básicas à terciária em hospitais de alta complexidade. A presente tragédia tem feito boa parcela da população reconhecer o valor do SUS que, mesmo alquebrado, salvou milhares de vidas.
     A política ambiental é também muito cara aos brasileiros: a conservação das áreas naturais mantém não só a estabilidade climática relativa, como também a produção e segurança alimentar. Mais de 70% dos alimentos consumidos pela população provêm de pequenos produtores e não dos latifundiários.
     Na questão de direitos humanos, está em pauta a discussão sobre a sobrevida de povos indígenas e populações tradicionais como ribeirinhos e quilombolas. O TPI4 recebeu muitas denúncias contra Jair Bolsonaro de crimes de genocídio5, acatando análise das mesmas.
     Agora, supondo-se Marcos Pereira o eleito presidente da Câmara, as pautas moralistas passam a ser focadas, e há o perigo de problemas graves de saúde pública serem mais desprezados ainda por isso. Seria um representante teocrático, mas a sua baixa expressão política rebaixa muito as suas possibilidades. 
     Finalizando, na conjuntura, o maior vitorioso será o centrão, pois qualquer presidente eleito vai dar força aos seus interesses mais específicos. Agora, os temas com aceno dos progressistas são valiosos no momento, e podem dar à nação um gostinho, ainda que discreto, de vitória. Para o centrão também, claro.
  
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Notas da autoria:
1. Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em Niterói no fim da década de 1970 por Edir Macedo e um grupo de amigos.
2. Rossi é favorável à reforma administrativa, contra o que o PT se posiciona - o que piora na indecisão do partido.
3. Sofrerá sucessivas derrotas e pode ser afastado do governo.
4. Tribunal Penal Internacional, em Haia, Holanda, responsável por análise de crimes contra a humanidade.
5. O genocídio pode se estender também à tragédia da C19, devido ao reiterado desprezo de Bolsonaro à sua gravidade.

Crédito da imagem: Google imagens.

Para saber mais:
- https://www.gazetadopovo.com.br/republica/quem-ganha-forca-com-o-veto-a-reeleicao-de-maia-e-alcolumbre-para-o-comando-do-congresso/
- https://www.gazetadopovo.com.br/republica/senado-eleicao-presidencia-favorito/
- https://www.poder360.com.br/congresso/conheca-quem-esta-no-pareo-para-assumir-as-presidencias-do-senado-e-camara/
- https://www.politize.com.br/bancadas-tematicas/?https://www.politize.com.br/&gclid=Cj0KCQiAuJb_BRDJARIsAKkycUkpHs6EsbQxsZXRDvTp1TXpLSzGT4zWwdQJCmH8BTnNN9APTd1Np2caAmygEALw_wcB
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Arthur_Lira
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcos_Pereira_(pol%C3%ADtico)
- https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/12/15/interna_politica,1220716/tpi-analisa-denuncia-contra-bolsonaro-por-crime-contra-a-humanidade.shtml
- https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/tribunal-penal-internacional-de-haia-aceita-denuncia-contra-jair-bolsonaro1


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Crise econômica e extremos da direita

     Quando eclodiu a 'crise' econômica de 2008, nos EUA, e seu eco na União Europeia, houve muitos movimentos de direita conservadora de economia liberal e de extrema-direita contra as então vigentes centro-direita e centro-esquerda.
     Não é surpresa: o nazismo surgiu no contexto da depressão econômica de 1929-33, que afetou em cheio a Alemanha, que já era uma nação central na Europa nesse campo. E o integralismo no mesmo período no Brasil.
     Surgida após a II Guerra, a guerra fria entre EUA e URSS foi uma forma de sustentação da direita capitalista frente ao bem armado "comunismo" soviético, assimilado e regionalizado no Camboja, Vietnã, China, Mongólia, Coreia do Norte, Cuba e outros.
     A guerra fria foi sustentáculo de um debate que nunca se acaba porque não tem vencedores mesmo no capitalismo globalizado: a dicotomia direita-esquerda e a diversificação nas duas vertentes.
     Em artigos anteriores, foram abordadas análises sobre ideologias conhecidas de extrema-direita como fascismo e nazismo relativos a Bolsonaro, e o mais recente, sobre o Tradicionalismo, que uniu Trump, Bolsonaro e Putin.
     Este artigo se centra na resenha sobre as diversas facetas dos movimentos político-ideológicos de direita. Mas, para esse objetivo central, vale um breve apanhado sobre essa dicotomia.

-> A dicotomia direita-esquerda: discussões

     Apesar de ser intensivamente explorada nas redes sociais (com frequentes erros interpretativos), a dicotomia direita-esquerda é mais antiga do que se parece, e sua compreensão pode não ser tão fácil devido à complexidade do próprio tema, conforme interpretação de diferentes autores.
     Laponce aponta quatro dimensões para distinguir ideologicamente direita e esquerda: econômica, política, religiosa e temporal. A direita se identifica com capitalismo, livre mercado, a fé dominante e o passado. A esquerda, com economia principalmente estatal, bem-estar social, intelectualismo, laicidade e mudança (futuro).
     Norberto Bobbio já simplifica a distinção de direita e esquerda na "diferença da atitude dos homens face ao ideal de igualdade", e discorda de Laponce: "há governos democráticos de direita, e nem toda esquerda é igualitária". Ou seja, evita generalizações.
     Nogueira Pinto vê na esquerda o "otimismo antropológico, utopismo, igualitarismo, economicismo, democracia, internacionalismo", e na direita "pessimismo antropológico, antiutopismo, direito à diferença, elitismo, antieconomicismo, nacionalismo".
     O consenso geral é a direita como tradição, neoliberalismo, conservadorismo, reacionarismo, religiosidade, anarcocapitalismo e nacionalismo; e a esquerda como progressismo, social-liberalismo, socialdemocracia, ambientalismo, socialismo libertário, secularismo, comunismo e anarquismo, com adaptações regionais.

Breve história dessa dicotomia ideológica
     Na Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa (1879-99) participaram os partidários do rei à direita do presidente do evento, e populares simpáticos à revolução à esquerda. Houve a máxima do deputado Barão de Gauville:
"Nós começamos a reconhecer uns aos outros: aqueles que eram leais à religião e ao rei (imperador) ficaram sentados à direita, de modo a evitar os gritos, os juramentos e indecências que tinham rédea livre no lado oposto".
     Apesar da discordância de muitos presentes, o Barão imortalizou essa dicotomia direita-esquerda, que emplacaria na Assembleia Legislativa de 1791 e no século XIX, ela marcou os monarquistas de direita e republicanos de esquerda. Até hoje, pois se verificou na polarização brazuca em 2018.
     Embora muitos autores considerem essa dicotomia insustentável e antidemocrática atualmente, o sociólogo Faria Pereira aponta ser uma práxis sustentada pelos próprios políticos em nome de seus interesses financeiros e de poder, verificados na direita dominante no Brasil e no mundo.
     Isso é reflexo do terror tocado pelas ditaduras em países ocidentais em desenvolvimento, em submissão aos interesses capitalistas dos EUA, acusando opositores de subversão comunista. Daí, mesmo na democracia se persiste a adversidade ideológica a impedir a eliminação dessa dicotomia.

-> Faces da direita: os extremos hoje criminalizados em lei

     Os fatos históricos desde o século XIX até hoje atestam a sobrevida de diversos movimentos, não obstante alguns serem ilegais. E outros que tiveram guinada ideológica por alegação prática, como o PSDB, PSB e PDT, originalmente de centro-esquerda para se assumirem centro-direita hoje.
     Essa guinada aparentemente não foi observada na Europa. Afinal, as visões práticas de direita e de esquerda europeias diferem das nossas. Mas a criminalização dos partidários extremistas por lá vem sendo rigorosa, mesmo nas democracias à direita. 
     A lei brasileira criminaliza extremistas de direita, mas a fraqueza fiscal e a cultura policial repressiva facilitam a sua sobrevida, o que se fortifica no atual governo, que teve nesses movimentos extremos amplo apoio, junto aos movimentos neopentecostais,
     Os movimentos de extrema-direita se caracterizam pela visão radical em anticomunismo, xenofobia, racismo, anticiência, antidiversidade, antidemocracia, nacionalismo e em referência religiosa. Seguem os principais, globalmente conhecidos, e um ligado a nichos militares e paramilitares.
     Fascismo- movimento político autoritário, estatal, nacionalista, xenófobo, anti-intelectual e violento. Surgiu na Itália no século XIX, com referência em Mussolini. É crime na UE e no Brasil.
     Nazismo- é ideológico, de nacionalismo étnico-racial, cristocentrismo, violência contra as minorias (também políticas, religiosas, sexuais), anti-intelectualismo, estatal-capitalista. Referenciado em Hitler, é crime na maior parte do Ocidente, inclusive na Alemanha, onde surgiu.
     Neofascismo e neonazismo- são versões modernas dos movimentos clássicos supracitados. Por aqui houve apoio deles à eleição de Bolsonaro em 2018. Também são crimes por lei.
     Integralismo- defende a convergência de elementos sociais, culturais, políticos e religiosos a ser imposta como política integrada na ordem nacional. No Brasil foi muito valorizado no início da era Vargas (1932-37). Não é crime, mas também não reconhecido na atual lei brasileira.
     Neointegralismo- versão moderna do integralismo. Mostrou apoio à eleição de Bolsonaro.
     Franquismo- com referência ao ditador general Francisco Franco, derivou do falangismo, fascismo à moda espanhola. Militarista, ultracatólico, violento, anticomunista e anti-anarquista. No Brasil chegou por uma minoria de imigrantes espanhóis. Hoje é crime.
     Neofranquismo- centrado na Espanha, é cristocêntrico genérico islamofóbico. É irrelevante, em comparação ao neofascismo, neonazismo e neointegralismo. Crime por lei.
     Arditismo- surgido entre militares italianos de baixa patente, se baseia em visão radical de resolver pelas armas os flagelos socioeconômicos. Embora militarista e anticomunista, não tem bem definidos outros elementos típicos dos supracitados, como nacionalismo, xenofobia, etc. É crime por lei.
     No Brasil, o arditismo tem simpatia entre militares e paramilitares1. E, nisso, revela uma importante estreiteza com a situação encontrada no momento atual.

-> Arditismo, Tradicionalismo, Bolsonaro: reflexões

     O compilado nos principais movimentos de extrema-direita teve como principal intenção mostrar a sua diversificação ao longo da história via regionalização a partir da Europa, até se chegar ao radical arditismo, que veio ao Brasil pela imigração.
     O arditismo entrou nos círculos militares brasileiros muito provavelmente a partir da admissão dos filhos de alguns imigrantes italianos nas corporações, mas ainda não se sabe quando. Mas, foi fácil a assimilação na cultura militar a partir de então.
     Os motivos possíveis seriam o encorajamento sugerido para intimidar descontroles pela violência e o caráter indiferente do arditismo em relação a elementos como nacionalismo, diversidade, xenofobia, religião determinada, etc. Dai as milícias serem também serem arditistas, pois dominam seus espaços pela violência.
     Na ditadura militar (1964-85), as forças militares usaram a força bruta contra presos políticos e em dissolver grupos de populares nas ruas. E, como já abordado neste blog, após o regime as polícias se viraram contra os mais pobres, periféricos e maioria não brancos, desencadeando a guerra urbana.
     É nesse contexto que surge a força política de Bolsonaro, no apoio das classes mais abastadas que viam nas intervenções das PMs nas favelas o pretexto de segurança a merecer bom olhar político. Foi a sacada de mestre que o elegeu, somada à estreita relação com o movimento neopentecostal.
     De fato, Bolsonaro acredita que a violência das forças de segurança "é um mal necessário" para arrasar com o mal a dar lugar para o bem, por sua vez representado nas virtudes diárias da fé cristã da maioria. Sob a sua sombra, a nação tradicionalista ressurgida das cinzas por bala, fogo e doença.
     Tradicionalista. Nessa nova ideologia Bolsonaro se sustenta, e se explica ao defender as milícias nas comunidades do Rio e a PM que "mata e põe ordem na coisa". Essa ideologia dos fins justificar os meios é a herança direta do arditismo que o elegeu. 
     Ou seja, o tradicionalismo de hoje (Bolsonaro, Trump e Putin) foi o arditismo de ontem.
     
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Notas da autoria:
1. Milícias de militares expulsos (ou não) das corporações, ou de "missionários" evanjas neopentecostais, como os Gladiadores do Altar da IURD.

Montagem: da autoria (imagens creditadas do Google: integralismo, fascismo, nazismo e arditismo. A seta indica a direção política desses movimentos)

Para saber mais:
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Esquerda_e_direita_(pol%C3%ADtica)#:~:text=Os%20termos%20%22esquerda%22%20e%20%22,da%20revolu%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0%20sua%20esquerda.
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Extrema-direita
- https://www.justificando.com/2018/10/16/pior-do-que-parece/
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/12/tradicionalismo-politica-e-misticismo.html
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-12/benjamin-teitelbaum-destruicao-e-a-agenda-do-tradicionalismo-a-ideologia-por-tras-de-bolsonaro-e-trump.html
    
     

domingo, 20 de dezembro de 2020

Tradicionalismo: política e misticismo


     Quando ocorreu de os EUA elegerem Donald Trump e, mais tarde, Brasil escolher Bolsonaro, se decretou a guinada para um viés bem conservador e de economia bastante liberal, e a sinistra aliança entre os dois presidentes.     
     Quando Trump se declarou contra o Maduro da Venezuela e Bolsonaro seguiu a mesma toada, a Rússia de Putin declarou apoio ao venezuelano. 
     Bastou para a polarização nas redes sociais, com o destaque para os bolsominions de "lacrar" que Putin apoia Maduro "por ser comunista".
     Se tal fala fosse na era soviética, talvez tivessem quase razão: Putin foi chefe da KGB, a polícia política da URSS. Mas, pelo verdadeiro conceito de comunismo, o politburo soviético foi capitalismo de Estado. Mas, isso é outra história para outro possível artigo.
     Mas, se Putin não é comunista de fato, que vertente política ele segue hoje em dia? E Bolsonaro e Trump, tachados de fascistas pelos opositores, são mesmo típicos? Bem, tudo indica que os três sejam tradicionalistas, e Orbán não. E é sobre isso que este artigo objetiva analisar.

-> Breve revisão: fascismo, nazismo, nazifascismo

     A revisão abaixo é um resumo da análise explanada em artigo deste blog de 7/6/2020, a respeito do movimento político do fascismo, o movimento ideológico do nazismo e a vertente nazifascista.
     O fascismo é definido por Robert Paxton, em Anatomia do Fascismo, como "mistura de patriotismo e nacional-socialismo com propensão a ataques violentos, anti-intelectualismo, rejeição a soluções de compromisso e desprezo à sociedade estabelecida", mesmo tendo "diferenciações específicas em cada governo fascista", segundo aduz Gustavo Monteiro, da UFJF1
     Trump e Bolsonaro assimilam características fascistas em comum, como a anticiência e a violência, e o primeiro mais robusto devido ao grande tamanho do Estado em seu país, diferente do segundo. Já Putin não é anticientífico, embora seja violento e governe um Estado forte.
     O nazismo, por sua vez, é uma ideologia extremista de nacionalismo convertido na unidade étnico-racial de determinado povo, a justificar violência contra os demais grupos socioculturais. Diferencia do fascismo de Mussolini na indiferença ao tamanho do Estado e boa ligação com grandes empresas.
     Se o fascismo foi um movimento político e o nazismo ideológico, a convergência de ambos se deu nos traços político-ideológicos em comum, daí o nazifascismo. O citado artigo creditou a Bolsonaro a tendência nazifascista, até surgir uma nova luz sobre o que une o brasileiro a Trump e... Putin. 

-> Tradicionalismo: o novo que é um perigo velho

     A nova luz veio de um estudo do professor Benjamin Teitelbaum, Guerra pela eternidade, que se baseou em entrevistas a ideólogos conservadores próximos a nomes como Olavo de Carvalho, Steve Bannon e Aleksandr Dugin, ligados respectivamente a Bolsonaro, Trump e Putin. 
     O estudo, que virou livro, surgiu da captação de particularidades visionárias dos ideólogos acima citados e seguidores, na infiltração da transmutação espiritual na vida política. Daí Teitelbaum desenhar o conceito de uma teoria, o Tradicionalismo.
     Um desenho de traços obscuros, que Teitelbaum chamou Tradicionalismo, com T maiúsculo para distinguir do conservadorismo tradicional, movimento político sem envolvimento religioso em si.
     O professor o define como um populismo antimodernista de extrema direita com viés autoritário e carga religiosa, que foca a política radical de costumes. A cena econômica pode ser neoliberal ou não, desde que seja capitalista. Se o foco nazista é étnico-racial, o tradicionalista é a moral de costumes e valores sociais.
      O Tradicionalismo se origina de "escola espiritual filosófica que se tornou política em certo nicho [...]; a humanidade está ao fim de um longo ciclo de declínio e que vai ser findado com destruição e renascimento". Daí o cataclismo, "para restaurar o que os tradicionalistas acreditam ser a verdade". Portanto, "há o elemento de destruição [...] que não necessariamente está no fascismo", aponta.
     O tom do professor é de alerta. ao apontar os sinais práticos, exemplificando a destruição ambiental e a violência no Brasil, e o negacionismo sobre a atual pandemia em vários locais do mundo, sendo um importante desafio aos governos progressistas.
     Ao se referenciar a líderes com perfil como o de Bolsonaro, Paulo Ghiraldelli resume essa ideologia a um conceito de capitalismo de bandidos que apenas visa o lucro próprio, às custas da destruição das instituições. Ele exemplifica o aparelhamento destas, por exemplo, como prova destrutiva.
     Bolsonaro, Trump e Putin são, respectivamente, católico romano, protestante e ortodoxo oriental, três vertentes cristãs que têm na Bíblia (mesmo com variações respectivas) como referência, e cujo último capítulo, o Apocalipse, trata de destruição e renascimento em plena virtude nos rígidos valores judaico-cristãos. 
     Se o brasileiro e o estadunidense têm estreitas relações com pastores e figuras evangélicas ilustres, Putin se aproximou da Igreja Ortodoxa para "mostrar serviço" contra o aborto e os manifestos públicos de LGBTQ+, entre outras "modernidades", enquanto investe pesado nas FFAA e no armamentismo.
     Ghiraldelli aponta Bolsonaro como legítimo antimoderno ao defender a criminalização do aborto independente de qualquer fator: a mãe que morra pela vida do filho. Filosoficamente ele é pela vida, mas para isso implica na possível morte da mãe. É uma forma de biopoder. 
     O biopoder é elemento compatível ao Tradicionalismo no sentido de que o novo ser vai representar o futuro de valores restabelecidos, outrora perdidos no período de sua mãe. A possível morte da mãe simboliza, portanto, o fim da decrepitude para dar lugar aos valores morais creditados pelos seguidores.

-> Orbán vs Tradicionalismo; Reflexões finais

    Vale analisar neste item por que o professor Teitelbaum não relacionou o líder húngaro Viktor Orbán como tradicionalista, mesmo tendo afinidades com os três supracitados líderes na proximidade com as igrejas respectivas (Orbán é ortodoxo) e no antimodernismo.
     Orbán defende política nacional-conservadora de extrema-direita, com discurso anti-imigração e contra os direitos LGBTQs e sexuais e reprodutivos das mulheres. Exatamente como Bolsonaro, Trump e Putin.
     Em duas ocasiões em 2019, Orbán organizou encontros com governantes conservadores como ele para traçar políticas que fortalecessem as igrejas nas decisões de Estado, apesar da laicidade reinante. A aliança com Bolsonaro minou ao se perceber a péssima gestão brazuca em meio ambiente e na C19.
     O líder húngaro não é favorável a políticas destrutivas para impor valores moralistas. Ele se alia à igreja local por interesse político e afinidade de valores, mas não na práxis apocalíptica. Daí ter razão o professor Teitelbaum ao negar Orbán como tradicionalista.
     Vale ressaltar que a Hungria integra a União Europeia, que defende a democracia, impedindo o ideal tradicionalista; e a ruptura de Orbán com o ex-deputado Jószef Szájer, artífice da Constituição húngara, flagrado em recente orgia gay numa boate em Bruxelas. Detalhe: é casado com uma juíza.
     A atual Constituição da Hungria defende o conservadorismo de costumes e prevê leis a restringir direitos de minorias, LGBTQs, e os sexuais e reprodutivos femininos ao criminalizar o aborto, exceto o espontâneo, desde que com prova médica oficial. Também é anti-imigração, pela identidade étnica.
     O fato da orgia gay revela o quanto o conservadorismo de costumes é frágil e questionável, tal como a teocracia. Ao impedir a nossa essência mais básica, a humanidade, o conservadorismo, tradicional de Orbán ou tradicionalista de Bolsonaro e cia., se torna uma ditadura do obscurantismo que apaga a luz no fim do túnel.
     Assim, o tradicionalismo, se em plena prática, não permitirá o renascimento, mas o Armageddon que é, simbolicamente, o fim de tudo. Sem volta.
     
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Notas da autoria:
1. Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais.
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Fotomontagem: autoria deste artigo (crédito das imagens isoladas: Google imagens).

Para saber mais:
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/06/bolsonaro-nazifascismo-brasileira.html
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Putin (sobre Putin)
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Viktor_Orb%C3%A1n (sobre Orbán)
- https://brasil.elpais.com/internacional/2020-12-05/ascensao-orgia-e-queda-do-homem-forte-de-orban-em-bruxelas.html
- https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-12/benjamin-teitelbaum-destruicao-e-a-agenda-do-tradicionalismo-a-ideologia-por-tras-de-bolsonaro-e-trump.html
- https://www.youtube.com/watch?v=cmHCObRBE1c




sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Ecos atuais da reforma trabalhista


     Em 2017 foi promulgada a PEC da reforma trabalhista, que remodela (ou abole) muitos artigos da antiga Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), regime de direito trabalhista do mercado privado, empresas públicas e entidades de economia mista.
     Antes de sua votação, milhares de trabalhadores foram às ruas, já enxuricados pela reforma da previdência, que estava em pauta no mesmo período. A intenção era mostrar aos congressistas e a Temer a sua indignação. 
     Temer dissera que os direitos seriam preservados, mas ninguém ligou. E, indiferentes aos indignados protestos populares e a muitos especialistas em trabalho, governo e congressistas levaram a cabo as votações e promulgaram a EC 55, a citada reforma. E ficou por isso mesmo.
     Bolsonaro entrou com o anarcoliberal Paulo Guedes a tiracolo como ministro da economia, já prometendo novas mudanças no regime trabalhista na alegação de desonerar os empregadores e a proposta de 1º emprego para jovens de 18 a 24 anos, a carteira Verde Amarela.
     A carteira Verde Amarela foi revogada em decorrência da crise e da falta de acordo com congresso, daí haver novas mudanças no regime reformado por Temer. ainda assim, Guedes está insatisfeito na alegação formal de 'desoneração das empresas'.
     Quais mudanças, implicações e reflexões são objetivos deste artigo.

-> Breve história da CLT; e a EC 55

     Toda a massa trabalhadora era regida pela CLT, Consolidação das Leis do Trabalho, do Decreto-Lei 5.452, de 1º/5/1943, na era Vargas (1930-45). Foi assinada no estádio de futebol São Januário, no Rio, então capital federal, lotado de trabalhadores que foram comemorar o feito.
     A CLT unificou toda a legislação trabalhista e incluiu direitos trabalhistas no conjunto legal geral, regulamentando o vínculo entre empregador e empregado em nível individual e coletivo. Foi legado do Congresso Brasileiro de Direito Social, das convenções internacionais e da Encíclica Rerum Novarum ("coisas novas") da Igreja Católica, de 1891.
     Por décadas, ela foi o único regime jurídico trabalhista, abarcando até servidores públicos de órgãos da Administração Pública direta e indireta, até ser substituída pela Lei 8.112/1990, ou Estatuto do Servidor Público, previsto na Constituição de 1988.
     Embora não tenha impedido algumas tretas nas relações entre empregado e patrão e tenha sido algo burocrática, a CLT varguista por 7 décadas permitiu a mediação e acordos em que as partes tivessem o mínimo de prejuízo. 
     Mas, com o capitalismo financeiro tomando aos poucos o lugar do industrial, e com as TICs1, os megainvestidores cobraram do poder público medidas de mudanças nas leis trabalhistas, alegando a "desoneração e desburocratização". Mas, há uma inverdade nessa história.
     Os megainvestimentos sempre tiveram incentivos fiscais do Estado, sem pagar encargos por algum tempo, conforme a lei. Até já houve incentivos permanentes, aí irregulares. Mas foram ouvidos pela classe política, no governo Michel Temer, para mais essa. E daí surge a PEC que levou à EC 55.
     A EC2 55 foi elaborada pelo governo Temer e apreciada, modificada em alguns pontos, votada e promulgada em 2017. Foi uma resolução rápida - característica adquirida pelo congresso, que ainda se mantém. 
     A reforma afetou só a CLT. O texto de Temer mantém os direitos pétreos, invioláveis, como férias, 13º salário, licenças. As maiores mudanças foram em acordos patrão-empregado (negociado acima do legislado), ações judiciais, contratos intermitentes e demissões.

Uma caixinha de surpresas - muitas desagradáveis
     Os acordos acima do legislado sugerem liberdade e desburocratização, mas não é bem assim. Na prática, o patrão decide e o trabalhador se limita a acatar, para evitar a demissão sumária. Por isso que, em assuntos financeiros, o empregado fica sujeito a perdas.
     Isso porque o empregador geralmente conhece os meandros da lei, geralmente ignorados pelo seu trabalhador, que pode ser convencido por promessas. Por isso, no final, há relatos de "não cumprimento da palavra" que motiva ações judiciais - que podem ser verdadeiras armadilhas.
     Ações judiciais: na CLT antiga, o trabalhador beneficiário da justiça gratuita não pagava honorários, mesmo perdendo processo. A reforma extinguiu essa proteção, tendo o ex-empregado que pagar tudo, inclusive honorários da parte contrária e custos de perícia.
     Um ponto controverso da reforma é a tarifa do dano moral, cujo valor é medido pelo valor salarial do empregado a ser indenizado por acidente, por exemplo. Para a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), a tarifa é inconstitucional, e pode induzir a distorções meritórias.
     Não por acaso, é em situações como essa, que os trabalhadores se dão conta da profundidade das mudanças. Sem falar na tradição de "dois pesos, duas medidas", comum ao meio jurídico, a favorecer quem tem dominância financeira e decisória.
     FGTS: a multa aos ex-empregadores foi desonerada por alteração de artigo na reforma em 2019, baixando de 40 para 20%, e nos acordos o empregador ganhou sua margem de direito em até 50% do fundo.
     Jornadas: embora o padrão constitucional de 8h/dia e até 44h semanais, a reforma trabalhista gerou novas jornadas que podem ser de até 12h, como plantões, mas somando as 44h semanais. Porém, sem fiscalização, surgiram muitos casos de hiperexploração, que pararam na justiça.
     Demissão: embora a constituição de 1988 vete as demissões sumárias, sem justa causa, a reforma trabalhista deu brecha para flexibilizar em forma de acordos entre as duas partes, o que desencadeou alguns casos sumários - outra dor de cabeça para algumas ações judiciais.
     Férias: a reforma as prevê em até 3 períodos conforme livre acordo. Mas, na prática, os acordos são muito raros: é o patrão que determina como e quando elas serão, geralmente em cima da hora, restando ao trabalhador acatar, mesmo a contragosto.
     O contrato intermitente é quando um trabalhador é chamado pelo empregador para prestar serviço por tempo(s) determinado(s), sendo pago pelo período prestado. Propagandeado como desburocrático e moderno, esse tipo compõe menos de 1% do total de contratos formais, e pode ser uma armadilha.
     Segundo estudo do DIEESE3, de 2019, a média salarial nessa modalidade é bem inferior ao salário mínimo, em torno de 64%, e em 22% dos contratos analisados, não havia renda nenhuma - talvez por falta de trabalho de fato, ou resultando de não cumprimento do acordo pela parte empregadora.

-> Ecos da reforma e reflexões finais

     Muitas das principais promessas da reforma trabalhista de Temer, como a flexibilização das relações produtivas e a maior empregabilidade pela desoneração da folha, na prática não resultaram a contento. 
     A reforma de fato desonerou em alguns pontos, mas não foi significativa: Na prática, não resultou em mais empregos, não alterando os 12% no índice de desemprego em 2018 (excluindo subempregos, segundo o DIEESE), o que aumentou para quase 15% em 2020.
     A crise econômica é sempre a alegação mais fácil, mas há outros motivos, entre eles o desinteresse do empresário em empregar, por se voltar para o sistema financeiro como forma de compensação de lucro.
     A liberdade de acordos entre patrões e empregados, propagandeada como garantia de participação dos trabalhadores nos lucros da empresa, na prática não decolou. Como foi pontuado no item anterior, as negociações livres, quando existem, são manipuladas pelo empregador, ou não existem.
     Essa inflexibilidade patronal está na cultura da higidez do mandante, chefe ou patrão, como forma de "impor ordem na casa" para "a empresa produzir com organização e racionalidade". É histórico, mas a reforma bem que poderia prever como o patrão deve mudar sua conduta... só que não.
     O veto constitucional não impediu o aumento de demissões sumárias, com muitos trabalhadores se indenização. A maioria vai na justiça, mesmo no risco, dada a perda da antiga gratuidade. 
     A reforma refletiu em queda das ações judiciais, atingindo advogados trabalhistas, que passaram a diversificar seus préstimos para não perder seu ganho. Alguns justificam na moralização da reforma, que "freou improcedências", mas outros já alegam a falta de recursos financeiros dos trabalhadores.
     Dada a inoperância dos resultados, a reforma trabalhista veio muito mais como um engodo do que como desburocratização das relações produtivas.
     Concluindo, a reforma trabalhista não gerou praticamente nada de positivo, apesar de alguns pontos positivos - só no papel. Dada a perda que implicou aos trabalhadores, a reforma não deveria substituir a antiga CLT, que por 70 anos protegeu a classe operária sem prejudicar os patrões.
     
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Notas da autoria:
1. Sigla de Tecnologias de Informação e Comunicação, a partir da informática com internet.
2. Emenda Constitucional. Antes da promulgação é PEC (proposta de emenda constitucional).
3. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, que junta dados censitários e econômicos.

Crédito da imagem: Google (editada)

Para saber mais:
- https://eieiri.jusbrasil.com.br/artigos/684585687/a-reforma-trabalhista-e-o-registro-em-carteira-de-trabalho
- https://trt-24.jusbrasil.com.br/noticias/100474551/historia-a-criacao-da-clt
- https://veja.abril.com.br/economia/reforma-trabalhista-o-que-muda-nas-acoes-trabalhistas/
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48830450
- https://www.diariodocentrodomundo.com.br/trabalho-intermitente-paga-abaixo-do-minimo-e-22-dos-contratos-nao-pagam-nada-por-vitor-nuzzi/
     

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